884-O LADRÃO SILENCIOSO- Memórias

O LADRÃO SILENCIOSO

Devo confessar que não tenho medo de nada. Nem da morte. Sou do tipo emocional que age antes de pensar, instintivamente, ou melhor, irracionalmente. O que parece ser vantagem me coloca em certas ocasiões em situação de alto risco.

No momento, acontece tudo tão de repente que nem penso no que faço. Às vezes, como no caso que vou narrar, nada faço. Mas em seguida, vem o pavor ou o terror. E mais a longo prazo, a tomada de medidas de segurança para que tal evento não se repita, ou, pelo menos, tentando evitar a repetição de eventos desagradáveis e perigosos.

O acontecimento que enfrentei com mais risco foi uma tentativa de roubo em minha casa, pelos idos de 1970. Até então, os muros vicinais, de dois metros de altura, eram desguarnecidos de qualquer sistema de segurança. Bons tempos aqueles em que não havia, como hoje, grades nem altos muros cercando a frente das casas, transformando as residências em verdadeiras prisões dos moradores.

Mas vamos aos fatos, que tento lembrar antes que a memória me traia.

Acordei na madrugada com o barulho de uma janela de metal sendo fechada com estridência. No primeiro momento, pensei:

Poxa, o vizinho chegou tarde, só agora está fechando a janela...

Mas, logo me dei conta: o barulho era próprio da janela de meu escritório, que fica no fundo do quintal.

Levantei-me com cuidado para não acordar minha esposa. Enquanto procurava os chinelos com os pés, vi a hora no relógio digital, de cabeceira: três da madrugada. Saí do quarto, fui em direção da porta da cozinha, acendendo as luzes da copa, da cozinha e do quintal.

Era uma noite de calor e eu trajava um leve pijama curto. Nada que pudesse me proteger de um eventual ataque. Assim mesmo, abri a porta da cozinha, de onde via todo o quintal. A luz do meu escritório estava acesa e a janela escancarada.

Encostei-me no parapeito da pequena sacada que se eleva a um metro do piso do quintal. As mãos vazias, e o coração acelerado.

Tem alguém lá dentro, pensei.

Num átimo, um homem saltou pela janela e veio na minha direção. Fiquei estatelado, surpreso, imóvel com uma estátua.

O ladrão se aproximou da sacada, e ficamos cara a cara, eu numa posição elevada com relação ao bandido. Era um negro, de enormes olhos brancos, carapinha crescida, magro e ágil. Em nenhum momento, pensei em fugir, entrar e trancar a porta. Aliás, minha cabeça ficou drenada de qualquer pensamento ou idéia.

Ele levou a mão direita aos próprios lábios, num sinal determinado de “Silêncio!”. Em seguida, com uma agilidade caprina, correu até o muro lateral, no qual subiu e continuou correndo. Passou por cima do telhado da casa e desceu na parte da frente, no jardim, alcançando a rua.

Ainda estava permanecia estático quando minha mulher, que havia se levantado devido à claridade das luzes acesas naquela hora, chegou ao meu lado.

— Você está bem? — me perguntou em voz trêmula.

Virei-me para fitá-la. Minha cara devia expressar puro terror, pois ela se assustou.

Antes que eu lhe respondesse ela disse:

— Vi um vulto correndo em cima do muro.

Entramos pela porta da cozinha. Ela me ofereceu um copo d’água também se servindo de outro. Só depois de tomar a água de uma só vez, é que readquiri a fala. A sua presença de trouxe de volta à normalidade.

— O ladrão estava no escritório.

— Você viu se ele levou alguma coisa?

— Acho que não. Vamos lá ver.

— Cuidado, pode ter outro escondido lá.

Peguei o molho de chaves das portas do meu escritório, da lavanderia e da sala de aula de minha mulher. Desci os cinco lances da escada da que vai da sacada para o quintal.

As portas estavam trancadas, não tinham sido arrombadas. Entrei no escritório, cuja janela estava aberta. Tudo estava no lugar. O bandido não tivera tempo de pegar nada. Um fio cortado, pendendo do aparelho de som “três em um”, era o único sinal de que o ladrão pretendia levar: um verdadeiro trambolho, medindo oitenta centímetros de comprimento por quarenta de largura e vinte de altura.

—Não sei como ele ia conseguir levar este aparelho pulando sobre o muro e o telhado da casa.

Verifiquei então a minha falha: a janela do escritório, de metal e de correr, estava escancarada, sem sinal de arrombamento. Tinha (e ainda tenho) o cuidado de fechá-la todas as noites, passando o cadeado. Naquela noite, havia me esquecido de trancá-la.

Fechei a janela com o cadeado, tranquei a porta e subimos para dentro de casa.

Ao voltar para a cama é que senti todo o pavor e comecei a pensar na falta de bom senso de minha parte, abrindo a porta da cozinha e me expondo, de mãos nuas, a um perigo impossível de imaginar.

Claro que não consegui dormir pelo resto da madrugada.

Com diz o ditado: depois da casa arrombada é que se coloca a tranca. Assim foi.

No dia seguinte, procurei serralheiro e pedreiro, a fim de instalar um sistema de segurança sobre o muro e sobre a grade de metal na frente da casa.

Se chamei a policia ou registrei a ocorrência? Caro leitor, se eu narrasse a uma patrulha o que fiz (ou deixei de fazer), os caras iriam gozar na minha cara.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 23 de janeiro de 2015

Conto # 884 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

intercâmbio: argobbo@yahoo.com.br

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 25/09/2015
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