A múmia indígena

Em abril de 2002 minha mãe decidiu que eu deveria recuperar as forças nas terras de meus tios, após insidiosa pneumonia cujo tratamento dera um trabalho danado aos médicos. Na fazenda, segundo minha mãe, eu estaria livre dos sites pornográficos da internet e do consequente onanismo frenético que, no seu entender, afetava minha convalescença.

Ainda me lembrava de meus parentes – a última vez que os visitara fazia uns seis anos. Meu tio Jeremias tinha aversão doentia por máquinas modernas, que considerava inimigas primordiais do Homem. Ostentava uma barba negra, farta, a lhe bater no peito. Um sujeito originalíssimo, ainda mais se levarmos em conta que fora professor de literatura greco-latina. A mulher, tia Ginevra, possuía um buço de pelos rubros, hirsutos, e quando em raras ocasiões descuidava-se e mostrava as canelas grossas sob a saia longa, a impressão que ficava era a de uma perna de tarântula-de-fogo, peluda e repelente. Como meu tio, era contra a modernidade e também fora professora, só que lecionara antropologia. Na fazenda cultivavam girassol, tabaco, cogumelo, alfazema – mas a força da produção agrícola estava nos vinhedos. Eles, meus tios, claro está, residiam na propriedade juntamente com um grande número de colonos que adotava a mesmo princípio existencial. Neoludismo – esse é o nome da estranha ideologia que se opõe às novas tecnologias, eu haveria de descobrir mais tarde.

Como meus pais eram muito ocupados – ele, jornalista especializado em economia; ela, química em laboratório da indústria farmacêutica – o motorista da casa levou-me à fazenda; e na viagem, algumas vezes ele, conhecendo meu caráter libidinoso, falou-me de minha prima Heliodora:

– Um pitéu, você vai ver.

Era-me difícil imaginar Heliodora um pitéu. A lembrança que tinha de minha prima era de uma menina chorona, ranheta, cabelos de espiga de milho e uma pele que parecia um queijo, de tão branca. Na última vez que nos víramos, tínhamos ambos dez anos.

Quando chegamos à fazenda, eu estava um molambo. Desci do carro, o motorista passou-me a mochila com minhas coisas, fez uma manobra e pegou a estrada de volta. Nunca me senti tão solitário, ali, com a mochila me pesando nas costas como se fosse uma pedra. Suava por todos os poros, tinha dores na cabeça, no peito, nos membros. Dois empregados da propriedade pegaram em meus braços e me ajudaram a caminhar em direção a casa. Mesmo sendo praticamente carregado, pude dar uma olhada analítica no lugar e nunca tal visão provocou-me tamanha estranheza: o silêncio era de pesado veludo, a residência de dois andares, grande, de brita, cheia de musgos brilhantes brotando nas junções inchadas de infiltrações de chuva, estava diferente da que guardara nas recordações – à volta da construção, um imenso arvoredo que, deduzi, serviria para a refrigeração, além de um sistema hidráulico grudando-se pelo lado externo das paredes.

Fui levado a um quarto enorme, mas naquela hora só vislumbrei a cama de casal, de ferro. Sei que me vestiram um pijama de flanela e me acomodaram no fofo colchão e sobre meu corpo colocaram edredons leves, cálidos. Pouco depois tia Ginevra trouxe uma tigela com uma sopa escura e pôs-se a me enfiar colheradas na boca, alimentando-me como se eu fosse uma criança ou inválido em fase terminal. O sol, no ocaso, vermelho como o olho do Cão, incendiava seu lábio bigodudo que se movia num contar de uma história qualquer repleta de ternura e consolações. Assim que terminei de tomar aquele caldo espesso, tia Ginevra fechou o janelão, que o vento noturno começava a soprar, e deixou-me ali, solitário, a comida nutritiva fazendo meu corpo debilitado ferver como uma caldeira. Em pouco, adormeci.

Não sei precisar que horas seriam quando acordei com a sensação de haver mais alguém no aposento. Súbito, um fósforo acendeu-se, formando um halo de luz em torno de uma figura aos pés da cama. Só podia ser minha prima Heliodora: através da camisola muito transparente, eu podia ver os contornos de seu corpo completamente despido de peças íntimas. Um corpo grande, generoso e saudável, os seios imensos como melões, o rosto ovalado, corado, e os cabelos louros – à luz do fósforo eram vermelhos. Heliodora levou um dedo sobre os lábios:

– Shhhh... – ciciou. Em seguida fez um biquinho brejeiro e soprou a chama do fósforo. Na completa escuridão fui captando os quase imperceptíveis ruídos da camisola deslizando para o chão. O colchão afundou-se ao meu lado: os braços de Heliodora pousaram sobre meu peito, uma coxa pesada galgou meus quadris e os seios grandes, quentes, começaram a esfregar-se em minhas costelas. O ritmo foi se tornando frenético, Heliodora pôs-se a arfar em meu ouvido como imemoriais locomotivas a vapor – acariciou-me como se eu fosse um bloco de mármore sendo cinzelado por um escultor. Então senti que seus caldos íntimos lubrificavam-me a cintura. Ela deu um gritinho de suicida, meteu com vontade os dentes em meu ombro e logo seu corpo amoleceu, no término do gozo pleno. Rápida, pulou da cama, ouvi o ruído de mãos recolhendo a camisola no chão, e desapareceu no abrir e fechar da porta. Enquanto sumia pelo corredor, ficou no ar o som de um risinho canalha. Banhado em suores, desejos insatisfeitos provocando dores nos órgãos genitais ultra-excitados, senti lágrimas de raiva inundarem os meus olhos.

*

Pela manhã, abri o janelão e a luz do sol de uma limpidez nunca vista atingiu-me os olhos provocando ardência. Em rápida olhadela investiguei o quartão: num canto vi uma pia e, sobre ela, meus utensílios higiênicos: pente, escova de dente, pasta dentrifícia. Ao lado da pia, o vaso sanitário. Mas que porra, dormitório e banheiro instalados num mesmo cômodo, sem ter ao menos um biombo a separá-los! Onde o chuveiro? Não havia, no quarto, sequer um bico de água para fazer às vezes de chuveiro. Fiz minha higiene pessoal amaldiçoando não poder tomar uma ducha, já que eu fedia os suores mórbidos do meu corpo debilitado. Procurei, até achar, num horroroso guarda-roupa em madeira lavrada, do tamanho do mundo, a minha mochila. Vesti-me e saí pelo corredor – pelos corredores. A casa imensa era um labirinto de escadas.

Uma porta abriu-se e quase, eu e Heliodora, nos chocamos. A garota soltou uma risada cristalina, como a lembrar-se de que eu fora o seu brinquedinho sexual durante a noite. Ainda estava de camisola – branca – e os seios monumentais estavam bem visíveis em razão do tecido muito fino, quase transparente.

– Perdido, primo? – indagou maliciosamente, uma linguinha rósea e ágil acariciando os lábios polpudos naturalmente vermelhos. Tinha os dentes robustos, grandes, tão brancos que pareciam de leite. Tomou-me pela mão e conduziu-me pelas escadarias. Eu estava com um medo danado daquela intimidade – medo de minha tia bigoduda e de meu tio, que até o momento não dera o ar de sua graça, mas que me incutira genuíno terror numa época da minha infância, tão intensa era a sua figura sinistra.

Heliodora levou-me para um salão no primeiro andar: em seu centro havia uma espécie de piscina natural de águas térmicas – via-se uma nuvem de vapor – e, brincando dentro dela, marotos e nus, os meus tios. Perplexo, fiquei observando aqueles seres. Tinham corpos bonitos, atléticos, saudáveis. Lembrei-me, então, que ambos estavam na faixa dos 40 anos – e a plástica corporal de tia Ginevra era tão sedutora que senti um involuntário princípio de ereção. Ela tinha uma savana de pelos sedosos no púbis e sovacos, cor de tabaco, uma savana selvagem. Quando saí daquele estado fronteiriço ao fascínio e estupefação, vi que Heliodora me desabotoava a roupa, rindo de meu embaraço. Ela, naquele momento, estava tão nua quanto um recém-nascido.

Terminado o banho matinal, fomos para o desjejum. Eu estava maravilhado. Via meus tios com outros olhos: ele era risonho, de uma alegria quase ingênua – e bom de copo. Enquanto se fartou à mesa pródiga, no refeitório, de queijos, fatias imensas de pão preto de centeio lambuzadas de manteiga de um amarelo quase indecente, porções de presunto e outras iguarias desconhecidas para mim, porém deliciosas, bebeu pelo menos duas jarras de vinho produzido na fazenda, um vinho espesso, forte, que deixava o copo com o interior pegajoso de camadas rubras. Minha tia, por seu lado, possuía uma natureza encantadora: num momento estava falando da obra Confissões, de Santo Agostinho, e repentinamente elogiava a excelência reprodutiva do bode que eles haviam adquirido recentemente.

Após o café da manhã, tio Jeremias perguntou-me se eu queria participar das aulas de Heliodora – o que eles ensinavam à filha nem quis saber, vade retro! – e de pronto recusei o convite, sob o olhar atônito de Heliodora: pareceu-me que lhe era inconcebível alguém não sentir prazer em tais ensinamentos.

Tio Jeremias, tia Ginevra e Heliodora se refugiaram na biblioteca, para os estudos. Eu fui dar uma voltinha nas redondezas. Sob o sol causticante, pude ver alguma coisa da ideologia neoludita de meus tios: o monjolo de socar arroz; carros de boi; arados pré-históricos; carroças e charretes. Aquelas charretes, uma delas com toldo, deviam ser para a locomoção até a cidade, concluí. Meus tios não gostavam das modernas tecnologias, mas assimilaram as que envolviam energia solar – como bem provavam os painéis fotovoltaicos dispostos no telhado da casa. Chamaram-me a atenção, ainda, os muitos e muitos hectares de mata virgem. Antes de voltar para a cama, por causa do sol e da exaustão física, prometi a mim mesmo que, tal qual um bandeirante, iria desbravar aquela reserva florestal.

*

Os almoços e jantares eram sempre lautos: carnes de ave, carnes vermelhas, laticínios, legumes cozidos, saladas, frutas variadas, doces inimagináveis – dentro de três dias ganhei peso, disposição física e, não bastasse essa fartura, a cozinheira, Maria Luísa, uma mulher imensa, de uns 45 anos, de madrugada sempre vinha ao meu quarto com caldos fortificantes, vitaminas exóticas, que eu tomava e após tínhamos uma fabulosa ginástica entre os lençóis. Aliás, o sexo naquela casa era de deixar qualquer pessoa, condicionadas às normas, preconceitos e castramentos sociais, à beira da apoplexia. O sexo era tão natural quanto um sorriso, um nascer de sol, a frutificação de uma árvore, a alimentação diária. Com minha prima, no entanto, eu ainda não tivera nenhuma relação carnal, por um motivo muito simples: ela possuía uma tabelinha que a orientava a respeito dos dias susceptíveis à gravidez. Eu chegara à fazenda exatamente nesse período. Frise-se que a dita tabelinha fora escrita por tia Ginevra.

*

Quando estava de posse de todas as minhas forças físicas, convidei Heliodora para irmos desbravar a reserva florestal que, soube então, era preservada por meus tios com um fanatismo quase – senão – religioso. Minha prima providenciou mochilas de lona, nelas colocou queijos, presunto, pão de centeio e, em cada uma dois litros de vinho. Na verdade, tive a sensação que estava dando apenas um passeio turístico, tendo Heliodora como guia calejada no mister, quando em feliz tagarelar passamos pelos vinhedos, pelas culturas menores de tabaco, alfazema e girassol. Ao chegarmos à barra do majestoso paredão verde, Heliodora estendeu-me a mão:

– Vamos por uma trilha de índios.

– Índios? – sobressaltei-me. – Existem índios aqui?!

– Havia – ela disse, enquanto invadíamos a mata. – Hoje estão extintos.

Ao contrário do que à primeira vista tinha-se a impressão, a floresta de árvores gigantescas não era compacta. O sol filtrava-se através das copas e brincava no tapete de folhas mortas, onde aqui e ali rebentavam brotos das futuras árvores. A trilha não oferecia grandes obstáculos e o cantar de pássaros, alertas de símios, estardalhaços de bichos invisíveis acompanhavam o som de nossos pés. Após caminharmos por uns 15 minutos, Heliodora falou-me, quase num sussurro respeitoso:

– Vou lhe mostrar a Árvore dos Orixás.

Era uma árvore monstruosa, oito homens de mãos dadas não abraçaram seu tronco. Um galho poderoso e morto, talvez vítima de um raio, fazia uma ponte em cateto disforme de suas alturas a terra. Circundando o tronco, garrafas de bebidas, umas tombadas e musguentas, algumas quebradas e outras ainda rebrilhando, um sinal de que foram ali depositadas em oferenda na noite anterior. Potes de barro, uns tão remotos que mostravam apenas suas bordas, enterrados como estavam nos liquens, musgos, fungos e folhas se liquefazendo. Um par de sapatos; uma boneca de pano, apodrecendo-se a mostrar suas entranhas de palha de arroz; uma foto grande de uma pessoa se desbotando e cravejada de alfinetes – no mais, o farfalhar do vento solene. Então algo aconteceu: uma pomba marrom, luzidia, pousou a uns trinta centímetros de nós, no galhinho flexível de um arbusto frágil; um colibri de longa calda bifurcada, iridescente, imobilizou-se quase junto ao nariz de minha prima – ficaram imóveis, a pomba e o beija-flor, por um longo momento, e depois sumiram em voo rápido. De repente, senti uma onda de frio glacial enrijecer-me os membros, os pelos do corpo eriçaram-se e um medo inexplicável tomou meu cérebro.

– Vamos embora daqui – eu disse num fio de voz. Heliodora não me respondeu. Parecia estar em transe. Tirou das costas a mochila e dali um litro de vinho. Arrancou a rolha com os dentes, depositou-o na junção de uma das muitas raízes gigantescas da árvore. Pegou-me pela mão e nos afastamos. Minutos depois, ela disse:

– Não se pode olhar para trás, mas os Orixás são meus amigos. Olhe e veja que coisa fascinante vai acontecer.

– Quem disse que Eles são seus amigos?

– A Maria Luísa. Ela é uma mãe de santo poderosa.

Não gosto de brincar com mistérios muito além da minha compreensão – certa vez um amigo de meu pai chutou um despacho colocado em frente ao portão de sua casa e no outro dia seu pé amanheceu gangrenado. Os médicos amputaram o pé, a gangrena não cedeu. Amputaram a perna até o joelho, sem resultado. Fizeram amputação até a virilha e não adiantou. A gangrena foi comendo tudo. Morreu dentro de 15 dias. Mas só dar uma olhadinha não era a mesma coisa que dar pontapé em coisa sagrada, disse a mim mesmo, e olhei para trás. Naquele preciso instante, do oco no alto do tronco da árvore saiu uma chama azulada, um azul de maçarico, e numa descida perpendicular introduziu-se, fagulhando, no gargalo do litro de vinho. Uma coisa rápida, em átimos de segundo. Mas vi. Ou pensei ter visto. De qualquer forma, meu cérebro registrara algo extraordinário. Fitei Heliodora, pasmo, ela riu e pegou em minha mão. Seguimos pela trilha, logo atrás de duas pequenas borboletas amarelas, pintalgadas de branco e cinza, a voltear no espaço. As borboletinhas seguiram à nossa frente por uns cinquenta metros, depois se encantaram na massa verde.

*

Paramos sobre uma plataforma rochosa, circundada pela floresta. Retiramos o lanche das mochilas e pusemo-nos a comer. Chegava-me aos ouvidos um som roufenho, de estrangulamento. Heliodora abriu a garrafa de vinho e, vendo meu semblante preocupado, explicou:

– O rio desliza bem aqui em baixo, por alguns quilômetros é subterrâneo. Há mais na frente uma abertura na rocha e é por lá que sai este barulho. – Passou-me a bebida. Comemos nossa ração. Abri um dos meus vinhos. Ficamos ali, o sol brilhante tinha o calor amenizado pelo vento furioso vindo das árvores. Heliodora levantou-se.

– Tudo na vida, mas tudo mesmo, é um espantoso milagre – disse. Conscienciosamente guardou na mochila o lixo resultante do que sobrara de nossos lanches. Abri o último litro de vinho. Então se deu que Heliodora despiu a camiseta e suas mamas imensas ensolararam-se, recortaram-se no fundo azul do céu, pensei mesmo que tremeluziam às chicotadas do vento. Sentado na rocha morna eu a fitava. Tirou a calça jeans e, tomando-me das mãos a bebida, despejou-a sobre o corpo – o líquido rubro escorreu-lhe pelo pescoço, passou pelos seios, fez efêmera piscina no recôncavo do umbigo e invadiu a região pubiana a refletir luzes multicores nos pelos encaracolados de um louro acobreado.

– Saí do período fértil. Venha beber no meu corpo – convidou.

Desfiz-me das roupas e nos lambemos como animais engordando em confinamento. A plataforma rochosa serviu-nos como leito e foi testemunha da mais frenética relação sexual.

*

Já andáramos por bastante tempo pela mata quando repentinamente surgiu uma clareira. Nela, uma pequena plantação de milho entremeada por feijões, abóboras e vagens. Viam-se também nascendo por ali especiarias como pimenta vermelha, orégano, gengibre, alecrim, manjericão e erva-doce – entre outros temperos que fugiam ao meu conhecimento. Ao centro da clareira, uma cabana. Era feita de troncos inteiros de árvores engenhosamente encaixados no sentido horizontal, lembrando-me aquelas cabanas dos filmes norte-americanos que relatavam o desbravamento do velho Oeste. Heliodora me explicou:

– Quem mora aí é um gringo. Deve ter mais de mil anos.

– Mil anos?!

Heliodora soltou uma gargalhada.

– Não me diga que acreditou!

Sim, eu acreditara. Nos poucos dias passados com aqueles inacreditáveis parentes, fui aprendendo que nada é impossível na face da Terra. Mas, para não ficar com cara de panaca, retruquei:

– Acho que nem mesmo os profetas do Velho Testamento viveram tanto.

– Bom, ele não tem mil anos, mas é velho à beça. Com certeza passa dos cem.

Fiquei observando a cabana e imaginando o personagem que ali residia. A mente, excitada pelo vinho, formulava perguntas intrincadas. Heliodora me fitou e seus olhos sorriram, dona de segredos fascinantes.

– Quando nosso avô abriu esta fazenda, o matusalém já estava aqui, cercado de índios. Ele é antropólogo ou coisa que valha, um desses estranjas que viviam metendo o bedelho nas culturas indígenas. Viu os índios extinguirem-se, vítimas das doenças dos brancos. Hoje o gringo é uma espécie de guarda-florestal. Ele e meus pais são amicíssimos.

– E você? É amiga dele?

Heliodora passou as duas mãos nos cabelos, um pouquinho mais escuros, uma cor aurífera, por causa do suor – um suor produzido pela febre alcoólica.

– Amiga do gringo? Fujo dele. O velho me inspira um medo desgraçado.

– Acha que ele tá em casa?

– Tá não. Passa a maior parte das 24 horas do dia cuidando da floresta. Ele atira pra matar nos caçadores que flagra na reserva. Já matou mais de dez. Lenhadores, então!

Olhei Heliodora, estarrecido. Ela riu.

– Você é o cara mais besta do mundo – balançou a cabeça, descrente da minha ingenuidade. – Mas eu vi o cadáver de um caçador abatido pelo velho. Ele matou o cara e levou o corpo pra nossa casa. Deu uma confusão dos infernos, inquéritos, processos, um pandemônio.

– É... Matar gente não é como matar passarinho – eu disse.

Heliodora passou a linguinha rósea nos sorridentes lábios polpudos e arrematou:

– Por causa da confusão com as autoridades, o gringo resolveu enterrar os corpos por aí, no meio da mata.

Então achei que já eram demais aquelas gozações de Heliodora. Tinha cabimento um velhinho centenário matando e depois enterrando seres humanos por aí como se estivesse plantando batatas?

– Vamos dar uma olhada no interior da cabana? – surpreendi-me a propor, num arroubo de coragem.

– Eu topo! - ela exclamou, entusiasmada.

Colocamos nossas mochilas em cima de um carrinho de mão feito de madeira, empurramos a pesada porta e entramos. A cabana não tinha divisões – era um amplo espaço tendo um fogão de pedra num canto com uma pilha de achas ao lado; um guarda-comida rústico, cheio de panelas de barro e uma cama grande construída com galhos, sem colchão e tendo como tablado um trançado de couro cru. Uma das paredes estava completamente tomada por livros antigos, encadernados e em brochuras, todos apresentando uma cinzenta camada de bolor. No centro do cômodo havia uma mesa tão artisticamente entalhada que enlouqueceria alguém apaixonado antiguidades, além da única cadeira no mesmo estilo – mas o que realmente nos chamou a atenção foi um estranho objeto ovalado de um metro de altura, se tanto. Estava encostado na parede onde ficava a porta de entrada, por isso não o víramos imediatamente.

– É um ovo de dinossauro! – exclamei.

– Não seja besta! Os ovos de dinossauro são vinte vezes menores. Depois, não está vendo que essa coisa é feita de cerâmica?!

Aproximamo-nos. Apalpamos o ovo gigantesco – uma leve camada de poeira se espalhou no ar. Trocamos um olhar e caímos na risada, o vinho que tínhamos bebido finalmente completara o trabalho em nosso organismo. Estávamos bêbados. Heliodora pousou os olhos na pilha de lenha ao lado do fogão. Compreendi suas intenções.

– Pega logo aquele pedação! – eu ordenei.

Ela foi à pilha, pegou dois paus robustos, entregou-me um deles e com golpes brutais arrebentamos o ovo. Subiu uma nuvem de pó, um cheiro de amônia e, logo em seguida, entre os cacos de cerâmica surgiu, em posição fetal, uma pessoa mumificada. Estava nua e o couro enrugado, grudado nos ossos, era da cor de charuto. Os longos cabelos negros caindo em cima do rosto exibindo o tétrico sorriso da morte indicavam que era uma mulher. Estávamos assim, pasmados com a descoberta, quando um urro de dor nos arrepiou os pelos do corpo.

Voltei-me e vi – o cara dentro da cabana nada tinha do homenzinho que eu desenhara na imaginação, pelo contrário, era um sujeito de estatura fantástica. Pela ordem de impressão, a primeira coisa que notei foram os braços poderosos cruzados sobre o peito descomunal e depois, sucessivamente, o pescoço taurino, o rosto barbeado tão encarquilhado que parecia um pergaminho milenar e, no fundo das imensas cavidades orbitais, dois olhos de um azul turquesa reluzindo em chispas de cristal – trajava um conjunto safári marrom; botas de cano alto; na cabeça de cabelos grisalhos trazia um chapéu castanho de caubói. Na cintura tinha uma cartucheira carregada e nas costas uma carabina de dois canos.

Em poucas passadas alcançou-nos. Ajuntou-nos pelas orelhas e, sem ligar para nossos berros, jogou-nos porta afora. Caímos no quintal como se fôssemos sacos de feijão. O gringo apontou-nos um dedo apocalíptico:

– Vocês ofenderam o espírito de N’garypwl, seus filhos da puta! Vão ter agora que fazer outra urna funerária para a minha esposa!

Voltou a pegar-nos pelas orelhas e foi nos arrastando pelo chão, nossos corpos amassando as plantações de especiarias, colidindo com tocos e pedras. Fomos levados para o ventre da floresta, nossos berros animavam os símios nas árvores, o barulho era ensurdecedor. Talvez tomado pela consciência de que iria descolar-nos as conchas dos ouvidos, o gringo trocou-as por nossos braços – a mãozarra fechara-se em torno dos músculos como torquês e, caso ele fizesse um gesto mais brusco, adeus clavículas.

Ao cabo de meia-hora, chegamos às margens do rio. Ali, o gigante largou-nos e mostrou com o dedo um barranco de argila.

– Vão buscar o barro.

Tive um súbito ataque de choro.

– Nunca fiz nada assim – disse.

– Nem eu – secundou-me Heliodora, também chorosa.

– Ah! Vão aprender! Ou aprendem ou eu os como vivos. Vocês vão fazer outra urna nem que demorem anos!

Então Heliodora começou a vomitar uma gosma de alimento e vinho. Em instantes eu a acompanhava na vomição.

O homenzarrão olhou-nos com desprezo.

– Estão bêbados – disse. – Podem ir para casa. Mas vou buscá-los amanhã, ao nascer do sol. Agora, sumam da minha frente!

Nunca corri tanto na minha vida. Quando chegamos em casa, já no crepúsculo, estávamos lanhados e completamente curados da bebedeira. Antes de entrarmos – pela porta dos fundos – eu disse:

– Eu vou pra casa, Heliodora. Nem que for a pé.

Minha prima me fulminou com o olhar.

– Ah, é? Covarde! Entramos nessa enrascada juntos e vamos ficar juntos nas consequências, que diabo!

*

Tomei banho com meus tios e minha prima na piscina térmica. Não dei um pio. Meus tios também nada perguntaram. Depois fui para o quarto, alegando que não queria jantar – novamente meus tios não quiseram saber dos motivos. Sentia-me tão cansado, com o corpo tão maltratado que não demorou muito e caí num sono sem sonhos.

Acordei durante a madrugada com um mal-estar muito esquisito. E vi alguma coisa aos pés da cama envolta num círculo de luz alaranjado. Firmei os olhos sonolentos e fui tomado pelo terror. Ali, aos pés da cama, postava-se a índia da urna funerária. Estava nua. Os cabelos despencavam pelas costas. Os seios pelancudos grudavam-lhe no tórax como dois grossos pedaços de couro enrugado, atingindo a altura do estômago. Não tinha olhos. Nos buracos oculares remexiam-se uma infinidade de vermes de uma cor leitosa – contorciam-se e às vezes caíam num deslizar acrobático pela pele escura e gretada onde, aqui e ali, destacava-se a brancura imaculada da ossatura. Vi um braço levantando-se e da mão fechada o dedo indicador distendeu-se e apontou para mim num mudo e terrível gesto condenatório. Eu estava petrificado de terror. Suores gélidos cobriam-me o corpo.

A visagem desapareceu e a escuridão voltou a imperar. Pouco depois a porta do quarto abriu-se de supetão e por ela se lançou uma Heliodora alucinada. Eu sabia que era a minha prima. E mais: estava convicto de termos tido, ao mesmo tempo, a visão fantástica. Enlaçamo-nos. Trêmulos, ficamos cingidos um ao outro até o raiar do dia. Com os clarões da alvorada, aos poucos o horror foi se dissipando. Separamos nossos corpos, a intensa vergonha do medo noturno a nos tingir as faces. Maria Luísa surgiu à porta:

– É pra vocês irem ao refeitório. Agora. Ordens do seo Jeremias – ela disse. E voltou para os seus afazeres.

– Prepare-se que a coisa vai começar a feder de verdade – murmurou Heliodora, mais para si mesma.

*

Para chegarmos à sala de refeições, tínhamos que atravessar a sala de estar. E ali estavam tio Jeremias, tia Ginevra e o Gringo. Sentado numa poltrona, nosso algoz bebia um copo de vinho, as pernas cruzadas. Numa das mãos, sobre a coxa, trazia um chicote. Um chicote que se acionado cortaria até mesmo as nossas sombras. A corja, antes de nos ver, sorria – talvez do destino, meu e de Heliodora, a se desenhar sombrio nos próximos dias. Assim que nos viram, fecharam a cara. O gringo disse-nos, frio e cortante como uma navalha:

– É melhor vocês se alimentarem até a alma sair pelo rabo. O trabalho que os espera é para energia de mulas. – Bateu o chicote na ponta da bota, acrescentando: – E mulas precisam disto!

O aprendizado foi uma coisa insana. Sob o olhar duro do homenzarrão, os ouvidos alertas ao estalar do chicote, ficamos vários dias tirando com as mãos a argila das barrancas do rio, sovando-a como se fizéssemos massa de pão – segundo o velho, tínhamos que descobrir nisso um prazer semelhante ao orgasmo. Depois, antes de iniciarmos a urna funerária, fizemos vasos de todos os tamanhos, panelas das mais estranhas conformações, caldeirões capazes de cozinhar até pedras, utensílios exóticos aptos a destilar de essências florais e substâncias medicinais a bebidas ritualísticas. Aprendemos a queimar em fogo brando as peças, tivemos que saber como realizar a maceração de plantas para a extração de tintas de vários matizes. Fomos obrigados, sob ameaça do chicote, a conhecer os desenhos geométricos indígenas e suas significações (e a maldita urna que havíamos quebrado não tinha nem sinal de pintura!).

Depois de duas semanas, levando marmitas de comida e trabalhando dez horas por dia, já sabíamos o suficiente até para fazer esculturas de bicho, gente e planta. Mais cinco dias e pudemos finalmente ver o nosso grande ovo ao lado da cama do gringo tendo como embrião a múmia indígena – N’garypwl, a esposa do gringo.

– O trabalho ainda não terminou – disse-nos o velho, o chicote batendo ritmicamente nas coxas gigantescas. – Como não vou viver eternamente, no futuro vocês também irão fazer uma urna para mim.

*

Naquele mesmo dia obriguei meus tios a mandarem um colono me levar, de charrete, para a casa dos meus pais. E até hoje estou esperando ser convocado para a fabricação da urna funerária do gringo. Porém, a cada ano que passa mais desconfio que o homenzarrão vá viver, realmente, pelo menos mil anos.

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 01/06/2016
Código do texto: T5653714
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.