MORTE SÚBITA!
A tarde já ardia covarde ao sol, quando Gabriel entrou na padaria para comprar pão naquele domingo ensolarado e se deparou com aquele homenzarrão quase bêbado, desagradável, mal cheiroso, que não parava de olhar para ele com ironia e desdém. Gabriel o reconheceu, era o ex-garçom do gabinete do prefeito, justamente a função que ele exercia desde a eleição do novo prefeito.
Gabriel pegou o saco com os pães quentinho e saiu da padaria, não queria briga ou discussões. No entanto acintoso o homenzarrão começou a segui-lo e o alcançou rapidamente lhe desferindo um violento chute na bunda, em seguida disse em voz alta “vou acabar com você, você roubou o meu emprego, palhaço”.
Gabriel era possuidor de considerável vigor físico e gozava de uma excelente saúde, a sua complexão física era perfeita e bem proporcionada, apesar de ser anão com seus 99 cm de altura, exceto talvez pela cabeça grande demais. Cabelos negros, lisos, rijos e espessos com entrada nas têmporas, o que tornava a sua testa mais digna de atenção pela largura do que pela altura, as sobrancelhas eram pretas e unidas; o rosto pequeno fora isso, o rosto dele se parecia com o de todos os outros homens.
Gabriel atingido de forma covarde pelo violento chute, rola pelo chão, imediatamente lhe vem à cabeça a idade de oito anos quando foi para a escola primária. Os colegas caçoavam muito dele, alguns batiam nele, obrigando-o por motivos de violência e gozação acintosa a deixar os seus estudos.
Estatelado ao chão, gemendo e se contorcendo em dores, prestes a morrer ali estava Gabriel, um homem que até os vinte anos era um completo moleque, mas convivia com poucos amigos, brincava de bolinha de gude, carrinho, jogava bola na rua, não tinha pelos ou barba, não tinha nada. Era um moleque na acepção da palavra e foi se tornando homem quando lhe vieram os primeiros pelos embaixo dos braços, no peito e nos órgãos genitais, começou a fazer barba e bigode feito gente grande aos vinte e dois anos.
A sua mãe o privava de muitas coisas, ela nunca o levou ao médico, não queria expô-lo, no fundo morria de medo que o filho virasse cobaia deles. Gabriel acabou indo ao médico pela primeira vez por conta própria, quando tinha vinte e dois anos, mas aí já era tarde demais para tratar o seu nanismo.
Nesta época a sua mãe morreu enquanto dormia, ela teve um ataque do coração, sem ter com quem ficar levaram Gabriel para morar com a avó alcoólatra no pequeno sítio da família. Um dia apareceu um homem dono de um circo e perguntou a ela se queria dar o pequeno neto para o circo, Gabriel não sabia o que era circo, nunca tinha visto um.
Para não variar, a avó estava cheia de cachaça, chumbada mesmo, acabou dando o rapaz para o circo sem lhe perguntar se queria ir ou não, sem entender nada Gabriel foi chorando. O circo foi à maior alegria da sua vida, quando a cortina vermelha subia e Gabriel entrava correndo no picadeiro caracterizado como o atrapalhado palhaço Totó, era aquela coisa extraordinária, o povo rindo, gritando o seu nome; Gabriel se sentia importante, era o único baixinho que o povo se levantava para ver.
Com o circo ele conheceu o Brasil e alguns países da América do Sul, independente do país ou cidade por onde passava, quando andava pelas ruas o pessoal sempre o chamava com apelidos, tampinha de garrafa, pintor de roda pé, assim por diante, Gabriel não dava atenção a essas provocações. Às vezes as pessoas mais curiosas queriam saber e lhe perguntavam por que ele era tão pequenininho, muitas queriam tirar uma foto ao seu lado, com alegria Gabriel sempre se deixou fotografar, sempre brincou com as crianças que passavam por ele pelas ruas.
No fundo Gabriel adorava andar pelas ruas, principalmente quando era reconhecido como o palhaço Totó e lhe pediam um autógrafo, mesmo que muitos o olhassem com gozação, ele não ligava, pois era sinal que estava vivo e passando por ali. Contudo Gabriel não andava mais em ônibus urbano, uma dificuldade para embarcar, devido à altura dos degraus da porta de entrada e quando estava lotado, ele não tinha como evitar e esbarrava a sua grande cabeça na bunda das mulheres; elas ficavam irremediavelmente irritadas, muitas reclamavam, e o chamavam de anãozinho tarado, tudo muito constrangedor, alguns passageiros riam da situação, um aborrecimento para ele.
Gabriel levou um segundo chute, o homenzarrão gargalhou quando viu o anão ser arremessado sem piedade alguns metros à frente e se contorcer em dor, Gabriel pensou na sua esposa, lembrou-se que não queria se casar com uma anãzinha. Quando ele andava pelas ruas e avistava uma anã caminhando em sua direção, atravessava a rua só para não encontrá-la, no entanto acabou se casando com uma anã, a Joana, eles são inseparáveis não vivem um sem o outro.
O casamento deles foi um acontecimento muito importante na cidade, casamento de gente simples, gente pobre, mas muito importante, a noiva Joana chegou à igreja no carrão importado do dono do circo, que contratou cinco motos para abrir caminho à frente, bastante barulho, muitas pessoas observando a chegada da noiva. Os convidados queriam ver os noivos no altar e não viam, então subiam nos bancos e o padre dava bronca, “irmão desçam já dos bancos, que é um casamento normal igual aos outros”.
Os convidados insistiam e gritavam “eu quero ver os noivos”, enfim foi sem sombra de dúvida o dia mais feliz da vida de Gabriel, com uma festança inesquecível no picadeiro do circo. Em seguida Joana deu uma verdadeira canseira no noivo na lua de mel, que não negou fogo na pequena viagem de núpcias.
Os poucos móveis da casa deles eram todos pequenininhos, porém uma coisa muito especial para o casal, depois nasceram às crianças, começaram a crescer e quando elas viam os móveis queriam brincar de casinha. Logo as meninas estavam bem mais altas que os seus pais e nenhuma das duas tiveram problemas de crescimento, graças ao bom Deus.
Gabriel levou um terceiro e violento chute, estava frente a frente com sua realidade, a morte, prestes a morrer estava um homem aposentado que morava na sua cidade natal e trabalha com uma pessoa muito importante, o prefeito. A turma tinha até um pouco de inveja, dorzinha de cotovelo mesmo. Um dia entrou para servir o cafezinho para o prefeito, ele disse “Gabriel põe a bandeja sobre a mesa e senta aí meu amigo, vamos jogar um pouco de conversa fora, me conte uma das suas histórias”.
Gabriel era homem de confiança do prefeito, era um homem feliz, de bem com a vida, porém se pudesse escolher na próxima reencarnação não queria nascer anão de novo, não. Nutrido deste sentimento de querer ser igual aos outros homens, Gabriel convenceu o prefeito a lhe arranjar um porte de arma, e assim foi feito, ele comprou um bom revólver calibre 38.
Nada mais democrático, pois achava que o revólver igualava os homens e realmente igualou quando Gabriel disparou um tiro perfeito, fatal, no peito do homenzarrão, em legítima defesa da sua vida, depois do seu algoz tentar lhe acertar um quarto e violento chute. O homenzarrão voou para trás caindo de costas ao chão, sem reação nem chegou a dar o último suspiro, teve morte súbita.
Gabriel não foi condenado pelo crime, o júri popular aceitou a tese do seu advogado, legítima defesa. Depois deste lamentável fato nunca mais na cidade, ninguém teve coragem de fazer brincadeiras de mau gosto com Gabriel, talvez por entenderem que o revólver 38, instrumento de força e poder, realmente igualam os homens, ou por entenderem que todos os homens de bem mereçam respeito.