A Era das Trevas - Capítulo 1
O trecho que acabou de ler foi o único fragmento que restou de minha história. Descobri hoje mesmo que minha casa foi queimada e, infelizmente, havia deixado todos meus diários lá. Neles continham acontecimentos de minha vida, aquilo que eu não queria esquecer, mas que era inevitável. Parte do que havia escrito ainda lembro, porém, o que continha nos diários mais antigos, em maior parte, esqueci. Não que eu tenha uma memória ruim, o problema que, com os anos, a memória vai descartando aquilo que já está a mais tempo guardado.
Agora mesmo estou recomeçando meus diários. E antes que mais memórias sumam, contarei vagas passagens, as mais antigas de minha vida, quais ainda lembro. Certa vez morei numa casa, perto de uma montanha, na Inglaterra. Não lembro dos motivos de morar lá, nem como fui parar naquele lugar, nem o que fazia para viver. Só lembro que, na sacada da casa, havia uma rede amarrada em dois pilares, nela eu estava deitado e me balançando com os pés na parede. A brisa batia no meu rosto e eu me impulsionava mais, mais e mais...
Outra memória me veio a mente, uma mais antiga ainda, escreverei logo antes que suma. Nela eu ainda era uma criança, estava dentro de uma casa grande, porém vazia. Me balançava numa cadeira de balanço olhando para minha face no espelho. Eu parecia ver o nada. Sentia como se eu também não estivesse ali, como se eu não existisse. O ranger da madeira, ao a cadeira ser balançada, não me irritava. Os cortes em meus braços e pernas não doíam; ou eu também não ligava para isso. A cadeira ia e voltava, e eu ficava. Ficava para contemplar as trevas.
Uma lembrança forte... e rara. Nem nos meus diários pude escrever sobre minha infância, esqueci ela antes mesmo de perceber que havia esquecido tantas coisas. Quando percebi, é que comecei a escrever. Esquecer é muito ruim, dor maior não tive quando todos os papeis, de tantos e tantos anos de escrito, foram queimados... Havia tantos diários que preenchi uma enorme biblioteca dentro de casa, o maior comodo da casa. Tudo simplesmente virou fogueira.
Se por acaso você seja um leitor que não seja eu, deve estar com diversas dúvidas a respeito de minha história. Como eu tinha tantos diários? Como esqueci de tantas coisas? Responderei essas, e outras no decorrer da escrita.
O dia que agora irei narrar tenho certeza que nunca esquecerei, foi nele que recebi minha maldição. Lembro-me de sair de carroça em direção a casa de um barão, ele havia mandado um representante me chamar porque ouviu falar de meus dotes no piano; dom que tenho e nunca descobri quando e onde aprendi. Eu era um bom pianista, mesmo assim, estava nervoso. Não por causa que duvidava do meu talento, mas sim porque o barão tinha uma péssima fama.
Seu castelo ficava isolado no meio de uma floresta, reza a lenda que ele recebia pessoas perdidas na floresta, dando-lhes o que comer, o que beber e onde dormir. E então, em seus sonos decadentes, eram atacadas e devoradas pelo Barão. Utilizavam a palavra "vampiro" para designa-lo. Eram lendas, é claro, parte de mim não acreditava naquilo. Outra parte... me deixava com medo.
Chegamos em frente ao portão do castelo; estávamos lá eu, o carroceiro e os dois cavalos que nos puxavam. O portão era comprido e alto, de um ferro negro e moldado com desenhos de cobras. Aqueles repteis fizeram com que um arrepio atingisse minha nuca; e não era só isso que me atormentava, o castelo mais ao fundo possuía uma aparência funesta, sendo inteiro construído no estilo gótico.
Do outro lado do portão um homem vinha para abri-lo, ele segurava uma lamparina e estava vestido de terno cinza, chapéu marrom e sapatos negros. Andava sempre de cabeça baixa, para que seu rosto não fosse iluminado e o deixasse amostra. Esse é outro ser infeliz que nunca vou esquecer, um homem maldito e repugnante. Mas isso logo contarei... Deixemos minhas emoções de lado.
Tive que descer da carroça, o carroceiro se recusava a atravessar o portão, sentia medo e estava inquieto. Recomendava que eu voltasse também, dizia que aquela era um lugar maldito, que nunca entraria ali. Então por que me levou até ali? Não argumentei muito, paguei a viagem e me despedi. Dias mais tarde descobri que o homem morreu naquela mesma viagem, a perna de um de seus cavalos quebrou e a carroça foi em direção a um desfiladeiro.
Segui o homem que segurava a lamparina, fizemos uma longa viagem a pé, até chegar no castelo demorou em torno de duas horas. Ao adentrarmos a construção, fui recebido por uma mulher muito atraente, seu cabelo era vermelho natural, o vestido cor de mel, a pele branca e com o rosto pintado de sardas. O que mais me chamou atenção eram seus olhos, castanhos quase negro. O homem da lamparina nos deixou a sós, e ela me levou até uma sala enorme, equipada de uma lareira que chamuscava e fornecia o calor que precisava.
- O barão está? - perguntei.
- Barão? - disse ela se sentando numa poltrona. A seu lado estava um piano roxo, parecia nunca ter sido usado de tanto que brilhava.
- Sim, foi ele quem mandou me chamou...
Ela riu.
- Não, não foi. Aqui nesse castelo não há nenhum barão.
- Devo estar no castelo errado - meu rosto se tingiu vermelho. Ela se divertiu mais.
- Também não. Fui eu que te chamei.
- Você? Mas você é uma...
- ...Mulher? - completou. - Como já percebeu, sim, eu sou. E devo ressaltar que sou dona de toda a redondeza, tenho uma grande expansão de terra onde produzo boa parte do que você come, bebe e, até mesmo, veste. Achou que nenhuma mulher seria capaz de possuir tudo isso?
- Não foi isso que pensei...
- Eu sei - sorriu. - Existem muitos boatos sobre mim, é difícil distinguir os verdadeiros dos falsos. - pensei imediatamente nos boatos mais horríveis sobre ele, quer dizer, ela. Certa vez ouvi falar que sua existência já durava décadas, se alimentava da vida daqueles que ali apareciam, adquirindo assim a vida eterna. Agora sua risada foi agorenta. - Pela sua face os boatos não são nada bons. Achas mesmo que eu seria capaz de te fazer algum mal?
- Certamente que não, minha senhora - respondi sem jeito.
- Pode me chamar de Baronesa, eu deixo.
- Tudo bem, Baronesa. - cada vez eu ficava mais sem jeito, não sabia o que falar. Tive que ir direto ao assunto: - A senhora, digo, a baronesa quer que eu toque algo?
- Só meu coração já é suficiente - eu corei. - É brincadeira, desejo sim. A final, foi para isso que te chamei aqui. - fui até o piano e toquei a musica mais alegre que conhecia, disfarçando assim a agonia que eu sentia. Havia algo de errado com aquela mulher, sentia isso, um sentimento intimo que parecia tão certo quanto qualquer pensamento racional.