Luzes da Maré

Luzes da Maré

Por Fernando Silva

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De tanto cismar menino e ler os olhos do meu velho pai aprendi dele lições que o mistério acoberta ao embalo dos banzeiros que minha memória ainda guarda...

Era maré de quarto-morto, noite com a lua em “D”; tempo limpo, pois verão se dava; em vazante a montaria descendo o rio, na popa o remador tendo à cabeça seu velho chapéu de palha de carnaúba e um cigarro de tabaco novo; lançava ao ar a fumaça que se desfigurava ao sopro do vento brando.

À ribeira sombras teciam sobre a água a silhueta dos mangueiros e siriúbas encopados sob a fina luz roubada da lua que já se fazia à meio caminho do poente.

Lá para as cabeceiras da Ilha dos Pássaros lanceavam os camaroeiros de arrasto com suas puçás e na enseada do Sapo, no seio da Baia do Maiaú, o velho Turíbio pescava solitário como era seu vício desde menino.

Foi nessa noite de aparente calmaria que a meninada corria em volta da fogueira que se avistou com espanto a luz misteriosa que ergue-se em alto-mar, avermelhada como rubi e depois amarela como as fagulhas da fogueira a tremular no ar. O espanto alardeia a criançada que acudiam às saias das poucas mães que ali paravam; os mais velhos com vistas turvas olham ao longe e acodem com ralhos e algum senão sobre as frontes grisalhas: valha nos Deus e Nossa Senhora! Todos para dentro! Escondam-se, ela há de passar!

Silêncio se fez e apagaram-se todas as luzes, somente uns parcos olhares por entre as meaçabas serradas; lá fora o crepitar da fogueira já anunciava a madrugada e os velhos em vigília com panelas e paus de prontidão para uma possível reação; o medo se ocupava de olhos teimosos que se arriscavam a acompanhar pelas frestas a assombrosa luz-da-maré.

Ela erguera-se em meio as ondas, tremulara como se fogo fosse ao sopro do forte vento e seguira seu rito macabro, mudando de cor, crescendo e diminuindo seu brilho, empreendendo singular velocidade como se pressa tivesse em chegar a alguma parte ou simplesmente amendrontar todos quantos a avistassem;

Conta-se que os velhos a avistaram em noite não sabida; de certeza só intuia-se que se dera entre setembro e outubro lá pela segunda metade dos anos setenta. Corria a notícia que fora avistada de primeira pelo velho Turíbio, que tivera a infelicidade de estar sozinho a pescar lá para as bandas do Lombo do Sapo, quando fora ele surpreendido por uma bola com luzes coloridas que passara de sobrevôo perto de sua montaria.

Eram luzes intensamente fortes que ofuscavam a vista e escondiam algum objeto que a projetava; estranhava-se que luz tão intensa à sua volta e sob ela nada iluminava; o velho perguntava-se como seria possível que lá por aquelas bandas pudesse haver algo tão estranhamente belo e assombroso. Por que aquela luz nada iluminava. Ele observara que ela lentamente afastara-se e num lampejo desabalou rio adentro em direção a Ilha dos Pássaros e mantendo sua cor e mesma altitude desapareceu lá para o rumo do Maranduba.

Não era uma embarcação, posto que não ouvira barulho de motor, sequer um silvo; não era um avião, pois ficara por alguns minutos quase que pairando sobre sua montaria; perdido entre perguntas e atônito com tal aparição só notara quando a misteriosa luz retornou em velocidade ímpar e no mesmo canto em que surgira, ali mesmo desaparecera.

Dizia-se que o velho Turíbio contara que após a aparição e o sumiço das luzes o corpo sentia-se dormente e a fala embaraçada; não podia gritar e sem tato sentia apenas como se sua alma estivesse leve de algum pavor causado por aquele assombro; como se despertasse de um sonho; algo em seu peito o ordenara para erguer a vela da montaria e tomando o remo retornou para a velha vila de pescadores no Picanço. A barra do dia já se fazia rubra e logo os raios douro-avermelhados da manhã lhe fazia aportar na enseada da Ponta.

Por qualquer razão que não se sabia o velho arpoador já não se animava a pescar nas marés de quarto-morto; dona Maricota dizia que ele passava agora horas sentado à soleira da porta com o olhar perdido em algum lugar a sorrir como se a alma criança fosse. O episódio das luzes tornou-se corriqueiro que de tempo em tempo se voltava a manifestar; sempre em noites de lua “D”.

Em meados de outubro a pacata vila mudara sua rotina; nas noites enluaradas se arriscavam uns poucos a sair para a pesca; os currais eram sempre despescados por grupos de homens munidos de terçados e medo; nas noites escuras umas poucas fogueiras se erguia; mulheres e crianças andavam com olhos fixos em direção ao mar e recolhiam-se cedo às suas casas; alguns mais corajosos ficavam horas a fio em vigília com olhar firme em algum canto mar à fora intuindo avistar as luzes misteriosas e descobrir o que seria aquilo.

Muitos pressagiavam ser aquilo dos céus um aviso de fim dos tempos, outros diziam tratar-se de disco voador; em sua maioria o povo vivia assombrado só de ouvir falar, ainda que nunca tenham de tudo sequer avistado tal coisa; temiam por suas crianças que, segundo se espalhou, seriam levadas pelo tal disco voador;

Os meses se foram passando e logo viraram ano e as luzes da maré se repetiam como num calendário fixo, sempre em noites de lua-míngua, sem nunca jamais falhar; o mar tornou-se macabro para os pescadores de fora que nunca se arriscavam a anoitecer do lado de fora da quebra; os camaroeiros e tarrafeadores já não sentiam coragem para aventurar-se nem mesmo à pancada em noites sombrias assim.

Seu Turíbio guardava no peito uma alegria invasora que agora só pertencia para si a tecer seus cofos e meaçabas; já não mais pescava, pois a idade demonstrava que seu tempo não o permitia como nas façanhas de outrora; ainda sentava-se à soleira a fitar o mar ou algum ponto no horizonte com os olhos embaçados de esperança por algo que não comportava em sua alma de magnífico espanto.

Em certas noites dona Maricota ao dar por sua falta o encontrava a andar na pancada pronunciando uma fala desconhecida e por vezes um canto majestoso como se fosse um hino celestial; sem nada entender, mas apenas preocupada com o velho companheiro, o tomava pelas mãos e o conduzia para casa em silêncio.

O tempo foi aos poucos tomando um espaço cada vez menor e os dias do velho Turíbio viera a encerrar-se numa dessas noites que a lua “D” já se punha e a madrugada era chegada; as luzes da maré ressurgiram e naquela noite cumpriu seu último rito de assombro. Como surgiram, assim desapareceram aquelas espantosas aparições que povoaram nossas infâncias de mistério e hoje apenas se recorda em numa ou outra circunstância como luzes da maré. Ainda hoje, as gerações daquele tempo, ao ouvir tais lembranças, ainda têm suas almas inundadas pelo mesmo medo inexplicável.

Carpina
Enviado por Carpina em 06/09/2015
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