Insônia

(Baseado no filme O Operário - contém spoilers)

Estava sendo um dia como qualquer outro. Muito trabalho na oficina, e cobranças do chefe grosseiro para que não atrasássemos, tudo normal, como de costume: Vamo vamo, parem de enrolar, seus putos. Por um daqueles descuidos contra os quais até então me sentia imune, ao manobrar um carro acabei por atingir Marco, que teve o braço esmagado contra uma das paredes da oficina. Puta que pariu, você não tá bem, olhe pra você, parece um fantasma, e quase mata o Marco...que drogas está usando? No fim das contas, poderia ter sido bem pior. Melhor perder um braço a perder a vida. E eu perdi meu emprego. O maldito sono que não vinha. Já havia mais de um ano que apenas cochilava. Dormir mesmo, de verdade, nem lembro quando tinha acontecido pela última vez. Já se tornara hábito passar as noites esfregando os azulejos do banheiro. Também não entendia porque lavava as mãos com alvejante com tamanha frequência. E me assustava com o que via toda vez que passava em frente ao espelho, afinal já tinha perdido algo em torno de 30 quilos. Elisa sempre brincava comigo dizendo que se eu fosse mais magro não existiria. Gostaria de pensar o contrário, mas acho que só dormíamos junto porque eu lhe pagava, assim como faziam tantos outros caras. Já Marta parecia se importar um pouco mais comigo, e até reclamava das gorjetas que eu lhe deixava diariamente. Quando lhe disse que era pela companhia, me falou que eu não precisava pagar para tê-la, o que até me deixou sem graça. De qualquer forma, era por ela que eu passava todo santo dia naquela lanchonete, que nem ficava no caminho de casa. O bolo e o café muitas vezes sequer eram tocados. Ela tinha um filho, estranhamente eu não lembrava seu nome, mesmo que tivéssemos ido juntos ao parque naquele dia das mães. O trem fantasma provocou em mim sensações terríveis e, no menino, uma convulsão que, mais tarde, fui saber tratava-se de algo habitual, ela só tinha esquecido de me contar. Vasculhando os detalhes do episódio que não me saía da cabeça (afinal não é todo dia que você arranca o braço de alguém), lembrei que foi Ivan quem me distraiu enquanto eu manobrava um carro bem maior do que estava acostumado a fazer. O mesmo Ivan que parecia teimar em sempre estar nos lugares nos quais eu estava: na oficina, nos bares ou, se na rua, sempre com seu Maverick vermelho e suas botas de caubói. Eu jurava já ter visto as mesmas botas na casa de Elisa, mas ela já havia me alertado que muitos dos seus clientes ali deixavam roupas para eventuais trocas, sendo assim, pelo menos na ocasião, não me pareceu algo importante. Também pensei ter visto as mesmas botas por debaixo da porta de um banheiro em um bar qualquer em que bebia. Só eu via Ivan. Chegaram a me dizer que nem havia um Ivan trabalhando na oficina. Quando mostrei uma foto na qual ele aparecia, Elisa me olhou como se eu estivesse louco, e me escorraçou de sua casa. No meu apartamento, os bilhetes estranhos que encontrava todo dia, as charadas em forma do jogo da forca que apareciam presos ao ímã de geladeira. Alguém estava tendo acesso e queria brincar comigo. Só podia ser Ivan, que todos juravam sequer existir. O enigma da forca tinha uma palavra misteriosa , e todo dia aparecia uma letra diferente , mas eu ainda não conseguia precisar seu significado. Procurei Ivan e o encontrei num bar. Por que diabos fui colocar aquela faca sob a camisa? O sangue inundou generosamente o chão daquele banheiro sujo, e tive sorte em conseguir retirar aquele pesado corpo degolado dali, pois já era tarde, o bar estava fechando, e o Carioca estava distraído, muito provavelmente bêbado, contando os trocados do caixa. Da mala do carro o corpo chegou até o rio, mas tive a impressão de que, após lança-lo barranco abaixo, não ouvi barulho nenhum que indicasse o seu encontro com a água fria. A lanterna às minhas costas me surpreendeu e me confundiu ainda mais, e ouvi a mesma pergunta que já havia lido antes em bilhetes deixados na porta da geladeira: quem é você? Ivan sorria sarcástico. Marta existia, agora, apenas nas minhas memórias, assim como seu lindo filho que, naquela tarde fria, perdia a vida atropelado pelo Maverick que avançara o sinal igualmente vermelho. Agora lembro com clareza de Marta correndo em direção ao pequeno corpo estendido no asfalto, momentos antes do Maverick ganhar a estrada enquanto eu amaldiçoava o momento em que me distraí ao volante, acendendo um cigarro. Ivan foi talvez a personagem mais importante nessa fase da minha história, pois me fez acordar de um sono no qual eu pensava estar desperto. Ivan me fez enxergar um pesadelo que eu tentara ao longo dos últimos anos sufocar. Ivan foi a peça chave na trama de alguém que podia ser perfeitamente definido pela misteriosa palavra, agora completa, do enigma na porta da geladeira: assassino.

Sérgio Kuns
Enviado por Sérgio Kuns em 25/05/2016
Reeditado em 26/05/2016
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