UMA GRANDE PAIXÃO

Falar de amor, esse sentimento que inunda a alma, capaz de transformar a vida de um ser humano, seria algo fácil, estimulante até, para certas pessoas que o viveram em sua plenitude e fizeram desta experiência a razão de sua felicidade. A filosofia do amor transcende o senso comum, não cabe na lógica dos prontuários psicanalíticos, muito menos se deixa entender nos confrontos legais. Não há magistrado, sob cuja toga transborda a autoridade, tendente a transigir com as incertezas do amor.

A hospitalidade e cortesia do Duque de Berwick e sua honrada esposa eram a alegria e descontração dos meus fins de semana. A aristocracia de Aberdeen fazia-se ali representar por três ou quatro velhos e antigos nobres, tristes, nostálgicos com a perda da influência do seu sangue azul, mas gozando sua nostalgia, deitados sob a abastança proporcionada pelos títulos vitalícios que os distinguiram. O tempo, esta categoria inexorável, cobra de cada um de nós o seu usufruto sem, no entanto, fiscalizar a forma pela qual o fazemos. Os verdes anos da juventude, a alquimia promissora, capaz de manter acesas as esperanças e despertar veleidades já não faziam parte da roda sempre presente na casa do Duque.Tínhamos em comum as lembranças de tempos idos e as despejávamos em doses de galhardia sobre os ouvidos atentos de nossos companheiros.

Uma noite foi especial. O inverno rigoroso reunia-nos ali mais cedo do que era de costume. A chuvinha fina, carregada pelo vento, açoitava as vidraças da janela desprendendo gotículas, fazendo tosca a paisagem. Aqui, ao pé da lareira, bem juntos para melhor nos aquecermos, expressávamos em risos, às vezes em gargalhadas e outras vezes em lágrimas, toda nossa emoção diante das narrativas.

– Conte-nos, Sir. Conte a nossos amigos a história que deixou, a mim, pasmo e emocionado.

O Conde de Rothesay olhou-me e sorriu. Seus olhos brilhavam de ansiedade. Trazia ainda consigo grande parte da alegria e do viço que marcaram sua juventude e o auge de sua vida de nobre. Os olhos grandes e verdes transbordavam de vivacidade. A pele do rosto não parecia sentir ainda o efeito dos setenta e quatro anos que estava prestes a completar. Não fosse a cabeleira basta e grisalha e a barba branca, ter-se-ia um garoto na figura do Conde. Tinha com o cachimbo uma relação de fidelidade e de bonomia; fez dele um amigo inseparável, dele cuidava como a um bichinho de estimação. Quando não o pitava, como agora, mantinha-o na mão sobre uma das pernas cruzadas, bem limpo, bem cuidado, ou punha-o no bolso da camisa, mas sempre à mostra. A mim já eram conhecidos os motivos de tal apego e simpatia por este objeto tão simples. Todavia, contada pelo Conde, que a viveu em toda sua intensidade, a história torna-se bem mais interessante.

- Vivi um verdadeiro conto de fadas, meus amigos. Muitos têm inveja e admiração pelo que sou e pelos bens que possuo. Mas, ante aqueles que conheceram o meu passado ou que viveram comigo, sou hoje um pobre coitado, um derrotado na vida. A aristocracia feudal estava em minhas mãos, senhores; durante anos centralizei o poder dos condados. Fui o soberano dos nobres; duques, marqueses, viscondes e outros vinham ter comigo no palácio em busca de soluções para as desavenças de seus governos e retornavam descrentes, muitas vezes, com as sugestões que lhes pareciam vagas ou descabidas, mas aplicando-as, viam que funcionavam e não cabiam depois de gratidão.

“Fora a minha inteligência, desenvolvida pela paciência e furor que dediquei aos estudos, a maior responsável pelo meu sucesso. Sempre fora belo e garboso. Mulheres exuberantes caíam aos meus pés e eu as dispensava, pois poderiam desviar-me do meu propósito. Mas o tempo não para. Embora maduro, inexperiente no amor, porém, fui vencido pelo ardor e sucumbi à paixão. Foi quando esta mulher, senhores, surgiu em meu palácio. Vivo hoje para saborear as lembranças daquele tempo, pois ela foi a única e não haverá outra capaz de tocar minha alma como o fez Isabel.

"À princípio não me dei conta, pois que suas visitas se davam pelos mesmos motivos que todas as outras. Esposas, irmãs e filhas dos nobres que me visitavam, e a outros dentro do palácio, eram lugar comum nas festas e demais eventos que, com frequência, produzíamos no palácio. Comecei a notar, todavia, algo diferente naquela mulher. Brotava de seus gestos, do tom de sua voz, enfim, do conjunto de suas atitudes algo, um mistério que eu não conseguia identificar, mas cujo encanto, pouco a pouca me ia deixando enlouquecido. Tentei por todos os meios impedir que tal atração avassaladora transbordasse em paixão, mas como foram debalde os meus esforços. De tudo fiz para me controlar: cancelei compromissos com o Visconde de Rochford, seu pai, para não ter que vê-la, pois, exibindo a beleza e o frescor dos seus dezenove anos, Isabel não dispensava os encontros oficiais ao lado do pai, como a se promover para uma projeção futura, confiante na influência e no poder do Visconde.

"Mas, a verdade é que eu já estava enfeitiçado. Cada minuto transformava-se para mim em uma dolorosa eternidade longe do olhar de Isabel. Percebi, então, na própria alma, o que antes só conhecia da boca de terceiros; nas conversas da juventude, nas peças teatrais ou nos romances. Achava que minha autoconfiança e o direcionamento da minha atenção quase que exclusivamente aos estudos e à ciência não me deixariam tempo para interesses outros, em minha opinião, tão mundanos. Não demorou muito para que eu compreendesse como estava enganado. As festas no palácio eram acontecimentos já quase esquecidos desde que a monarquia entrara em crise. Não podia ser eu a quebrar esta proibição. Mas, vejam os senhores como a força do amor supera até mesmo as deliberações de um soberano; consegui do rei, usando da minha situação privilegiada, uma autorização especial.

"A condição para isso exigiu de mim trabalho em dobro cujo objetivo era tornar cotizáveis as despesas com eventos sociais. Fui mais além, consegui dos nobres a promessa de contribuir com parte de suas riquezas para o apoio e soerguimento de alguns condados que atravessavam na época seríssimas dificuldades. Retornavam assim as glamorosas noites. São tantas as recordações daquela época e tamanha a minha saudade! O que realmente marcou minha vida foram os deliciosos momentos que desfrutei ao lado de Isabel. Aquelas noites nos proporcionaram grandes momentos de descontração. Éramos mais soltos, descompromissados, os atavios das nossas rotinas palacianas davam lugar a mais genuína informalidade. Tínhamos nos trajes, nas bebidas e até no jeito bonacheirão de nos tratarmos as atenuantes de nossa licenciosidade. Foi neste clima festivo que adquiri coragem de me aproximar de Isabel.

"Não foi difícil. Minha inteligência, o poder que eu havia adquirido até ali e a notória ascensão financeira atraíram para mim a admiração e o respeito daquela mulher. Mas, pairavam no meu espírito e isto até hoje me atormenta, a incerteza; se tive realmente o seu amor. Não há na vida de um ser humano dúvida tão cruel como estar ou não sendo amado. O que começou primeiro às escondidas, timidamente, foi-se tornando óbvio até que manter nosso segredo tornou-se impossível. Isabel completou dezoito anos e, com a velocidade de um raio, inebriado pela paixão, o mais feliz dos mortais, vi-a comemorar o vigésimo sexto aniversário de sua existência. Alcancei nesta época o dobro de sua idade.

"A tragédia que se abateu sobre a vida de minha amada fê-la apegar-se ainda mais a mim. Viu em mim, além de um amante fervoroso e apaixonado, um amigo sempre presente e um pai carregado de atenção e de afeto. Perdera-se o Visconde nos descaminhos do poder. Não soube manter o amor da mulher que o amava perdidamente e lhe havia dado uma filha tão encantadora como Isabel. Com uma vida afortunada e aparentemente feliz ao lado daquela que escolhera como esposa, pôs tudo a perder, destemperando-se em atos não dignos de um nobre: a ascensão acabou por trazer-lhe a desgraça. Acumulou amantes, fazendo infeliz a mulher que, desgostosa, matou-se. Ele, por sua vez, caiu assassinado por um rival cuja honra manchara. Apenas o tempo e o meu amor sincero, a minha lealdade, ajudaram a amenizar a dor de Isabel. Os quase dez anos que se seguiram foram repletos da mais contagiante e indescritível forma de felicidade. Nunca pensei ser possível a um ser humano desfrutar tal ventura.

"Comecei a notar, contudo, uma mudança nas atitudes de minha amada. Se há um mal estar que acomete os verdadeiramente apaixonados, este se encontra na frieza e na indiferença com que se é tratado pelo ser que se ama. Cada sorriso forçado, cada beijo negado ou cada noite de amor, feito para cumprir simplesmente um ato de rotina, fere profundamente, dilacerando a alma como nada se lhe compara. Foi assim durante semanas, meses a fio. Até que descobri - e isto me dói só de pensar, quanto mais de falar a respeito. Mas, vamos lá, ouçam o fim da história. Ela tinha um amante. Meu círculo de influências levou-me sem muita dificuldade a esta confirmação e consequentemente ao encontro do meu inimigo. Era ele um dos filhos do Duque de Longueville, belo e forte mancebo, cinco anos mais velho do que Isabel.

"As noites insones, repletas de sentimentos destruidores, passaram a me atormentar. Qual seria a razão de tal traição se nossas vidas pareciam completas em todos os sentidos? As incertezas, somadas à profunda tristeza e desgosto, encaneciam-me os cabelos, sulcando-me as faces e levando minhas esperanças de reconquistar o amor de Isabel. Riqueza material não lhe faltava, tampouco o meu carinho. Poderia estar buscando em outro a juventude que não via em mim e que nela era tão palpitante? Poderia querer um filho que até aquela altura não tínhamos, mas uma adoção já fazia parte dos nossos planos?

"Não suportei durante muito esta tortura. Toda história de minha vida sempre fora marcada pela determinação e pela coragem. Se me encontrasse frente a frente com o meu rival seria para eliminá-lo de uma vez da vida de Isabel, nem que para isso um assassinato tivesse que ser cometido. Com a alma arrasada, mas sem demonstrar isto a ele, procurei-o. Propôs-me um duelo; seria a forma digna de reconquistar meu amor, paixão maior da minha alma e, naquela altura, minha única razão de viver.

"Numa manhã ensolarada, tendo sido cumpridas todas as formalidades, no pátio do castelo, éramos o centro das atenções e das expectativas. As de Isabel pouco me importavam; se me amasse verdadeiramente não teria feito o que fez. Mas, não a culpo; a juventude tem lá suas vantagens sobre uma alma esboroada pelo transcorrer das décadas que, não raro, torna friável um coração. Isto me fez cínico perante todos, mercenários, ávidos em assistir o desenlace de mais uma louca história de amor. Digo cínico porque não liguei aos seus interesses; as apostas pendiam contra mim. Tampouco dei crédito ao choro de Isabel, ignorei suas súplicas. Amava-a de tal forma que desejei por instantes morrer para proporcionar-lhe chances de encontrar a felicidade que eu não soube lhe dar.

"Estávamos posicionados, costa com costa. Em nenhum momento, ao contrário do que fora com Isabel, havia cruzado com o olhar de meu contendor. Caminhamos os dez passos, como era de praxe e, no momento em que me virei para efetuar o disparo, fui atingido no peito, exatamente na altura do coração. Caí. Senti que, ao redor de mim, vozes exclamavam satisfação e vitória. Mas, eu não morri como muitos ali esperavam. Prostrado, reconheci os lamentos e os soluços de minha amada. Como gostaria que tivesse corrido e me abraçado! Mas não o fez, é certo que por causa do outro.

"Minutos se passaram e como não constatasse o médico a cessação das batidas do peito, não vira sangue, buscaram em mim o ferimento à bala e não encontraram. Estupefatos, atribuíram à magia ou algum truque o que tinha ocorrido. Pegaram do conde a arma e a examinaram. Estava perfeita, as balas eram de verdade. Somente após um intervalo de total espanto e comoção, alguém, apresentando ao juiz a camisa que me haviam tirado, tornou claro o milagre.

- Olhe isto - disse o gendarme que pegara a camisa.

"Então todos compreenderam. O cachimbo, senhores, este humilde e servil objeto que sempre trago comigo foi o motivo da minha salvação. Sequer dera-me conta de que o tinha no bolso, como faço de costume, e foi este gesto rotineiro que me poupou a partida deste mundo; a bala certeira ali houvera resvalado sem me deixar qualquer ferimento além de um consequente desmaio. Compreendi que continuaria a viver, mas não para ter Isabel. O destino resguardara a minha existência a fim de me deixar uma lição: tudo na vida possui a sua hora, o seu tempo e o seu retorno. Se a forçamos a nos dar o que vai além da nossa capacidade de usufruir, pagamos um preço, que pode ser caro demais. Saber se vale ou não a pena cabe a cada um fazer o seu próprio julgamento. Mas, sou feliz hoje com o que sou e com o que tenho, embora a saudade cumpra às vezes o seu papel. E duas lágrimas desceram sorrateiras pela bela face rosada do duque.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 19/05/2016
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