Pega Totó!
Quando Osvaldinho passou para dentro, a gorduchinha já estava rolando há um bom tempo. Procurou um lugar para sentar, seu amigo de infância Teodolindo ficou de encontrá-lo próximo da entrada do portão sete. Como não encontrou-o, tudo bem, decidiu ir para as arquibancadas numeradas, ficou na fila A-1 cadeira 259.
Teodolindo é doente por futebol, em especial seu time da cidade. Nunca vi uma pessoa sofrer tanto por um time como ele, sofria mais que puta-abandonada, era uma lamúria, dava dó ficar ao seu lado quando seu time jogava. Nesse dia seu time estava jogando. E lá estava Osvaldinho assistindo a peleja sem seu amigo de infância, fato este que propiciou para Osvaldinho observar tudo com mais calma, tranquilidade e até uma serenidade prazerosa, ver coisas, pessoas e comportamento das pessoas com as coisas.
O estádio era, digamos, hilário. O arquiteto era o filho do delegado da cidade, e esse como concluiu seu curso na cidade grande era muito respeitado, era tratado por todos de ‘doutor’, doutor pra cá, doutor pra lá, até que um dia resolveram fazer um estádio na cidade. O juiz da vara criminal sugeriu seu neto, filho do delegado, doutor Legalhardo, o prefeito não se opôs, afinal Angulino estudou na cidade grande.
Quando as obras começaram, alguns atritos e aborrecimentos vieram juntos. O arquiteto tinha como mestre de obras senhor Pedregoso das Antilhas. Senhor Pedregoso era um verdadeiro engenheiro, diziam que ele sabia mais que os engenheiros formados nas cidades grandes. Todos da área da construção civil na cidade eram unânimes, se a reencarnação fosse algo verdadeiro, senhor Pedregoso fora aluno de Arquimedes, o grande matemático grego.
Quando fizeram o primeiro viaduto na cidade, Pedregoso cantou baixinho na orelha do engenheiro chefe: - A ponte precisa de mais subidinha, isto aí é pouco. O engenheiro pediu para o pessoal da ferragem subir mais 5 graus. Pedregoso olhou e cantou novamente no escutador do chefe: - Mais a metade disso aí. Assim foi feito, o viaduto depois de pronto que tinha duzentos e trinta e sete metros de extensão com 9 graus de inclinação, foi considerado uma obra de arte, o engenheiro chefe durante a comemoração era só sorriso. Senhor Pedregoso estava em casa, mas via a festa de longe, pensando: nada melhor que um trabalho realizado, não há festa que pague isso.
O problema da construção foi que, quando senhor Pedregoso avisou o arquiteto chefe que a construção deveria seguir de tal maneira, o neto do juiz, nem vacilou em dizer um sonoro não, o mestre de obras tentou mais uma vez, quando o chefe já irritado lhe fez duas perguntas: – Quem é o engenheiro chefe aqui e onde o senhor se formou para dizer ou repreender um diplomado?
Senhor Pedregoso não respondeu a primeira nem a segunda, apenas garantiu ao arquiteto chefe que seguiria suas ordens cegamente. Quando o estádio foi inaugurado esse estava assim.
As avenidas paralelas com os lados maiores do estádio eram Avenidas dos Tamancos e Avenida do Salto Alto. As ruas paralelas com os lados menores do estádio eram Rua das Bezerras e Rua Boi Morto. O lado do estádio da Avenida dos Tamancos com a rua do Boi Morto, seguia dez metros a mais, enquanto que o lado da Avenida do Salto Alto com a Rua das Bezerras passava doze metros.
Nas esquinas os ângulos eram todos diferentes, o primeiro lado tinha 30 graus, o segundo tinha 45 graus, o terceiro tinha 69 graus e o último tinha 77 graus. Dentro do estádio o lado da Rua das Bezerras a arquibancada era côncava, enquanto que do outro lado era convexa. O corredor que ficava entorno do campo numa extremidade começava com dez metros de largura e terminava na outra extremidade com um metro e quarenta e cinco centímetros de largura. A altura do estádio era assim, na esquina do ângulo de 77 graus a altura do estádio era de 40 metros, na esquina do estádio que ficava na diagonal com o de 77 graus o estádio estava com 40 metros de altura também, já os outros dois ângulos o estádio atingia a altura de 28 metros.
A população com o tempo passou a chamar o estádio de campo da tonteira. O fato é que, as curvas davam uma sensação de profundidade. As cores alternadas faziam a visão dos torcedores tropeçarem, afinal a arquibancada ora amarela ora bege, às vezes dois degraus da arquibancada viravam um. Pior! Às vezes três degraus da arquibancada viram um, tombo na certa.
Quando a galera tomava umas biritas ficavam meio zonzo, meio tonto e pulando para comemorar um gol, a sensação de tonteira batia, pois era uma sensação de tonteira tipo ondas do mar, ora vem, ora vai, até que o cidadão decidia: - É melhor sentar, senão eu caio e racho a moringa lá em baixo.
Osvaldinho estava segurando um copo de cerveja quando achou melhor se livrar das ondas, jogou o copo fora. Como? Jogou a cerveja no bandeirinha e o copo guardou para jogá-lo na lixeira. A galera ao seu lado vibrou, pois o bandeirinha havia anulado um gol do time da casa. Osvaldinho acreditou que foi uma boa ação, pois a quantidade de nomes compostos que eram dados ao auxiliar do juiz era de arrepiar, ao jogar todos riram e a xingação acabou.
O jogo estava zero a zero do segundo tempo, a partida já estava com trinta e sete minutos quando Teodolindo aparece ao lado de Osvaldinho, meio chapadão com um copo de cachaça não mão, já falando com a língua grossa e movimentos indecisos, porém alegre, afinal seu time atacava constantemente. Teodolindo sentou do lado do amigo, gritava, esbravejava e ruminava coisas confusas. Como Osvaldinho era mais chegado em literatura do que futebol, tudo ali era bom e divertido, até que começou a atentar para algo inusitado, ilógico, diria estapafúrdio.
O lateral direito era um sujeito de 1,69 de altura, barbudo, bigodudo e cabeludo à beça, musculoso, mãos grandes, pés enormes, boca grande e lábios carnudos, um olhar sempre vidrado. A torcida gritava quando ele corria atrás do adversário: corre Chupa-cabra, sem dó, fecha, encurrala ele Chupa-cabra, pelo amor de Deus.
O zagueiro central era o Goteira, sujeito enorme. O quarto zagueiro era conhecido por Tarcísio Meira, de estopinho curto, jogava o tempo todo aborrecido. O lateral esquerdo era um cidadão conhecido por Platinado. O volante era um negro gente boa, Totó. O segundo volante era Nicolal, morador do bairro Tira-a-mão. O ponta de lança era o Bilal. Os atacantes eram, Confiança, sujeito desconfiado e arredio e Albertinho, esse foi a última contratação para o time, o presidente foi buscá-lo na Bacia-das-almas, cidade próxima, menos de 100 quilômetros.
O zagueiro central era apelidado de ‘Goteira’; Goteira!? Como pode uma coisa dessa? Afinal goteira vaza, uma chuvinha, um chuvisqueiro e o telhado já vaza, meus-deus-du-céu! Virava e mexia a torcida gritava, segura Goteira, vai que é sua Goteira. Alguns torcedores levavam as mãos ao rosto, outros cravavam as unhas no couro cabeludo e descia trazendo tufos de cabelos.
O volante, o jogador mais importante para a defesa como para o ataque era um negro de quase dois metros de altura, forte e largo como um guarda-roupa aberto, batizado pela torcida de Totó! Meu-deus-du-céu! Totó é nome de cachorrinho de madame, cachorrinho que não pega ninguém. A galera gritava: Pega Totó, cerca Totó, as pessoas olhavam uns para os outros e diziam: Assim não dá, Totó hoje tá foda, parece que comeu carniça.
O atacante, bem; o atacante tinha um apelido que era uma pérola, uma joia, imagine leitor amigo o nome do atacante, faça o seguinte, vá até a cozinha da sua casa agora, dê um tempinho na leitura, tome um cafezinho com bolacha recheada e adivinhe o nome do atacante! Bisonho, isso mesmo, Bisonho, um jogador que parecia que a bola lhe assustava, corria atrás da gorduchinha como se estivesse correndo de um leão, ou que um torcedor lhe atirara uma meleca.
Osvaldinho olhava os torcedores e se perguntava. Como pode! Como pode uma multidão sair de suas casas para torcerem para um time que sua espinha dorsal, seu centro nervoso era formado por Goteira, se goteira vaza, então aquela zaga era um pesadelo para o meio de campo; Totó, se Totó não pega ninguém, a zaga está exposta a chuvas e tempestades, ou seja, vai ter goteiras. Bisonho, o atacante que se assusta com a bola, se esse era a esperança de gol, então só com uma intervenção divina, ou seja, Deus tem que bater uma bolinha com o time da cidade.
Aos quarenta e dois minutos do segundo tempo, o juiz da partida informou ao quarto árbitro: - Mais oito minutos de acréscimo. A partida iria até os cinquenta e três minutos. Aos quarenta e nove começou um trama que levaria a uma tragédia, coisa de novela mexicana.
O time visitante estava na entrada da grande área do time da cidade, o volante do time visitante, Pit Bull abafou Totó e lhe tomou a bola, como um adulto toma um pirulito de uma criancinha, passou a bola para seu atacante, de nome Sanguinário, quando o Sanguinário tentou dominar a bola, essa correu um pouco mais do que de costume, Goteira não hesitou, com seus cento e dez quilos de músculos, bateu na bola com todas as forças que tinha. O pé não acertou a cara da bola, não, acertou a orelha esquerda da gorduchinha, a bola pegou um efeito de rotação em seu próprio eixo alucinante e fez uma curva para a direita de cento e oitenta graus. A noventa graus da curva da bola estava Totó, esse nem pensou duas vezes, encheu a pelota com uma bicuda. Outro efeito na bola, porém bom para o time da casa, pois um efeito com outro efeito se anularam e Totó sem querer lançou Bisonho, esse estava há um passo do campo adversário.
Átila o segundo volante do time adversário e Pit Bull partiram atrás de Bisonho, o atacante do time do meu amigo Teodolindo, correu quarenta metros sozinho com a bola, o time inteirinho correu para frente também. Há um metro da entrada da área, Átila e Pit Bull já bufava no congote de Bisonho. A galera todinha em pé, de punhos cerrados, boca aberta, olhos rutilos, alguns já não se aguentavam, as lágrimas sulcavam lhes os rostos, outros se abraçavam olhando para o céu, rogando para Deus: que seja hoje meu bom Deus, que seja hoje!
Bisonho já não respirava, sentia o mau-hálito de Pit Bull e de Átila na sua jugular, olhou o goleiro, esse estava exatamente no centro do gol e debaixo do travessão, tão tenso que espumava algo esponjoso e branco pelos cantos da boca. Bisonho olhou para o canto direito do gol, depois para o canto esquerdo e chutou, chutou, com força e convicção que bola e goleiro iriam para o fundo do gol.
Dizem que desgraça pouca é bobagem. Bisonho não chutou a bola, enfiou o pé no chão, ao ponto de arrancar tufos de grama, ele caiu de cara no gramado, Pit Bull atropelou o atacante pisando lhe na cabeça, Átila também, esse usando chuteira de trava de alumínio e alta, ao pisar no atacante abatido, cortou a orelha de Bisonho ao ponto de decepá-la.
O goleiro do time adversário deu um balão na redonda. Sanguinário dominou a bola com maestria, girou e ficou de frente para o beque Goteira. Sanguinário balançou para direita, Goteira abriu a perna esquerda para defender. Então sanguinário balançou para a esquerda e Goteira abriu a perna direita para impedir a passagem do atacante. Sanguinário tirou os olhos da bola e olhou para o defensor, esse fez o mesmo, entrementes quando Goteira levantou a cabeça para olhar o atacante, esse tocou a bola entre as pernas de Goteira.
O goleiro conhecido por Thifanny correu em direção ao atacante sanguinário, acreditando que anteciparia e pegaria a pelota, Thifanny tomou o drible da vaca, ficou estático, mexendo apenas os olhos, bola de um lado, atacante do outro. Tudo isso aos cinquenta e dois minutos do segundo tempo. Calmamente Sanguinário rolou a gorduchinha para dentro do gol.
A paisagem dentro do campo oscilava entre, a notícia de um ente querido que morrera e a imagem do ente querido morto no caixão. Primeiro os olhos abertos rompendo em águas, depois o soluço que de tanto tentar segurar deságuou em um choro profundo que sai do peito e rompeu pela boca num grito de dor.
Totó olha para Goteira. Goteira olha para Bisonho. No final da partida só Bisonho aceitou ser interpelado pelo repórter da rádio local: - Bisonho, o que aconteceu? --perguntou o repórter:
- Futebol é uma caixinha de surpresa!
Uma semana depois do jogo Bisonho continuava jogando no time, mas sem a outra orelha.