Terror no R.H
Marília estava feliz. Era sua segunda entrevista de emprego em apenas um dia. Passara quase seis meses desempregada, retirando dinheiro de sua poupança – dinheiro esse acumulado desde sua infância – e fazendo bicos como demonstradoras de produtos em eventos automobilísticos.
De aparência chamativa, dona de longos cabelos negros, olhar oriental e lábios finos, ela tinha grande experiência em R.H e também como auxiliar de escritórios. Naquela quinta-feira chuvosa, as duas entrevistas eram justamente para os dois cargos. Dois cargos diferentes, em empresas diferentes. Ela queria acreditar que a sorte finalmente tinha lhe dado uma chance.
Primeiro fora na entrevista para auxiliar de escritório em uma empresa de advocacia. O salário era bem mais alto do que os de suas experiências anteriores, além de ter um vale alimentação que lhe faria muito feliz no natal. Plano de saúde, odontológico (sem desconto no salário, o que era raro!), e outros benefícios que ela queria muito que lhe fossem creditados.
A entrevista fora no 14º andar do prédio. Um homem negro, vestindo um terno cinza (estilo o daqueles capangas de filmes dos anos 40), sentou-se à sua frente e encarou-a com um olhar desconfiado. Anotou algumas coisas em seu bloco com capa de couro. E fez apenas três perguntas com sua voz rouca, e hálito de charuto vagabundo.
- Como soube da vaga? Qual sua disponibilidade de horário? É virgem?
Marília não se sentiu à vontade com a ultima pergunta. O homem deu-lhe mais alguns minutos para pensar na resposta, e saiu da sala. Ela então, nervosa, levantou-se e foi até a janela. O céu estava nublado quando entrara no prédio. Mas agora aprecia avermelhado. Os prédios da rua estavam diferentes, pareciam torres góticas de catedrais europeias. Não conseguia se lembrar de que aquela rua era tão soturna. No edifício da frente, um todo em pedra escura, uma silhueta longínqua parecia a observar escondida por trás das persianas.
-E então? Tem a resposta? É uma pergunta simples, algo que nosso chefe se importa muito.
Ela voltou-se para o homem, nervosa.
- Moço, eu tenho outra entrevista em trinta minutos, e é no final dessa rua. Por favor, acho que foi um engano eu estar aqui. Deixe-me ir. – pedia enquanto pegava sua bolsa sobre a poltrona aconchegante em frente à mesa do homem.
- Não há engano. Nós fizemos com que você viesse até aqui. Nós fizemos que essa entrevista acontecesse. Você é perfeita para nossa vaga. Marília Silva de Freitas! Trina e dois anos, solteira... E pelo cheiro... – disse o homem mexendo suas narinas tentando captar o perfume da mulher. – Pelo cheiro é agnóstica. Sem religião.
Marília correu até a porta.
- Ora, minha cara! Desista, sim? O chefe te quer na empresa. Não estás desempregada? Não estima um bom salário? Comida? – o homem se aproximou de Marília e parou atrás dela, segurando-a pelos ombros. – Pense na sua mãe. Idosa, sem plano de saúde... Que empresa hoje em dia dá tantos direitos? Tantos benefícios?
- Não quero mais. A pergunta sobre minha virgindade foi desnecessária. Adeus!
A porta do escritório se abriu. O homem ficou observando a candidata se afastar pelo corredor. Sombras negras começaram a surgir do chão por trás dele. Frestas e ralos se tornaram portas para silhuetas abomináveis, possuindo garra nos dedos das grandes mãos.
- Deixem-na ir. Elas sempre voltam. Estão desempregadas.
A mulher correu o máximo que pode. Tentou entrar no elevador, mas dentro dele silhuetas surgiam do chão. O cheiro de podre invadiu todo o andar, e ela estava sem saber para onde ir. Avistou a escada de emergência. Correu na direção da porta de sua esperança, e praticamente se jogou contra a pesada porta vermelha tentando abri-la. Sentiu alguém esbarrar contra ela. Não parou para olhar. Apenas continuou.
A escada estava escura. As luzes se acendiam automaticamente conforme a pessoa passasse pelo sensor de presença. Antes disso, tudo era breu. Ela desceu aos tropeços o lance de escadas. Viu o número 14º escrito a pincel na parede mal rebocada. Buscou folego para mais o outro lance de degraus. Ao chegar ao sensor de presença, o número que se iluminou a assustou. Novamente o 14.
Continuou descendo, descendo, perdendo o fôlego, e sempre o 14 a esperava no andar seguinte. Era como se o prédio não tivesse fim. Sua boca seca, seus pés doloridos não eram o suficientemente fortes para fazê-la desistir. Resolveu entrar pela porta de emergência e ver se havia algo errado realmente. Ao abrir o pesado retângulo de chumbo, sentiu alguém batendo contra seu corpo. Ao observar novamente, e com uma estranha sensação de déjà vu, viu-se descendo a escada desesperada. E ao esticar o pescoço um pouco mais, viu o homem da entrevista, cercado de silhuetas malignas, esperando-a tranquilamente.
Ela tornou a tentar descer a escada. Ouvia passos, e esbarrava em si própria. Era como um pesadelo. Era como um inferno. Sentou-se para respirar melhor. Sentou-se e tentou buscar saliva para engolir. Sentiu seus olhos doerem. Estavam ficando pesados. Suas cópias continuavam a descer a escada, passando por ela chorando e esbarrando contra seu ombro. Estava entrando em pânico. A vontade de gritar foi crescendo como a ânsia de vômito. Sentiu o grito chegar à ponta de sua língua.
Berrou. E seus olhos se entregaram a força que os tentavam a se fechar.
Ao acordar, estava diante do homem novamente.
- Plano dentário. Plano de saúde. E só quero saber se és pura. Nosso chefe faz muita questão.
Marilia olhou ao redor. O escritório era estranho. Sem espelhos. Sobre a cômoda, várias garrafas de um liquido espesso e vermelho. Marilia começou a chorar. A outra entrevista já havia se passado. Continuaria desempregada, com mãe doente, e sem saber quando teria outra oportunidade.
Ela assentiu com a cabeça e fechou os olhos. Apenas entendeu a importância de sua resposta, quando no primeiro dia de trabalho, conhecera o chefe, e desde então, começara a abolir a luz do sol, e a sentir uma sede exacerbada por sangue humano.
Marília estava empregada. E não morreria de trabalhar.