Nº 72
As árvores passavam rapidamente pela janela. O contraste do verde com o cinza costumeiro causava uma sensação esquisita. Ou seria o barulho do trem?
Era sua primeira vez andando de trem. Ele não estava esperando poder fazer esse tipo de viagem tão logo chegasse no novo continente. Talvez tenham sido os livros da infância/adolescência que o fizeram ansiar por essa parte da viagem.
A cabine era mais confortável que ele imaginou que seria. Devido à época em que ele estava fazendo a viagem, a maioria delas estava vazia. O nº72 na porta lhe chamou a atenção por alguma razão. Haviam dois assentos estofados, um ao lado do outro. Dava até mesmo -como ele logo conferiu- para deitar sobre o banco.
Mais interessante do que o voo entre as nuvens, isso ele poderia dizer. Voar nunca lhe chamara a atenção. Não por medo, mas -por mais engraçado que isso possa soar- ele se sentia mais livre com os pés no chão.
Enquanto ele se recostava no assento, pensava na sua sorte. Afinal, era a isso que ele atribuía esta viagem. Tendo se formado a pouco tempo, ter uma chace de ter uma carreira naquela empresa era quase um sonho.
Mergulhado em seus pensamentos, sobre o quão preparado estaria, ele vira ao ouvir a maçaneta sendo aberta. Ao que parece ele teria um companheiro de viagem. Seria algo bom ou ruim?
Ele pode observar aos poucos na entrada da cabine seu novo acompanhante. Sua idade foi a primeira coisa que lhe chamou a atenção. Talvez entre setenta ou oitenta? Talvez esse tenha sido seu palpite, se fosse outra pessoa. Mas por alguma razão ele não conseguia mensurar a idade dele com apenas um olhar. Um antigo terno preto com uma aparência bem cuidada, como se o dono zelasse por ele. Na mão esquerda ele carregava uma pequena maleta preta. Cabelos brancos penteados para trás e um bigode metodicamente aparado mostravam uma certa seriedade do viajante. Mais ainda do que seu breve aceno de cabeça ao entrar na cabine.
Todas essas coisas o chamaram atenção, mas talvez tenham sido os olhos o que o prenderam. No breve instante que os olhos se encontraram, ele pode ver um azul gelo, que o causou um certo desconforto. Um calafrio que não sumiu nem mesmo quando desviou o olhar.
Ao invés de colocar a mala no bagageiro que havia perto do teto, ele o colocou ao lado no assento. A leve carícia que ele na maleta o fez pensar sobre o que poderia ter lá. Mas mesmo sua criatividade do qual se orgulhava não o ajudava a pensar em nada. A maleta estava lá. Parecia ocupar todo o ambiente, mas ao mesmo tempo, ela não possuía significado. Como se tivesse sido esquecida pelo tempo. De um lado ela possuía uma trava de letras e números. Do outro lado havia uma ranhura, talvez para a chave mais incomum que ele poderia ver na vida.
O suor brotou aos poucos pela sua testa ao ver um túnel se aproximando. Ele tentava ignorar essa informação com a mesma intensidade que estava conseguindo ignorar o fato que o viajante estava sentado em frente a ele, com os cotovelos nos joelhos e dedos cruzadas em frente ao peito. A cabeça levemente encostada nas suas mãos. Sua visão periférica nunca fora das melhores e ele não queria se arriscar a olhar mais.
Uma lâmpada começou a piscar em cima deles, conforme os primeiros vagões entravam no túnel. Ela demorou mais do que ele gostaria para que a luminosidade ficasse estável. Como se a luz não quisesse permanecer no ambiente.
Com a desculpa de se espreguiçar ele pode olhar para o viajante. E pode vê-lo olhando diretamente para ele. O que havia naqueles olhos? Interesse? Dúvida? Curiosidade? Nada? Era impossível dizer o que se passava na mente dele apenas pelos olhos. Era um pensamento inquietante de ser ter ao entrar em um túnel.
- Estava curioso – A voz parecia vir dele. Apenas parecia. Era como se viesse realmente de dentro dele, de dentro da pessoa que ele era. Não como uma voz que falasse algo, mas com uma voz que entendesse o que realmente estava sendo dito. Como se ele pudesse entender o significado das coisas. Como se as coisas só tivessem significado se ditas por ele. - Você, embora jovem, possui um olhar interessante. Faz tempo que não encontro alguém assim. - Olhar diretamente nos olhos dele pela primeira vez foi uma sensação que ele sabia que teria até seus últimos momentos de vida. - Me traz a lembrança de algumas pessoas que eu gostei de ter conhecido. Alguns tiveram grandes proezas na vida. Outros perderam o seu rumo.
Ele sempre morou em um local frio. Certa vez quando criança, acabou se perdendo em uma mata perto de casa no inverno. A sensação do frio nos ossos nunca o deixava nos momentos em que ele estava tenso. Mas dessa vez, as palavras dele congelaram sua espinha. Morrer é um pensamento que sempre guardamos e aceitamos, mas nunca o proferimos.
Como se fosse possível esquecer esse fato. Apenas por não o falar em voz alta. Não pensar em quantas pessoas iriam sentir sua falta. Mas com poucas palavras esses pensamentos foram arrancados do seu canto quase esquecido na mente.
Aquela voz, aquele tom, as palavras ditas e as esquecidas. Os olhos. Era difícil dizer o que mais chamava atenção dele naquele momento. Quais foram as coisas que o deixaram fascinado, quais foram os momentos em que ele esqueceu que devia respirar. Mas uma coisa ele tinha certeza. De todas as vezes que ele havia conhecido pessoas, essa estava sendo a mais incomum. Era como se a própria existência fosse algo que não deveria ser possível.
- Obrigado, eu acho. - Ele percebeu que até mesmo sua voz estava mais vazia. Parecia que sua confiança, duramente adquirida, tinha sumido naqueles momentos. - Acho que todos esperamos fazer algo de importante, não é mesmo?
- Nem todos, jovem. Alguns esquecem de viver suas vidas. Seja querendo apenas aproveitar o agora, ou até mesmo fazendo planos inalcançáveis. Sinceramente, alguns parecem não entender o que significa viver e apenas aceitam seu fim.
Apenas seus olhos conseguiam ser mais gelados que suas palavras. Mas por alguma razão, talvez elas soaram como um convite. Como se o fizesse lembrar de pensamentos há muito esquecidos. Parecia que o corpo havia despertado de um esquecimento apenas com aquelas palavras. Como se desde a aparição do viajante, ele estivesse flutuando em um ar mais denso e só agora ele podia notar isso, podia sentir o ar sendo apertado entre seus dedos. E como se com essas palavras as coisas voltassem a fluir.
Mais do que apenas fluir. Um pensamento inquietante não o abandonou tão cedo. E se ele não havia passado a vida inteira submerso? Parecia que ele finalmente fosse capaz de ver o mundo, de uma maneira que ninguém talvez fosse capaz. Ninguém exceto seu companheiro de viagem, é claro.
- Desculpe, não fomos apresentados ainda. - Confiança recuperada, ele pode levantar a mão enquanto esboça um sorriso, como se ele tivesse esquecido como era fazer isso. - Meu nome é... - Mas seu nome não estava lá.
Ele sentiu aqueles olhos gelados observando sua mão com uma certa dúvida. Se deveria ou não cumprimentá-lo. Enquanto o viajante levantava os olhos o túnel foi acabando. Dando espaço a uma nova paisagem. Uma ha muito esquecida pelo tempo. Sua mão foi recuando conforme o trem seguia sua viagem, como se o mundo ainda fosse o mesmo. Menos para os dois viajantes.
- Sua pergunta tem vários significados. Tanto quanto nomes pelos quais eu fui chamado. Talvez eu já tenha sido chamado por mais nomes do que você já teve dias de vida. Mas posso fazê-lo entender com uma palavra.- O sol, começava a perder a força e a cor conforme ele ia falando. Como se ele soubesse o que viria em seguida. Não como se ficasse mais frio, ou que a escuridão tomasse forma. Era como se o sol não significasse nada. Como se sua luz e seu calor tivessem sido esquecidos. Como se fossem apenas personagens secundários. O que talvez fosse verde pela janela que tomava cada vez mais a sensação de ser marrom. As árvores que pouco antes pareciam tão vivas deixavam essa vida seguir junto com suas folhas secas jogadas ao vento – Morte.
Não havia brincadeira nas suas palavras. Nem o menor sinal dela.
Dessa vez ao olhar para ele esquecendo-se do que ocorria lá fora, ele pode ver algo esquecido naqueles olhos. Algo que parecia ter sido congelado pelo tempo. Aos poucos sua visão foi mudando. Como se seus olhos já não mais fossem capazes de ver. Sua visão gradativamente estava sendo trocada. Ele agora estava olhando para si mesmo através dos gelados olhos azuis. Até que a sua visão começou a ser trocada por lembranças.
Um soldado bravamente pulando uma trincheira, sabendo que sua morte era certa, mas sabia que alguém deveria fazer isso. Que eles deveriam avançar, que sua filha merecia um mundo melhor e que aquele passo poderia ser o primeiro nessa direção. Suas últimas palavras nunca foram ouvidas.
Um casal de mãos dadas. Um sorriso tão belo e tão sincero que poderia ser capaz de mudar o mundo. Se não fosse um sorriso de despedida. Enquanto ambos viam o avião se aproximando do solo. Talvez tenha sido assim, e apenas assim, pois era um sorriso de despedida. Um sorriso que não precisou esconder nada, que tinha todas as palavras não ditas de amigos que se amavam.
A sensação de bater a aliança na mesa de cirurgia enquanto os sentidos iam embora.
O desespero e a aceitação do homem, cujo paraquedas não abriu.
Aqueles que haviam abraçado a morte, como uma companhia já esperada. Como uma amiga que foi esquecida.
Mas haviam outras lembranças, que passaram rapidamente por seus olhos. Pessoas que conversaram cara a cara com a morte. Encontros tão singulares quanto as próprias pessoas.
Haviam mais, haviam tantas mortes escondidas lá. Algumas esquecidas ou ignoradas como se não tivessem significado algum, outras imortalizadas na lembrança da própria morte. Como se essas pessoas finalmente tivessem percebido o que significava vida para elas, nos últimos momentos. Como se fossem coisas para lembrarem a própria morte sobre o que significa viver.
E muitos outros, que mesmo em seus últimos momentos não foram capazes de perceber isso. Pessoas que passaram aproveitando suas vidas sem saber o que era viver. Aqueles que planejavam com medo de alcançar. Finalmente ele pode entender o que ele queria dizer. Essa compreensão conforme ia o preenchendo o trouxe de volta ao seu corpo.
Ao olhar para frente, pode ver seu companheiro de viagem sorrindo. Um sorriso que ele dificilmente seria capaz de explicar. Mesmo que sua vida dependesse disso. Afinal, como a morte poderia sorrir?
O que o impediu de sair correndo? Fugir, se esconder? Talvez, o que lhe causou isso – e que lhe causou calafrios ao perceber – a ideia de escapar jamais passou pelos seus pensamentos. Como se sair dali fosse apenas a ideia que outra pessoa poderia tomar, e que não resultaria em nada.
- Levaste menos tempo que o esperado para entender o que lhe disse. Alguns dos poucos que me apresentei entraram em choque. Mas ao que parece, fizemos uma boa escolha de vagão. - Havia uma sensação estranha na sua fala, algo que ele não conseguia entender desde o início. Era algo sutil demais. Sua voz não parecia vir como se fosse proferida naquele momento. Era como se sua voz fosse esquecida no tempo. - Não se preocupe jovem, não vim aqui por sua vida. Eu poderia levá-lo com apenas um toque. Ou menos ainda. Apenas minha existência é o suficiente para que a as pessoas morram.
- Entendo. Não faz sentido em mostrar tudo isso apenas para me matar depois. Não sei mais o que pensar sobre a vida. Será que eu seria só mais um? Vendo mas não vivendo? - Suas mãos pararam de tremer, mas ele não sabia dizer quando começaram – Acho que jamais teria essa questão para mim. Pelo menos não dessa maneira. - ele sentiu um ousado sorriso brotando dos lábios – A resposta, para ela ainda precisarei de anos.
Se já não foi fácil para ele definir como era o sorriso do viajante, o que dirá de sua risada? Quando foi que o sol lembrou quem era? O verde voltou a ser uma companhia na janela, mas a sensação de estar finalmente vivendo no mundo de verdade e não apenas mergulhado nele não o deixou. Engraçado aprender a viver ao encontrar a Essência da morte. Não. Engraçado não. Essa era uma das coisas que o ajudariam a viver. A entender o que é a vida. Quase todos haviam entendido isso apenas em seus momentos finais.
- Talvez não tenha sido um completo desperdício do meu tempo vir até aqui. - ele olhava de lado, com o rosto virado para a janela. Enquanto girava um anel em seu dedo com um olhar de quem lembra de algo que nunca ocorreu. Desde quando haviam anéis em seus dedos? - Me chame de Augustus, isto facilitará as coisas. Ganhei esse novo nome há alguns anos, mas me apeguei por ele de certa maneira.
Haviam três no total. Dois na mão esquerda e um na direita. No dedo anelar direito havia um anel de prata, com um labirinto esculpido nele. Mas por mais antiga que fosse a prata, não haviam resquícios de escurecimento. O dedo indicador possuía uma pedra vermelha toscamente cortada ornamentando o que parecia ser um osso antigo. Mas era o da mão esquerda o que ele girava. Um anel que lembrava que foi dourado um dia. Com uma inscrição apagada. Talvez apagada não fosse a melhor palavra. Elas não haviam sido apenas apagadas pelo tempo. Foram esquecidas por ele. Abandonadas.
- Mas espere um pouco. - Finalmente lembrando da pergunta até agora esquecida - O que estava fazendo nesse trem?
- Na verdade sou um viajante. Apenas a espera do último que morrer. O que acontecerá depois, nem mesmo eu sei. - Pela primeira vez havia algo humano em seu olhar. Sinceridade. Mas talvez apenas sobre a última parte.
Enquanto murmurava algo para si mesmo, Augustus tira um relógio do bolso. Ele um dia havia sido completamente liso. Mas por um breve momento, ele pode ver algo esculpido na tampa. Um símbolo talvez, ou seria um nome em uma língua antiga? Talvez uma vida inteira não o fizesse perceber o que era aquilo.
- Seguirei minha viagem sozinho a partir daqui. - Enquanto falava ele conferia a maleta ao seu lado, para ter certeza que tudo estava em seu lugar – Meu jovem, posso dizer que foi um prazer conhecê-lo. - dificilmente ele havia recebido maior elogio na vida - Talvez grandes feitos lha sejam esperados. Se for capaz de ver.
Enquanto segurava a porta para sair Augustus olha para trás e com um sorriso dá um último e não correspondido aceno. Seu ex-companheiro de viagem não percebia os arredores. Estava olhando seu reflexo na madeira polida que ficava atrás do banco. Desde quando seus olhos eram azuis?
O som do click na porta foi sucedido pelo terrível som do trem descarrilhando.