Um palhaço com olhos de vidro e o gato preto
Um palhaço com olhos de vidro e o gato preto
Na madrugada gelada, as gotas frias do sereno trazidas pelo vento batem no rosto daquele andarilho solitário que procura um abrigo para dormir. Ele já caminha com dificuldade por sentir dores nos pés congelados e o vento cortando seu corpo causa calafrios momentâneos que o fazem tremer. As gotas geladas misturadas ao vento frio parecem queimar a pele daquele caminhante solitário da rua deserta.
O asfalto molhado começa a ficar perigoso, então ele caminha com cuidado para não escorregar, pois há poucas luzes acesas, isso deixa a visão turva e enganosa.
De repente um gato preto cruza o seu caminho e ele por ser extremamente supersticioso imediatamente para. Agora ele ficou com receio de continuar a caminhada por essa rua, pois pode trazer azar e se tornar perigoso, então resolveu mudar o caminho. Entrou em outra rua, a qual também estava totalmente deserta e continuou caminhando com dificuldades.
A solidão da noite fazia qualquer movimento parecer assustador e no meio da neblina misturada ao sereno ele avistou uma pessoa sentada na calçada. Foi um momento que o deixou confuso entre desconfiança e medo, porém não tinha como voltar atrás, então ele continuou caminhando com o olhar atento aos movimentos da pessoa que estava sentada na calçada.
À medida que ele ia se aproximando, percebia que havia alguma coisa estranha naquela pessoa, que agora parecia ser uma criança. O homem parou, olhou com mais atenção e percebeu que a pessoa também olhava para ele, mas parecia um olhar vitrificado de alguém que não tinha vida.
Aquele olhar refletindo a iluminação da rua parecia ser de vidro, esse brilho fazia com que a curiosidade tomasse o lugar do medo, então ele resolveu chegar mais perto. Agora não parece mais uma pessoa e sim um boneco que alguém deve ter abandonado na rua.
O andarilho se aproximava olhando para o boneco enquanto o boneco também olhava para ele. Mais perto e ele percebeu que o boneco era um palhaço de olhos de vidro, porém ao chegar bem próximo um movimento brusco no corpo do palhaço lhe deu o maior susto, um gato preto saltou do colo do boneco e saiu correndo.
Ao ver o gato pular e correr, o homem supersticioso ficou amedrontado e hesitou em continuar, não sabia o que fazer e caminhou em volta do boneco que parecia acompanhá-lo com o olhar.
Confuso com tudo o que estava acontecendo, a razão superou o medo e ele se aproximou do palhaço, pegando-o em seus braços, mesmo sendo um boneco com olhos de vidro, seu olhar parecia real e delator de algumas vontades quase impossíveis.
Ele olhava nos olhos de vidro do palhaço e o palhaço olhava nos seus olhos cansados, depois colocou o boneco embaixo do braço e continuou caminhando vagarosamente com os dedos dos pés doendo e duros de frio. Foi nesse momento que ele escutou:
- Você está me machucando!
O andarilho olhou para trás e não viu ninguém, então imaginou ter ouvido coisas. Balançou a cabeça como se estivesse ouvindo coisas sem sentido e continuou caminhando, porém ouviu novamente:
- Você está me machucando!
O homem olhou para o boneco e falou para si mesmo, já que não havia mais ninguém naquele local: Preciso descansar. Já estou ouvindo coisas!
E o boneco respondeu:
- Precisa mesmo! Você está um lixo.
O homem olhou atentamente para o boneco, bem próximo daquele palhaço de olhos de vidro e perguntou:
- Quem é você? Quem o abandonou naquela calçada?
- Eu sou a encruzilhada da vida. Sou do mundo de vidro e necessito de um coração ao lado para poder viver e quem me abandonou naquele lugar foi uma pessoa que perdeu o calor do coração.
Ambos admiravam o rosto um do outro. O homem com um olhar cansado observava cada detalhe da pintura de palhaço feita por alguém no rosto daquele boneco, aqueles olhos de vidro que pareciam vivos. Por outro ângulo o boneco estudava faceiramente o rosto cansado daquele homem aparentemente abandonado, barbudo, despenteado, sujo, porém com uma expressão facial de bondade, o boneco percebera nele um coração bom. Seria uma presa fácil.
O homem imaginou que estava sonhando, pois o sonho é como uma caixinha de surpresa que sai do meio de um nevoeiro de imaginações, vontades, desejos e nos transporta para um real imaginário onde temos a sensação de que realmente aconteceu, pois um sonho bem sonhado nos deixa com um sorriso satisfeito de felicidade e com uma vontade louca de sonhar mais, porém como poderia ser um sonho se ele estava frente a frente com aquele palhaço de olhos de vidro. A não ser que fosse um pesadelo. Ele olhou para o boneco e perguntou:
- O que eu faço agora?
- Me leva com você! Ajude-me a viver!
O homem caminhava no meio da neblina fria com o palhaço nos braços e percebia que era seguido pelo gato preto. De repente parou e tentou espantar o bichano.
- Some gato preto! Você traz azar, me dá calafrios e pressentimentos ruins.
O palhaço falou:
- Não é um gato! É uma gata e ela me acompanha aonde eu for. Nosso destino é ficar juntos e foi ela quem trouxe você para mim.
O palhaço apontou para um beco escuro, abandonado e falou:
- Aquele é um ótimo lugar para passarmos a noite.
- Naquele beco escuro!
- Pode confiar em mim! Aquele é um abrigo seguro.
O medo às vezes faz o escuro se transformar em um monstro assustador, porém a rua deserta parece não ter fim já que as energias se esgotaram. As pernas não obedecem mais e doem, os pés congelaram, então é melhor descansar naquele beco escuro do que cair na calçada fria e morrer congelado sem forças para reagir.
Ao entrar no beco o andarilho encontrou algumas madeiras secas e acendeu uma fogueira, depois se acomodou no calor do fogo e foi lentamente sendo consumido pelo cansaço e o sono, até que o palhaço falou:
- Você não pode dormir! Tem que ficar acordado! Eu dependo de você para viver! Se você dormir, eu morro.
O brilho do fogo, o calor abraçando e convidando para dormir, os olhos de vidro do palhaço refletindo as labaredas e a suplica de suas palavras num pedido de socorro, pedindo o quase impossível para alguém que passara tanto frio. No escuro aparecia somente o brilho dos olhos da gata.
- Eu não consigo ficar acordado!
O fogo aquecendo. O palhaço implorando e os olhos se aproximando.
O homem fecha os olhos se despedindo da vida. O palhaço entra em pânico tentando sobreviver, mas não escuta mais o coração bater e nos seus olhos de vidro o reflexo das patas da gata arranhando.
O dia clareou e da fogueira sobrou só as cinzas, Deitado e com marcas de garras no rosto o homem continua a dormir seu sono eterno com os olhos vitrificados. O palhaço sumiu daquele local levado pela gata ciumenta.
Quando a noite voltar, a gata trará outro coração para que os olhos de vidro do palhaço brilhem novamente, porém sempre ao alcance das garras dela.
Paulo Ribeiro de Alvarenga
Criador de vaga-lumes
Iluminando Pensamentos
VruuummmmZuuummmm...