Vale uma vida


BY Sys


(A taça que transborda-parte 01)

 
Uma taça de vinho branco começava a transbordar o liquido dégradé, da mistura com o sangue vermelho vivo e viscoso. Algumas gotas caiam no cão e circulava a taça invicta.
Uma mão pálida com esmaltes vermelho intenso ainda ostentava algumas jóias falsas que ninguém roubou. O pulso aberto não era motivo para um suicídio e sim um sinal de solidão.
Aquela alma só queria pedir socorro urgente e mais nada. Tinha muito que viver a jovem Dayse. Uma mistura linda de criança e mulher.
Uma flor branca e pura como a mãe a descrevia, não merecia acabar assim ao som de uma melodia triste vinda do seu próprio celular.
O quarto tinha cortinas claras e o vento levantava até a altura do seu rosto com feições bobas iluminadas pela lua tímida que filtrava árvores antes de beijar sua amiga Dayse.
A porta do quarto se abre bruscamente como sempre e um homem tropeça na taça derramando o que foi uma porção de alegria e dor.
Ele afasta a cortina do rosto de Dayse e a puxa com violência para despertá-la com mais um tapa no rosto dizendo:
_Levanta sua vadia! O show acabou!
Dayse não parece bem, mas nada tem a ver com seus pulsos ligeiramente cortados e nem com o litro de vinho que bebeu a noite toda. Ela está sonolenta e ameaçada pela vida. Vida que doou a este homem lindo de alma tão covarde.
Ele a empurra para o lado esquerdo da cama e com uma camiseta dela mesma amarra o pulso que sangra. Resmunga pragas e palavrões e sai do quarto.
Dayse continua viva e choraminga olhando o vulto das árvores dançando no canto esquerdo de sua cama.
 
 
 
 
(O jardim seco- parte 02)
 
Uma mulher suja de sangue levanta e cambaleando busca os chinelos e corta um dos pés num caco de uma taça de vidro suja. Solta um grito seguido de lágrimas e caminha por entre outros cacos espalhados pelo quarto. Quantas taças eu quebrei afinal, ela se pergunta no silencio daquela manhã.
Tudo muito quieto como sempre, o namorado deve de ter saído como de costume sem dizer nem um olá vadia.
Dayse vai até a cozinha e coloca água para ferver para preparar seu café matinal. Enquanto isto vai até o banheiro e retira a camiseta suja de sangue que envolve seu braço. Coisa boba ela diz enquanto coloca ali um curativo provisório até tomar seu banho.
Quando volta para a cozinha a água ferveu até secar. Então recomeça tudo de novo e desta vez senta e fica olhando o fogo brincar com o vento que passa pela janela da cozinha.
Toma seu café andando até a sala onde viu algo incomum, a porta da sala está aberta, totalmente aberta. Jorge nunca a deixa aberta, ela geralmente é prisioneira de suas vontades.
Dayse larga a xícara em cima de uma mesinha e sai correndo como passarinho livre. Não pensa em sobrevivência e nem em armadilhas, simplesmente sai e rodopia no jardim seco e quase sem vida.
Olhou suas plantas mais de perto e chorou por elas. Deu a volta em torno da casa para ligar a mangueira e jogar água nas plantas. Fez esguichar um jato longo de água nas margaridas e rosas e dançou cantarolando uma melodia de alegria e liberdade.
Puxou mais a mangueira e a mangueira não veio, então foi ver onde ela estava presa.
Soltou um grito de dor e pavor. Viu um pé enroscado na mangueira, era o Tênis de Jorge, era o corpo de Jorge, era muito sangue ali debaixo da escada que dava para a cozinha. Jorge estava todo furado de facas ou coisa parecida.
Correu e subiu as escadas e viu surpresa que a porta da cozinha também estava destrancada.
Da janela viu Regina sua vizinha colocando roupas no varal. Como sempre ela olhou para Dayse e acenou um bom dia e hoje a menina Dayse não respondeu, apenas gritou socorro.
 
 
 
 
 
 
(Olhos de cristal-parte03)
 
 
Regina era uma destas mulheres bem decididas e uma boa amiga. Nunca entrou na casa de Dayse para não ser motivos de briga. Jorge era um homem louco dizia ela. Queria que Dayse fugisse dele, até a aconselhou como ir embora, fez planos para ela como pular para dentro de seu quintal. Era bem assim que conversavam. Regina colocava uma escada encostada ao seu muro e fica próxima da menina Dayse, não por muito tempo, era gorda e não tinha muito equilíbrio para ficar ali. Mas era assim a melhor amiga de Dayse nos últimos meses daquele ano que o casal estranho veio morar perto dela.
Hoje Regina sentiu o pior olhando o rosto pálido de Dayse. Na sua imaginação  Jorge vai aparecer logo atrás da moça com uma faca ou outra arma. Mas Dayse gritou novamente _Socorro Regina! Liga para a policia, Jorge está morto.
Regina ia e vinha sem ação, chamar a policia menina, como assim, fuja para minha casa, venha, disse isto encostando a escada para que Dayse fosse para sua casa.
_Não posso! Chame a policia Regina, não fui eu quem o matou, chame a policia.
Olhando os mais lindos olhos claros como um cristal Regina faz a ligação e chora pela sorte de Dayse.
Logo a rua se enche de policiais e curiosos.
 
 
(O tapete – parte 04)
 
A fechadura do portão foi estourada e logo a casa foi isolada e todos os curiosos afastados.
Regina aproveitou para entrar e falar com Dayse dizendo ser a única amiga que ela tinha.
Os policiais algemaram Dayse por ser ela a única presente no local e não ter mais testemunhas. Regina teve que explicar várias vezes à escada encostada no muro da vizinha e como foi ela que chamou a policia ia prestar testemunho do ocorrido assim que solicitada da delegacia.
Um detetive já vasculhava toda a casa em busca de provas para a morte de Jorge. Ia falando para seu parceiro que anotava tudo num caderno e ajudava olhando aqui e ali.
 
Um tropeço num tapete aborreceu o detetive Alberto que soltou um “merda”!
Mas foi seu parceiro Marcos que observou o desalinhamento de todo o tapete naquele canto da sala de jantar. Arrastaram uma cadeira, duas, e lá estava a faca brilhando como um raio de sol que vinha da janela. Nela não tinha digitais e nem sangue, mas era a faca que matou Jorge.
E algo intrigante ali. As chaves da casa junto com a faca e uma soma em dinheiro num envelope.
A faca foi muito bem lavada, mas um detalhe era certo, era a mesma faca com que Dayse andou se cortando naquela noite. Ela tinha explicado que só queria a atenção do namorado, mas nada.
Contou tudo como foi até ter a idéia de jogar água nas flores secas. Estava feliz, estava livre e não sabia até quando. Jorge a mantinha presa. Só saia quando ele ia junto.
Vivia um inferno e não tinha como contar para a família que vivia longe e nem se quer eles sabiam onde ia encontrá-la. Ela fugiu com Jorge depois de uma festa de ano novo. Deixou um bilhete de despedida. Jorge disse que tinha que ser assim para ninguém vir atrás de nós. Ele parecia bem e a tratava com carinho. Apesar de ser um relacionamento recente, cerca de dois meses.
Aqui ele pareceu outro homem, inseguro e violento. Regina foi à única pessoa que falei nos últimos meses. Ela ousou subir naquela escada e me chamar depois de ver Jorge sumir de carro na estrada. Ela me passava alimentos e até medicamentos pela janela. Eu só podia sair quando estava com Jorge.
_Por favor, me ajudem. Eu não o matei!
Por um momento Alberto pensa em algo. Analisa bem o perfil físico de Regina. Uma mulher negra acima do peso parecia uma boa pessoa, tinha os dentes alvos e se não fosse a situação ali apostaria num belo sorriso.
Alberto caminhou até a janela onde a escada ainda estava presa ao muro. Observou o quintal de Regina e a janela de Dayse. Não! Não tinha como ela passar para a casa de Dayse. O contrário sim.
Alberto só para ter certeza diz ironicamente: “_alguma vez tentou entrar aqui dona Regina, pela janela eu digo”.
Regina deixou escapar um sorriso confirmando o que realmente era belo e disse: “_Acho que ninguém ligou para o corpo de bombeiros dizendo que uma velha negra estava entalada na janela da vizinha”. Dito isto foi como se ouvisse uma voz a chamando para a realidade, pediu desculpas pelo comentário e abraçou Dayse que chorava.
Ainda sem graça e estranhamente inquieta começou a chorar muito. Parecia normal para aquela situação. Mas os pensamentos de Regina já não acompanhavam seu corpo que sacudia naquela sala num pranto que pingava no tapete bege.
 
 
 
(Quarto secreto  – parte 05 )
 
Dayse foi levada presa e Regina entrou em sua casa correndo como se tivesse ficado louca.
Trancou tudo e foi para seu quarto chorar. Ouviu ruídos debaixo da cama e como sempre lamentou a sorte de ser quem era. Uma quase suicida também.
Arrastou a cama pesada e foi retirando tabuas enceradas. Desceu uma escada e sentou no primeiro degrau do quarto secreto.
Num canto de uma cama estava a jovem e bela Lívia de cabelos curtos e uma bela boca cantarolando algo sem sentido.
Lívia era magra e negra como a noite sem luar. Usava umas pulseiras para esconder a cicatriz de um dia sem fé.
Lívia foi socorrida á tempo e não foi para a lista de suicídios entre as jovens da sua idade. Graças á Regina estava ali escondida da vida. Saia somente a noite com um gorro que não deixava ninguém nem saber se era menino ou menina.
O passado a atordoava e ela sofria uma prisão que ela mesma se impôs.
Olhando para Regina disse:
_Eu deixei a chave lá para ela fugir. Não me olhe assim. Ela podia ter fugido, mas preferiu ver flores.
 




FIM