Formigas
Formigas não trafegam sobre a água do mar. Aqui não há o seu elemento precioso: a terra. Era este o meu pensamento enquanto deslizava nas ondas o barco que me transportava. Pouco eu havia comido naquela manhã e sentia já o aperto no baixo ventre. Deixara para trás a fazenda e as térmites gigantes já quase impediam a visão da minha herdade. Como pode um inseto tão insignificante em tamanho causar alarido? Era o que eu não compreendia. Quando elas vêm em fileira por trás da casa e sobem a estreita calçada já sei que vão ganhar a varanda. Naquela manhã quando deixei a fazenda trouxe Granada na minha carroça e larguei-o no veterinário antes de subir para o porto; o cãozinho gemia de dor e isto só fez aumentar o meu desespero e a decisão de vender a propriedade. A dificuldade maior foi colocá-lo na maca. Não havia uma parte do pelo marrom de Granada que não estivesse avermelhada, cheia de pequenas feridas, pontos de sangue, quando não de bolhas enegrecidas. Na parte inferior, do peito até a barriga, formigões graúdos, do tamanho de um marimbondo ou quase isto, grudavam-se esmagados pelos movimentos frenéticos do animal arrastando-se sobre a grama na frente da casa para escapar da fúria incomum que me atingiu naquele ano.
Morei só durante quase todo o tempo em que vivi ali. Quando precisei viajar, fechei tudo e me fui, confiante de que nada de mal surpreenderia a minha volta. Só que esqueci este pequeno detalhe em forma de formigas. Por seis meses estive afastado, o suficiente para elas tomarem conta do ambiente. Eu andava em volta dos montes que já me atingiam a altura do peito; dezenas de buracos em cada. Quando eu batia com a enxada, querendo derrubar alguns deles, na primeira pancada o medo já me dominava. Só não voavam por falta de asas. Ao ver a terra caída em volta das botas, eu estava a salvo, mas por pouco tempo. Se não corresse era uma insônia na certa; insônia de dor, de mordidelas, de um sofrimento insuportável. Se me descuidasse e mantivesse a mão no cabo que tinha a enxada, uma só formiga que conseguisse chegar até ali acabaria com o meu dia. Não mais vivia sem botas, sem luvas e sem uma cobertura de mangas até a extremidade dos braços, sem deixar desprotegido um milímetro sequer do meu corpo. E o que é pior, tinha que andar assim o dia inteiro.
O prazer que sentia de estar na água não cabia em mim. Só mesmo a tristeza por ter que me desfazer do pedaço de chão que tanto amava para empanar aqueles momentos. Distraí-me um pouco com algumas bolachas de água e sal fornecidas por um companheiro de viagem. A cada mordida olhava o mar; o ritmo da mastigação se igualava ao vaivém das ondas, elas faziam dançar a embarcação. Minhas mãos quase tocavam a água salgada, deixando-se respingar. Não fosse esse relaxamento e a conversa que mantinha com o colega eu não teria motivos para estar bem. Ele era animado, bom falante, diverso daquele conversador azucrinante que não permite ao vizinho de assento um minuto sequer de pura reflexão e de paz. Tirando as migalhas que o vento jogava na minha direção toda vez que ele sacudia a enorme barba grisalha, foi um sujeito simpático do começo ao fim da viagem. Conversamos um bocado, trocamos experiências, falei das formigas e mostrei, no dorso das mãos, as feridas cicatrizadas.
- Isto deve ter doído um bocado – ele me disse.
- Você não faz ideia. Mas o pior já passou, pelo menos para mim, eu espero.
Se eu fechava os olhos para tentar cochilar, antes que o cansaço me levasse a isto eram as formigas que me desfilavam no pensamento preocupado. Eu relutava para afastar o batalhão de saúvas e outras espécies nocivas escalando meu cérebro. Os tentáculos protuberantes empenhados na marcha, as antenas salientes e a carga esbranquiçada saindo do meio da terra; grãos de comida, caroços, sementes, folhas de seiva, um armazém em movimento, fruto da inteligência instintiva. Tanto atrás como à frente da casa as térmites viraram o cartão de visitas do rancho. A coragem não tinha a força da curiosidade; mantinha, no uso das máquinas que fotografavam somente de longe, bem longe, o alvoroço que elas faziam. Alguns motoristas paravam e captavam o espetáculo; carroceiros já acostumados a passar por ali sabiam que não podiam parar no caminho. Se isto se tornasse imperativo e as patas dos seus animais cavassem a terra, o sinal era evidente. Um rincho, o cavalo empinando queria dizer formigas a vista, prontas para o ataque.
- Agora, ouça a minha história, amigo - disse para o meu vizinho no barco, arrancando-o de um início de cochilo. Esta introdução fê-lo despertar de todo e ele voltou a face a fim de escutar o caso.
– O que vou contar poderá parecer ao senhor inacreditável, mas tenho provas da pura verdade e a ciência já começa a trabalhar com as amostras que estão no instituto de pesquisas. Ouça-me com atenção.
E comecei a destrinçar o que havia, em menos de uma semana, transformado completamente a minha vida, a começar pelo meu retorno ao rancho depois de uma viagem ao exterior a negócios.
- As térmites já alcançavam metro e espalhavam-se pelo quintal; contei trinta e duas, na frente e atrás da casa. Duas delas se interpunham entre a porta dos fundos e uma pequena horta que eu havia iniciado e esperava agora uma deliciosa colheita. Mas que horta? Não havia mais nada. Os pés de tomate estavam moribundos, pilhados pelas intrusas selvagens. Alguns frutos secos ainda pendiam dos galhos. Folhas contar-se-iam nos dedos e, mesmo assim, comidas, cheias de furos. Sementes apodrecidas se espalhavam na terra. Amaldiçoei os insetos. Nada mais podia fazer para recuperar o que me encheu de trabalho e esperança de uma magnífica colheita. Paramentado, saí pisando, esmagando sob minhas botas o que ainda restava. Havia fileiras e fileiras de formigas graúdas e avermelhadas subindo e descendo dos galhos, cavando o solo, um batalhão encaminhando-se para as térmites, carregando o produto do roubo. Para todos os lados havia desses exércitos alinhados. À medida que subiam os montes de terra endurecidos e esburacados iam desaparecendo enquanto novas tropas saiam por outros lados; era o que acontecia em cada pedaço da propriedade.
“O que se passava no interior daquelas cavernas era incompreensível para a minha concepção. Formigas não fazem ruídos, mas eu ouvia algo ao me aproximar da cada térmite. Era um som agudo, sibilante que me incomodava. A experiência de ter tentado arrebentar os montes resultara em insucesso e feridas pelo meu corpo e eu agora tinha medo de me arriscar novamente. Em todas de que me aproximei era o mesmo som incomum. Saí, contudo, para buscar a enxada e matar minha curiosidade. Ao caminhar para o depósito ao fundo do terreno, o que vi me encheu de terror. Havia ali uma térmite, um pouco mais afastada das outras, quase colada ao muro e, em altura, ia o dobro das demais. Estranhei o tamanho da erva que há meses não capinava; deveria estar muito elevada àquela altura. Mas, não. Foram as formigas que a haviam devorado. Peguei a enxada e voltei, pisando no capim; sentindo, a cada passo, um crepitar de estrangulamento. Começaram a me subir pelas botas insetos, pasmem, do tamanho de uma barata, mas que não eram baratas; eram formigas. Foi tudo frações de segundos. Eram dezenas delas. Já me alcançavam a cintura.
“Por sorte e precavidamente, não expunha meu corpo as sua investidas, mas se chegassem ao pescoço certamente me morderiam e isto poderia ser o meu fim. Larguei a ferramenta e corri alvoroçado. Enquanto o fazia, passava e repassava as mãos enluvadas com a rapidez de um raio, impedindo-as de alcançar minha pele, mas até quando? Senti uma mordida e soltei um grito de dor. Com uma das mãos, arranquei o maldito do meu pescoço e ele veio encharcado de sangue, do meu sangue. Já próximo da entrada da casa, me desfiz de toda a roupa, sempre me debatendo para não ser mordido outra vez. Esta cicatriz que o senhor está vendo embaixo da minha orelha é o resultado daquele dia amaldiçoado.
“Lancei, sobre o muro, para um terreno baldio do outro lado, tudo de uma só vez: botas, calças, jaqueta e luvas. Tal frenético era o meu estado que não atinei estar agora desprotegido. Mas não me importei muito com isto. Fechei-me dentro de casa naquela noite e cuidei da minha ferida, dominado pela dor e pelo desespero. Mal dormi. Acordei com a gritaria que vinha da casa vizinha além do terreno abandonado. Assombrados com a invasão os moradores ganharam a rua amparados pelos homens do corpo de bombeiros. Olhando através da vidraça compreendi a razão de tudo aquilo. Como que fugindo a uma intervenção humana a sua fatal proliferação elas, as formigas gigantes escalavam o muro, passando para o outro lado. Fui procurado e tive que dar satisfações do desmazelo com a minha própria terra. E como falei, meu amigo, um exemplar deste terrível fenômeno já está sendo estudado. Deixei para trás um estilo de vida que adorava em benefício da minha segurança e também da ciência. Vendi o local para o instituto de pesquisas agrárias. Mas, não me pergunte o que eles vão fazer com aquilo. Não estou nem um pouco interessado.