Pulsos Cortados
Deitou-se na cama e olhou a parede vermelha. Na verdade, era azul, porém, o sangue a tingiu de vermelho; cortou os próprios pulsos. Essa não seria sua última lembrança, mesmo que seus olhos apontassem para a parede, sua mente sobrevoava lugares distantes. Viu sua mulher exibir um lindo sorriso esbranquiçado, ela brincava com o filho que gargalhava sem parar por causa das cócegas que lhe era feito. Naquela época ele ainda era pequeno, não tinha autonomia dos próprios atos, nada de muito sério para pensar. Com sua mulher também não era tão diferente, parecia que nada a preocupava, nunca teve motivos para isso e nem os criava. Mas isso era naquela época.
Depois, tudo mudou. O filho, já na adolescência, teve problemas que os pais nunca souberam. Percebiam que o filho havia mudado, estava mais alto e com alguns traços adultos. Tudo bem, todos tinham que crescer, porém, o problema não era exatamente esse. A adolescência é um estágio complicado, sentimentos adultos são difíceis de serem lidados para quem não é acostumado, eles podem ser fatais. Esconde-los é ainda pior. O filho não se abria com os pais, sentia-se constrangido com sua vida tentando ser vasculhada, pensava que sua mente era um espaço privado e que ninguém mais tinha algo a ver com isso.
Ele pensou errado. Desde dessa mudança, a casa recebeu um aspecto frio como a morte. Dentro dela ninguém parecia querer falar, todos viraram múmias que só repetiam palavras já decoradas. Muitos “Passe a torrada” e poucos “Como foi seu dia?”. Sentiam-se inúteis, é claro. Incapazes de fazer algo em relação ao filho, ele passava dias e dias trancado no quarto, faltava a escola, comia a cada dois dias, não respondia os chamados. Aquilo que era para ser privado, virou um problema para toda a família. Ainda assim, pensavam que era só uma fase, que logo aquilo iria mudar, o filho voltaria ao normal e enfrentaria a vida de cabeça erguida. Quando velho ele pensaria “Ah, que bobagem eu ter ficado triste por causa disso!”.
Arrependia-se até da própria imaginação; doía pensar naquilo. Como foi estúpido em deixar que as coisas evoluíssem para aquela situação! Virou o olhar para esposa deitada a seu lado, seu rosto estava pálido, os lábios secos, os cabelos bagunçados sobre o travesseiro e os pulsos sujos de sangue. Ela chegara em casa antes do marido, ele fizera hora extra no trabalho, preferia aquele ambiente agitado do que a própria casa. E mais uma vez, estupido! Deixou que a mulher encarasse aquela situação sozinha, sabia que ela era fraca, sabia que ela não aguentaria algo assim. Sabia que ele era fraco. Sabia que o filho era fraco. Mesmo assim fugiu, fugiu da própria realidade...
Agora já era tarde. Passou os braços por cima da mulher e do filho e esperou seu fim também chegar.