Pôquer
Caia uma chuva fina vergada sob o ímpeto de um vento frio e cortante que perfurava até os ossos, sinal de que o inverno chegara impiedoso. Com toda a sua força comprazia-se em açoitar, numa investida indefensável, o vulto do pobre comerciante Juan. Ultimamente os negócios não iam bem para ele, possuía um mercado, bem, ao denominá-lo mercado enobrecemos deveras o seu humilde armazém, é como chamar ao burrico, alazão; embora até mesmo este pequeno asno, desde os primórdios, também possua seus méritos. Mas voltemos ao mercado de Juan, no qual já não mais havia nem mesmo os ratos, embora esses animais costumassem ali frequentar em tempos idos. Não que tivesse aperfeiçoado o seu controle de pragas, porque de fato não havia nenhum; é que a mercadoria ali já não era aprazível ao bom gosto, se provavam da carne, os roedores caiam duros, antes mesmo de atingirem a rua. O queijo, dotado estranhamente de sabor e textura até então desconhecidos, era nada convidativo, um mísero pedaço era tão, ou mais fatal que a mais letal das ratoeiras.
E desta forma descia então a rua, apressado, intentando escapar à chuva. Estava um pouco encabulado, é verdade, pois que a mulher, poucos minutos atrás, havia lhe indicado, de forma sutil, o caminho da rua, aconselhando-o a que não retornasse de bolsos vazios, sob a ameaça de perder a boa saúde que gozava. Já começava a se encharcar o seu puído capote, quando se acercou da entrada do Saloon Rosarito. Resolveu entrar para um trago e fugir daquele terrível mau tempo.
Dentro do saloon o clima sofria uma mutação completa, como se o ambiente ali estivesse sob uma redoma invisível. Uma densa névoa deslizava sobre as mesas, sorrateira com uma serpente, quase imóvel. O cheiro de tabaco impregnava o ar, como se fosse parte da sua composição. A um canto, nas proximidades da escadaria que levava ao andar superior, uma senhorita entretinha, a troco de bebida gratuita, um grupo de quatro homens numa mesa. Próximo a eles um piano atacava uma majestosa melodia, que preenchia o graves em longos compassos, digna daquele clima invernal. À direita, junto à parede, sentavam-se três cavalheiros, cartas repousavam sobre a mesa. Um deles era Manuel Lopes, jogador profissional, conhecido de Juan. Enorme, corpulento, barba e cabelos compridos, mas não desleixados, comumente vivia a suar em profusão, hoje não era o caso. Em pé à direita de Lopes estava um de seus capangas, chamava-se “Mestiço”, pistoleiro dos bons, com frequência seus “serviços” eram requisitados por aquelas bandas, para propósitos diversos. Os outros dois à mesa eram desconhecidos.
Ao fundo estava Miguel, com os dois braços estendidos, apoiados sobre o balcão. Desviara o olhar atraído pela entrada de Juan. O cabelo preto, liso, e o bigode sempre impecável eram características sagradas do barman. Acima dele, presa à madeira, no alto da parede, a cabeça empalhada de um alce, e atrás uma quantidade infinita de garrafas a povoar as prateleiras. Para lá se dirigiu Juan.
- Um uísque Miguel! Preciso afastar esse frio polar que se infiltra até a alma.
- Como deseja Juan. O tempo não está nada amigável mesmo. A mim também não agrada esse clima, não vejo vantagem em habituar-me a ele, pois dizem que o inferno é quente. E assim falando pôs no copo uma dose generosa do melhor uísque que tinha e empurrou-o a Juan, que agarrou o copo e arrumou-se na cadeira. À medida que bebia o calor envolvia seu corpo, abraçando todos os membros com uma sensação prazerosa. Deixou-se imergir em pensamentos sombrios, e assim permaneceu, taciturno, a meditar nos seus problemas. Não passou muito foi interrompido:
- Juan, meu amigo! Não fiques aí sozinho, não vês que há lugar nesta mesa? Aliás, para você sempre existirá, sabes que és meu convidado de honra, não?
Virou-se para encarar Manuel Lopes, este lhe dirigia um olhar risonho, que se percebia, a milhas de distância, ser carregado de falsidade. Do canto de sua boca pendia um charuto, as mãos a embaralhar as fatídicas cartas, apontavam para uma das cadeiras vazias. Juan já perdera muito naquela mesa, sabia que Lopes era um exímio jogador e que, evidentemente, também trapaceava, o que resultava em uma combinação letal.
- Muito agradecido Senhor Lopes, mas infelizmente estou de bolsos vazios hoje.
- Ora, homem! Comigo tu sempre tens crédito, e ademais, entre cavalheiros não se fala em dinheiro até que sentemos à mesa.
- Entendo senhor Manuel, mas como disse, não gostaria de comprometer aquilo que não tenho, e no momento tenho apenas a roupa do corpo. Prefiro não tomar seu tempo, sei que é homem ocupado, e eu estou falido, como costumam dizer.
- Juan, meu caro, algum dia ficastes a dever-me? Assim me ofendes recusando minha companhia. Sente-se conosco, quem sabe hoje não é seu dia de sorte?
Juan considerou as palavras do jogador, lembrava bem a somatória da quantia que já havia perdido para Manuel, dois mil pesos. Sabia que toda aquela lisonja ocultava um caráter peçonhento, não era senão uma armadilha para atrai-lo ao jogo. Lopes não costumava perder dinheiro à mesa, seu jogo era sujo, fedia de tal forma que se podia sentir seu cheiro em toda a Durango. Não foram poucos os que interceptaram uma bala fatal, no escuro de uma estrada poeirenta, ao recusarem-se a pagá-lo. Correu os olhos pelo saloon, estava praticamente vazio àquela hora, se bem que em hora alguma fosse cheio. Seu olhar vagou até uma das janelas, a chuva parecia amainar, vislumbrou um fraco raio de sol a infiltrar-se pela abertura, o que talvez fosse apenas um devaneio seu. Caminhou até mesa, consciente de que não era uma decisão sábia, mas no seu estado de ânimo não tinha muito a perder e precisava livrar-se do amargo que sentia dentro de si.
Os três jogavam o Texas Hold’em, variante do pôquer aberto. A cara dos dois desconhecidos já denotava descontentamento, certamente amargavam perdas. Juan entrou no jogo e, distribuídas as cartas, prosseguiram-se as rodadas. O comerciante ia bem, era habilidoso com as cartas, Lopes seguia-o de perto, os outros dois logo provaram ser apenas coadjuvantes, eram fracos. Um deles, um magrelo alto, logo abandonou, sem fichas, pouco depois foi acompanhado pelo seu companheiro, um tipo forte e mal encarado, de pele escura, que vociferou:
- Maldição! Estou fora antes que não me sobre nem para a bebida. Boa sorte senhores.
- À vontade, amigo. São sempre bem-vindos quando quiserem retornar. Aquiesceu Manuel tocando na aba do chapéu.
- Prefiro não colocar mais os pés aqui, retrucou o desconhecido, o demônio conspira a seu favor com as cartas, sugiro que procure outros patos para depenar, até não mais ver!
Restaram, então, apenas dois na mesa e as mãos boas se intercalavam entre Lopes e Juan, com uma pequena superioridade deste último. A certa altura, a quantidade de fichas dos dois era semelhante, o jogo estava equilibrado, e a sorte parecia não pender para nenhum dos lados. Os dois jogadores concentrados, a expressão de Juan era séria, a tensão em seus traços era visível, Lopes estava mais à vontade. Foi então que ocorreu uma reviravolta:
Nova rodada e Juan recebeu duas cartas, as quais eram Reis e Dez. O crupiê, em seguida, colocou três cartas na mesa, com a face voltada para cima, movimento conhecido como o “flop”, as cartas eram: Nove, Seis e Dois. A mão de Juan estava então, nesta altura, excelente, pois suas cartas eram altas. Seguiram-se os dois últimos movimentos do crupiê, conhecidos como o “Turn” e o “River”, os quais consistem em revelar mais duas cartas, que são colocadas ao lado das três primeiras, estas eram: Dama e Reis. Na mesa agora estavam cinco cartas no total, com as quais os jogadores deveriam combinar as duas cartas que tinham em mãos. Desta forma, Juan conseguira um par de Reis, o par de valor mais alto do jogo, apenas inferior ao de Ases. Como não havia nenhum Ás entre as cinco cartas à mostra na mesa, a probabilidade de que perdesse era mínima, isso só aconteceria se as duas cartas que Lopes possuía fossem exatamente dois Ases.
No entanto, a atitude intrépida e inesperada do adversário deixou Juan perplexo. Manuel Lopes apostou todas as fichas!
Juan ponderou por um instante, tentando compreender aquela atitude, desconfiado. Talvez Lopes tivesse um par alto, mas seria muita ousadia colocar todas as fichas naquele momento. “Só pode estar blefando... não creio que esteja melhor que eu, é impossível... de certo acredita que estou fraco!”. Resolveu cobrir a aposta.
Os dois mostraram as cartas e no semblante de Lopes, até então fechado, abriu-se um sorriso maligno, seu aspecto transfigurou-se prontamente, lembrava um demônio saído das profundezas do inferno. A cadeira, de repente, pareceu apertar Juan, o piso falseou sob seus pés e uma gota de suor escorreu lentamente por sua testa e foi espalhar-se na superfície da mesa, a mesma mesa, cabe salientar, na qual estavam os dois sinistros Ases de Lopes, que então ganhara o jogo.
A visão das cartas aliada à expressão de escárnio do adversário inspirou confusão e terror em Juan, que se ergueu visivelmente assombrado, dizendo:
- Não é possível... como pode ser isto... essas cartas... algo não está certo.
- O que queres dizer com isso, homem? As cartas são claras!
- Não é nada senhor Lopes... é que... não entendo... não poderia estar em posse destas cartas...
- O que estás dizendo verme? Insinuas que estou roubando? És um Maldito inútil! Digna-te, ao menos, a perder como homem!
- Peço desculpas senhor Lopes, mas é que, a probabilidade era mínima, não consigo compreender...
- Este é o mal dos perdedores, as desculpas, não há nada a compreender aqui. Esperarei pelo meu dinheiro por uma semana, se não pagar, terá sido a última vez que perdes para mim. Agora tire essa sua carcaça imunda da minha frente. E assim dizendo, fez um aceno com a cabeça para o Mestiço. Este segurou Juan pelo colarinho e enxotou-o aos empurrões, dando-lhe por último um pontapé nos fundilhos com o qual foi cair no meio da rua, com a cara a esfregar a poeira.
Juan ergueu-se vagarosamente da sua miséria, na boca sentia o gosto de sangue misturado a terra, o corpo inteiro parecia latejar com dores, notou que a chuva recomeçara, ou talvez nunca tivesse sido interrompida. Arrastou-se rua acima com dificuldades. Estava espantado, sua vergonha maior não era pelo engodo que sofrera, sendo trapaceado, mas sim por ter sido tratado daquela maneira, como um animal, não merecia e nem esperava tal atitude. Mas não era de estranhar-se de todo o vil comportamento daqueles malditos, pois das outras vezes que perdera sempre tivera dinheiro em mãos para acalmar os ânimos. Pôs-se a caminhar e sentiu o ódio crescer dentro de si por ter sido humilhado injustamente, com tamanha baixeza. Já estava distante quando se virou em direção à sombra escura do saloon e brandiu o punho direito no ar escuro da noite, Manuel Lopes não pôde ver esse gesto. Em adição sussurrou com uma voz baixa e gutural, quase inexistente: “Vingar-me-ei! Sim! Se existe justiça debaixo dos céus, vingar-me-ei!”. Mas isto também Manuel não pode ouvir.
Chegou a sua casa e tomou um banho, viu o sangue e a sujeira escorrerem pelo ralo, e junto a eles a sua dignidade. Não tivera grandes prejuízos afinal, apenas doía-lhe um pouco o pescoço, talvez por ter chocado o rosto contra o chão, e os trezentos pesos que agora devia. Mas se a dor física não o incomodava, o mesmo não podia se dizer do orgulho, estava abalado, fora envergonhado de forma perversa e imerecida. Subiu ao quarto, a mulher já estava deitada, recostou-se ao seu lado, ainda estava acordada e suspirou baixinho:
- Trouxe o dinheiro?
- Não me irrite mulher! Amanhã o terei. E dormiu.
* * *
Acordou às três da manhã, vestiu-se sem que a mulher percebesse e ganhou a rua. O ar frio noturno encheu seus pulmões, não havia vivalma à vista. Juan colocou-se a caminho. O jogador morava do outro lado da vila, onde ficavam os abastados, o comerciante teve de caminhar por cerca de meia hora até se ver diante da casa. Era imponente e bela, a fachada certamente fora pintada recentemente, em branco com detalhes de um azul vivo, possuía duas janelas no andar de cima, ambas com sacada. Um jardim bem cuidado mostrava algumas rosas, a grama estava baixinha, bem aparada. O conjunto ali exposto denotava prosperidade, uma prosperidade que, sem dúvida, fora obtida à custa alheia.
Juan deu a volta pela casa à procura de pontos vulneráveis. Encontrou na lateral uma janela à qual conseguiu, não sem certo esforço, forçar a abertura. Deslizou silenciosamente pelo vão negro e em seguida fechou a janela atrás de si. Permaneceu imóvel por alguns minutos, até seus olhos acostumarem-se à escuridão. Estava numa sala ampla, pôde perceber dois sofás enormes dispostos a um ângulo de noventa graus, e uma mesa de centro baixa feita em madeira que repousava sobre um tapete persa, sobre a mesa um vaso de cerâmica. Juan retirou do bolso uma pequena lanterna e inspecionou a sala, estava vazia. Esgueirou-se devagar, sobre o tapete, até chegar à escada, do lado oposto, que conduzia ao pavimento superior. A casa estava imersa no mais absoluto dos silêncios, do lado de fora ouviu, ao longe, um pio, talvez uma coruja. A escada terminava em um corredor estreito, havia portas dos dois lados, no fim do corredor um vitral.
Abriu um dos quartos à direita, estava vazio, certamente era destinado aos hóspedes. Ao abrir a porta do segundo, um que ficava ao fundo e à esquerda, uma respiração baixinha chegou aos seus ouvidos. Juan avistou o corpo volumoso do jogador estendido sobre a enorme cama, era necessário confirmar sua identidade. Encostou o peito ao chão e arrastou-se morosamente, em direção à cama, quando estava ao seu lado ergueu-se lentamente até que contemplou o rosto, era mesmo o desgraçado, dormia sono profundo “certamente não era o sono dos justos! Pensou, Juan”. A mobília restante do quarto constituía-se de guarda roupa, um criado mudo, uma escrivaninha, uma cômoda e um pequeno cofre. Juan, sem perca de tempo, passou a inspecionar tudo, meticulosamente. Revistava com calma, não podia fazer ruídos. De tempo em tempo parava e ficava imóvel, como que morto, ao ouvir a respiração do jogador recomeçava. Notou sobre o criado mudo uma bíblia enorme e escura, surpreendeu-se, não podia imaginar que um homem daqueles fosse dotado de fé. Pegou o livro nas mãos, era pesado, ao abri-lo um sorriso assomou aos seus lábios, era falso, dentro estava uma pequena Derringer. Retomou a procura, abria todos os móveis, vagarosamente, um após o outro, precisava encontrar, não havia pressa, ele tinha certeza de que acharia. Bastava ser persistente e procurar...
* * *
Às sete horas da manhã, um grito de desespero irrompeu da casa de Manuel e despertou toda a vizinhança. Quando a polícia chegou, a empregada ainda estava em estado de choque, descansava numa das cadeiras, sob o torpor dos calmantes aos quais fora submetida, no seu rosto duas olheiras profundas. Todos os dias ela vinha pela manhã e só ia embora à noite. Os policiais encontraram a casa em perfeita ordem, exceto pela quarto do proprietário. Sobre a cama estavam espalhadas, de forma desordenada, cinquenta e duas cartas, número necessário ao pôquer. No centro da cama, sobre o peito do enorme mexicano, atravessadas por um punhal estavam sete cartas, afinal, Juan havia encontrado o que procurava. Eram todas cartas de valor alto, comumente usadas para trapacear no jogo. O peito de Lopes estava banhado de sangue, o lençol era uma imensa mancha vermelha, para sua infelicidade o punhal também atravessara o seu coração, pondo fim a sua ignóbil vida. Da investigação os policiais não obtiveram pista alguma que indicasse o possível criminoso. Descobriram a janela que fora forçada, mas ali também não havia nenhum indício que ajudasse. Um Fato estranho intrigou os policiais, não conseguiram entender porque, da grande quantia de dinheiro que Manuel mantinha em casa, o assassino roubara apenas o valor de dois mil e trezentos pesos.
Eram oito e quarenta e cinco da manhã, em sua casa, deitado sob os lençóis, ao lado da mulher, o comerciante Juan ainda dormia. Estava plenamente revigorado pelo passeio noturno.
Marco Roberto de Oliveira