O mago chinês

Elisa fora despedida da concessionária de veículos Cauchal, onde era recepcionista, em razão de sua aparência. Não, Elisa não era uma garota sem atrativos e muito menos improdutiva – pelo contrário. O problema é que não havia uma única semana sem que ela aparecesse no emprego com um olho roxo, um dedo da mão deslocado, um hematoma no braço ou com os lábios inchados. Todos sabiam que ela era espancada pelo marido, como não tomava providências e não ouvia os conselhos dos colegas de trabalho, do gerente, até do proprietário da empresa, a dispensa bem poderia ser por justa causa, mas tiveram pena e pagaram tudo certinho, recebeu o 13º proporcional, saldos de salários, férias vencidas, indenização adicional e liberação do fundo de garantia. Elisa não contou em casa que estava no olho da rua – o marido Nestor (operário autônomo de serviços gerais, mas que raramente pegava um serviço), sempre de camiseta de malha mal encobrindo o imenso barrigão de cerveja, sempre de barba por fazer, sempre arrotando a cachaça fermentada no estômago, sempre esticado no sofá da sala vendo televisão, teria um acesso de raiva tão grande que, temia Elisa, seria inevitável uma surra de criar bicho.

Para todos os efeitos, continuava empregada na concessionária Cauchal. Assim, todo dia, depois de ser possuída à força durante a madrugada (quando Nestor estava relativamente sóbrio), depois de ser humilhada de manhã com alguns bofetões e chamada de puta nojenta enquanto fazia a comida para o vagabundo almoçar ao meio-dia, depois dessas barbaridades, Elisa pegava sua bolsa e saía de casa às sete e meia, tomava o ônibus coletivo no ponto da esquina e desembarcava no centro da cidade. Passeava pelo calçadão observando as lojas, comprava objetos pequenos que pudessem permanecer escondidos dos olhos do trambolho bêbado que gerenciava sua vida, almoçava no Platinum, o caríssimo restaurante das celebridades, sentava-se na praça em frente da Igreja Matriz – às vezes adentrava a Catedral e passava longo tempo olhando os altares, com vergonha de pedir favores divinos – e por volta das duas da tarde ia ao shopping, escolhia uma sala de cinema com filme romântico em cartaz e dali só se retirava ao entardecer, quando tinha que voltar ao lar para enfrentar a dura realidade do seu inferno diário.

*

Fazia cinco dias que Elisa levava a vida dupla, apegada à mentira do emprego, e já não agüentava mais – tinha que haver uma saída para aquela situação. Sentada na praça do calçadão, Elisa olhava as pessoas comuns passando à sua frente, invejava aquelas duas senhoras rindo alto, sem preocupações, admirava o aposentado que dava milho às escondidas para os pombos, se comovia com um casal de adolescentes se beijando num banco próximo. O casal adolescente tocou fundo o seu coração. Elisa lembrou-se que se casara aos dezoito anos, pressionada pelo pai truculento, déspota, sanguinário, que lhe impingiu o já velhusco Nestor. Logo na primeira noite, foi literalmente estuprada pelo marido – mesmo que vivesse mil anos nunca esqueceria aquela violência. Jamais teve um orgasmo, passou a odiar o monstro que a penetrava todas as noites e, por tabela, abominava o próprio progenitor – depois de casada, Elisa ficou sabendo que o marido tinha vencido seu pai num jogo de dados, ela era o pagamento. Se um dia tivesse a sorte de ficar viúva, homem algum na face da terra tocaria em seu corpo, jurava para si mesma a cada manhã. Todas essas lembranças amargas avolumaram em seu peito com tamanha intensidade que, assim de repente, Elisa escondeu o rosto entre as mãos e caiu num choro convulso. Com muito custo conseguiu se controlar e ainda com os olhos encharcados de lágrimas viu que havia alguém sentado ao seu lado no banco – um chinês centenário, pequenino, de cabelos compridos brancos e uma barbicha também branca e rala que lhe caía ao peito em fios emaranhados. Vestia um paletó muito grande para o seu tamanho, uma camisa cinza, calças marrons e botinas de agricultor. Ele apontou para uma queimadura no braço de Elisa.

– O que é isso? – perguntou em voz baixa e estranhamente jovial.

– Meu marido hoje cedo apagou um charuto aí – respondeu Elisa sem vacilar, espantada com a própria espontaneidade.

– Quer que eu cure?

– O senhor pode fazer isso?

– Basta você confiar.

O chinesinho molhou a ponta do dedo na língua e passou a saliva sobre o ferimento num movimento sutil, leve e carinhoso. A queimadura desapareceu num instante. Elisa ficou maravilhada.

– O senhor é algum mago? – perguntou.

– Sou aquele que vai realizar os seus três maiores desejos. Nesse momento o que você mais gostaria que acontecesse?

Elisa riu, o chinesinho era realmente uma bola!

– Não estou brincando – advertiu o homenzinho perscrutando o rosto dela com uns olhinhos antigos, sábios e marotos. – Responda a minha pergunta.

Ela resolveu entrar na brincadeira, o velhinho a estava fazendo sorrir. Há quanto tempo não sentia o prazer de uma risada? Sentia a alma leve, espairecida, santo Deus, estava feliz!

– Eu gostaria de amar e ser amada – respondeu sem pensar muito.

– Hoje seu primeiro desejo será realizado.

– No duro?

– Confie em mim, minha querida. Agora eu tenho que ir – disse levantando-se.

– Mas e os outros dois desejos? – ela quis saber, apenas para continuar com a brincadeira, estava se divertindo como nunca em sua vida.

– Por enquanto só vou atender a um desejo, menina. Você está muito travessa. O segundo desejo será realizado esta noite e o terceiro amanhã de manhã. Está bem?

– Está bem, espírito que anda – disse Elisa, em tom galhofeiro. Trocaram um sorriso e o chinês saiu caminhando pelo calçadão, mirradinho, encurvado, os passinhos lentos de alguém com mais de cem anos – ou mil. Ou trezentos mil, sabe-se lá.

Se bem que estivesse intrigada com a cura da queimadura, em pouco menos de meia-hora Elisa já tinha se esquecido do chinesinho. Passou o resto da manhã olhando as vitrines das lojas e por volta do meio-dia foi ao restaurante Platinum, almoçou o prato recomendado pelo chefe de cozinha – na hora de pagar a conta o garçom disse que não era preciso.

– Como assim? – perguntou Elisa, estranhando a gentileza.

– Ordens da dona Regina – disse ele.

– E eu posso saber quem é a essa Regina?

O garçom apontou uma mulher sentada numa mesa ao canto, uma senhora distinta, de uns quarenta anos, boca grande, olhos cinza, cabelos louros arrumados no alto da cabeça e usando um conjunto bege igualzinho ao de uma dessas executivas que se vê nos filmes hollywoodianos.

– Ela é a proprietária deste restaurante – informou o rapaz. A mulher ergueu uma taça de vinho a título de cumprimento, Elisa retribuiu elevando seu copo de suco de framboesa. Já que não precisava pagar, ótimo! Levantou-se e saiu. Uma paz desconhecida reinava em seu coração. Lembrou-se que estava passando uma comédia romântica com a Júlia Roberts no Cine Valentino. O cinema ficava no shopping Montana, um pouco distante do centro. Tomaria um ônibus coletivo? Decidiu ir a pé, estava se sentindo bem, com o espírito apaziguado, com energia física. A sessão começava às duas e meia da tarde, tinha tempo de sobra. Era isso, iria a pé.

*

Elisa entrou no cinema e sentou-se no cantinho da última fileira, queria deliciar-se com sua atriz preferida sem ser incomodada por nenhum panaca metido a conquistador. O filme mal tinha começado quando teve a atenção desviada para um vulto feminino caminhando em sua direção. Droga! A sala estava quase vazia, por que aquele espectro vinha sentar-se logo ao seu lado? Indignada, pregou obstinadamente os olhos na tela. Assim que o ser se aproximou, o ar impregnou-se com um perfume delicado, um daqueles perfumes cuja que gota custa um mês do salário de grande parte dos pobres mortais. Relutantemente Elisa fitou a mulher – era a tal Regina. Seus olhos se encontraram na penumbra.

– Oi – ela disse, acomodando-se na poltrona.

Elisa não respondeu, o perfume emanando daquele corpo estava a lhe perturbar singularmente. O filme começava a ficar interessante quando Elisa sentiu, chocada, que sua mão descuidadamente pousada no braço da poltrona foi coberta pela mão de Regina, uma mão grande, macia e ao mesmo tempo muito forte. Aquele contato deixou Elisa incapaz do mais singelo raciocínio. Aos poucos, entretanto, foi absorvendo a realidade daquele atrevimento e cruzou os braços na altura dos seios. “Eu não sou lésbica”, murmurou num fio de voz. Não ia dar chance àquela mulher desaforada, ah isso não! Então sentiu que sua mão comichava e logo, como se tivesse livre-arbítrio, voltou a pousar no braço da poltrona – ficou ali, não mais um simples prolongamento do corpo de Elisa, mas uma criatura autônoma ansiando por novo contato. Depois de uns cinco minutos que pareceram séculos, Elisa sentiu a grande mão de Regina novamente envolver seus dedos, ir transmitindo ondas magnéticas a lhe energizar cada fibra de suas carnes trêmulas. A mão de Regina escorreu-lhe pelo braço e veio pousar nos ombros fazendo pressão – logo Elisa percebeu a aproximação daquela boca enorme, maior que a de Júlia Roberts, mais carnuda que a Sophia Loren, mais sensual que a de Penélope Cruz, mais perfumada que as flores dos jardins ignotos que povoaram seus sonhos de adolescência – e os lábios das duas se uniram. Elisa sentiu a língua de Regina invadir-lhe a boca, deslizar pelo palato, rolar pelos dentes. E suas entranhas começaram a se incendiar quando a mãozorra introduziu-se sob a sua blusa, com frêmitos de prazer constatou que um de seus seios estava sendo engolfado em carícias prementes, desesperadas, urgentes – e os caldos íntimos explodiram dentro de si, escorreram pelas coxas, deixaram a calcinha absurdamente melada. A boca de Elisa na boca de Regina gemia apelos insanos. Elisa sentiu que sua blusa era levantada e que seu seio era engolido pela boca faminta da mulher, a grande mão avançou em suas coxas – enlouquecida, Elisa soergueu os quadris para o vestido recuar, facilitando o contato mais íntimo com o seu sexo. E gozos sucessivos vieram. O mundo todo era uma imensa bola de lava vulcânica. A língua nos seios, os dedos hábeis acariciando a região mais sensível de seu corpo, tudo dava a Elisa a exata dimensão do momento em que o ser humano conhece a centelha divina. Então Regina parou bruscamente com os movimentos, levou a boca ao ouvido de Elisa e sussurrou:

– Estou perdidamente apaixonada por você, querida. Quer ser a minha princesa?

– Quero – balbuciou Elisa, ainda mergulhada em êxtase gozoso.

– Não vamos nos precipitar, querida. Pense a respeito. Amanhã, no restaurante, você me dá a resposta, uma resposta analisada com cuidado e objetividade.

Deu um beijo na face de Elisa, levantou-se da poltrona e saiu do Valentino. Elisa estava tão saciada que em pouco pegou no sono, só acordou quando um funcionário do cinema tocou em seu braço e avisou que o filme tinha terminado.

*

Já havia anoitecido quando Elisa chegou em casa. Nestor estava só de cuecas esparramado numa poltrona em frente à tevê ligada num deprimente programa policial, uma mão equilibrava o litro de cachaça quase vazio na pança obscena, a outra mão esfregava os órgãos genitais em busca de ereção. Nestor lançou um olhar de ódio gratuito para Elisa, meteu o gargalo do litro na boca e bebeu o resto de cachaça, em seguida lançou o casco na direção dela. O litro passou zunindo perto da orelha de Elisa e foi se espatifar na parede. O marido limpou a baba escorrendo pelo canto dos beiços, arrotou como um porco e depois gritou:

– Vai no boteco me buscar outra garrafa, biscate ordinária!

– Eu mal cheguei – disse Elisa, tremendo. O medo que sentia daquele monstro era inexplicável, irracional.

– Vai logo, leprosa! – ordenou Nestor. Tirou o pênis enrijecido de dentro da cueca, riu mostrando os dentes como um cão raivoso. – Esta noite vai ter enrabação. Você levar gostoso na bundinha, ordinária! Vai logo buscar a pinga, filha da puta! – exclamou e, pegando o pesado cinzeiro de bronze no chão à beira da poltrona, arremessou-o. Acertou em cheio o peito de Elisa, ela caiu de costas com a dor insuportável se alastrando do pescoço à região abdominal e olhou aturdida para o marido, ele tinha um dos chinelos na mão e começava a se levantar da poltrona fuzilando-a com um olhar expelindo toneladas de fúria assassina – Elisa nem soube como, mas achou um jeito de correr de gatinhas para a porta, ganhou a calçada. Ali, parado junto ao poste de iluminação pública, estava o mago chinês. Ele estendeu a mão e ajudou Elisa a se pôr de pé.

– Quer fazer agora o seu segundo desejo? – perguntou.

– Quero que o senhor dê um jeito no meu marido!

– Por quê?

– Ora, por quê! Porque ele é um rato de esgoto!

– Está bem, minha menina, seu segundo desejo será atendido. Espere aqui uns três minutos e depois pode entrar em casa.

Elisa ficou olhando o chinesinho caminhar para a residência com aquele passinho miúdo, todo encurvado, tão pequenininho que por um instante duvidou que seus poderes mágicos tivessem alguma eficácia contra Nestor, o brutamontes do marido era a própria encarnação de Lúcifer. O peito doía tão intensamente que teve certeza absoluta, a caixa torácica estava fraturada. Suas pernas estavam bambas, por isso Elisa apoiou-se no poste da rua e, sob a luz amarelada, começou a vomitar. Cinco minutos após se recompôs e retornou a casa. Nestor havia desaparecido. Esquadrinhou a sala, o quarto, a cozinha, o banheiro – sorriu. O mago chinês teria mandado o miserável para o inferno? Então ouviu uns chiados de terror, vindo da despensa. Mais assustada que curiosa, foi ao cômodo, acendeu a luz. Os produtos de limpeza estavam espalhados por toda parte e num canto havia um gordo rato cinzento em agonia, agitando desesperadamente as patas dianteiras enquanto um gatão negro desconhecido cuidava de mastigar vorazmente seus quartos. Os olhos de Elisa se encontraram com os do rato, fitaram-se longamente, Elisa não teve nenhuma dúvida, os olhos do roedor eram humanos, definitivamente humanos, eram incontestavelmente os olhos de Nestor. Elisa pegou um balde, virou-o de boca para baixo, sentou-se e assistiu passivamente o gatão negro devorar o gordo rato por inteiro. Em seguida o bichano lambeu o sangue dos bigodes e fitou Elisa – tinha olhos amendoados, sorridentes e, também, eram inacreditavelmente humanos. Os olhos do mago chinês. O gatão ergueu o rabo, levantou a cabeça e saiu da despensa, magnânimo como um felino heróico dos desenhos animados, altivo como um imperador da Dinastia Shang. Elisa ergueu-se do balde, deu uma olhada geral no cômodo pensando em como estava com o peito dolorido, como estava exausta para a limpar a sujeira deixada pelo gato comilão, mas constatou, aliviada, que não havia vestígios de sangue, de pelos, de substâncias das vísceras do rato – o bichano deixara o local mais imaculado que um quarto de hospital. Apoiando-se nas paredes, Elisa dirigiu-se à sala, precisava telefonar para a emergência hospitalar, suas dores no tórax eram devastadoras – antes de pegar o aparelho telefônico, estatelou no chão e por mais que tentasse não conseguia levantar-se. Arrastou-se como um verme, uma taturana, uma lacraia, até o quarto de dormir, cravou as unhas no colchão, conseguiu com esforço supremo elevar-se do chão e se estender de bruços no leito, suava em bicas, a respiração acelerada competia com o coração retumbando endoidecido. Fechou os olhos e esperou pela morte. O que veio foi uma mão suave massageando levemente suas costas. Era a mão do mago chinês, Elisa sabia, oh como sabia! O alívio foi imediato, em pouco sentiu que iria dormir em paz e que acordaria completamente curada dos males físicos. Estava quase adormecendo quando ouviu, distintamente, o mago dizer:

– Amanhã cedo venho te encontrar para a realização do teu último desejo. Às dez horas está bom pra você, menina?

– Está...

– Muito bem.

Antes de adormecer por completo, Elisa ouviu uma música suave, terna, tomar conta de seu espírito. Era uma canção de ninar, talvez em mandarim, talvez em cantonês, ela não saberia distinguir. Era a canção mais doce do mundo – a canção de ninar que seus pais nunca cantaram para espantar os seus fantasmas noturnos.

*

Elisa acordou bem disposta, tendo passado uma noite de sono suave, sem pesadelos, coisa raríssima de acontecer. Ao abrir a janela dando para os fundos, viu que a vegetação selvagem do quintal fora substituída por imponentes roseiras floridas emanando um olor tão intenso que ela, de tão feliz, arrancou a roupa amarfanhada com que dormira e deixou que seu corpo nu fosse beijado pela brisa leve e brincalhona e incensado pelos perfumes evolando das rosas. Permaneceu em posição estática por longos minutos, braços abertos, sentindo fluir para os mais recônditos de seu íntimo imensuráveis sensações de paz, delicadezas, harmonias e encantamento.

Assim, plena de tranquilidade espiritual, foi tomar banho. Ficou quase uma hora debaixo da água maciamente acariciando seu corpo. Olhou-se, após, no espelho, atenta e minuciosamente: seu rosto juvenil apresentando ancestrais traços itálicos pareceu-lhe singularmente belo e seu corpo curvilíneo repleto de sedução. Então se lembrou que iria receber a visita do mago chinês às dez horas. Vestiu-se, acomodou-se à frente da penteadeira e começou a pentear os cabelos, a mente trabalhando: o que iria pedir ao chinesinho? Eliminou os desejos de glória, de honrarias, de riqueza ou de poder, nada disso a interessava. Decidiu-se: queria ser engravidada por Regina, queria criar um filho com a mulher mais fantástica do mundo. Não pensou no absurdo de uma mulher fecundar outra mulher. Não, não pensou nisso. Afinal, tinha aprendido a confiar cegamente no seu pequenino mago chinês.