Assassinato 408

“Ele não devia ter tirado o contorno da fechadura.” Pensou enquanto digitava seu trabalho de faculdade.

Agora estava aquele buraco enorme, onde a chave arredondada entraria. Mas, sem a chave, ficaria aquele rombo do tamanho de uma narina. Era estranho poder ver através daquele pequeno buraco. Por mais que soubesse que, ali na frente, se por acaso expiasse, veria a porta acinzentada e pedindo uma nova mão de tinta, do vizinho do 408.

Não costumava a cismar com as coisas, mas aquele buraco estava o incomodando. Não ligava mais para o forró no bar embaixo do prédio. Muito menos com os pulos incessantes, altas horas da noite, dos gêmeos de sete anos, filhos de seu amigo, no andar de cima. Era aquela porra de buraco na fechadura que o incomodava. Ficava bem ali na porta principal, e se deitasse no sofá, a sua visão sempre seria levada pelo foco de luz pequeno, trazendo uma microluminosidade para sua sala escura – pois só assistia televisão se estivesse um completo breu – e o distraindo.

No começo colocou uma tira de fita isolante. No começo adiantou, mas estava engordurando a fechadura. Depois, resolveu deixar a chave ali mesmo. Sem tirar. Passava anoite ali. Mas, por mais estranho que parecesse, tinha a impressão de que elas se mexiam sozinhas durante a madrugada. Tinha a impressão não, elas realmente começavam a se balançar sozinhas. Irritado, para não dizer assustado, ele retirou a chave.

Já num dormia. Seus olhos sempre eram levados para aquele buraquinho irritante. Colocara uma bolinha de papel molhada certa noite, mas tivera quase que chamar um chaveiro para retirá-la. Porém, com um clips desdobrado, conseguiu retirar. Mas o buraco voltou. Lá estava ele, aquele mini-olho o encarando, e deixando a luz de fora entrar na sala escura. Curioso, levantou-se e ficou encarando a fechadura. Era possível ver uma parte da porta do 408. Suja, mal conservada. Contudo, tinha medo de chegar mais perto e olhar.

Então, ele sonhou. Então teve a ilusão de um ser acinzentado o encarando do lado de fora, no meio da madrugada. Tinha as feições do chaveiro que levara o contorno da fechadura para consertar, escondidas em meio há feições grotescas deum monstro meio demoníaco. O estranho ser, com as mãos dispostas em forma de garras, sorria para quem o observasse. Arranhava a porta da frente com suas unhas pontiagudas, e a porta sangrava. Sangrava e parecia possuir veias, que pulsavam a cada esguicho de sangue que jorrava. Ele então tentava esconder a cena de sues olhos. Observava tudo como que diante de uma câmera em primeira pessoa. E enquanto o monstro arranhava a madeira, ouvia-se gritos, risadas histéricas e assustadoras, além de uma canção abafada, que parecia forró.

Acordou durante o sonho que se repetia há uma semana. Parou de pé diante da fechadura e ficou encarando o buraquinho iluminado. Sentiu suas costas arderem como se algo tivesse ferindo-as superficialmente, mas com uma dor lasciva que atingia sua nuca internamente. Foi até a área de serviços e revirou uma lata de biscoitos antiga, onde agora guardava suas tralhas. Retirou um clips de papel. Foi o desentortando até que virasse um palito de metal.

Aproximou-se da porta com os olhos ardendo de sono. Pareceu ter visto uma sombra na fechadura, como se alguém estivesse do outro lado da porta. Num golpe rápido, enfiou o clips desentortado no buraco da fechadura, e puxou de volta, depois enfiando-o de novo, e puxando de volta. Repetiu o movimento até seu braço cansar e perder forças. Puxou o palito de vez, e notou que estava sujo. A fechadura estava escura, coberta de sangue.

Abriu a porta devagar. Cismado. Com os olhos ardendo e o clips na mão.

A criatura o aguardava na porta do 408. No chão, o chaveiro segurando o contorno prateado que viera trazer de volta.

Ele voltou para dentro de casa. Abriu a gaveta de seu criado mudo. Pegou uma caneta Bic e retirou sua carga. Ficou apenas com o tubo vazio. Feito isso, foi até o banheiro e abriu a última gaveta do armário. Dentro de um rolo inacabado de papel-higiênico, retirou um embrulho em papel laminado. Abriu o embrulho. E inseriu o tubo da caneta em meio a uma quantidade considerável de cocaína ali guardada.

Enquanto se entorpecia, mais medos surgiam, e as criaturas animalescas pareciam aplaudir.

A fechadura ficou lá com defeito. Os próximos moradores não demorariam a trocar.

Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 19/09/2015
Código do texto: T5387186
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