A Lenda Do Palhaço Escondido

CAPÍTULO 1

A debandada e a balbúrdia são dois alforjes de um coração mirim. Em um pátio escutam-se vozes ecoando e risos que cortam o ar. Decerto o que não se revela em minha mente é a cor das paredes, mas posso afirmar que eram maculadas e pintadas aos tons claros, bem como dizem que cores de sombra não combinam com crianças. O único fator que me parece esclarecido, por mais curioso que seja, é o clima de sol e vento fresco.

Pois bem leitor, vou expor-te, antes que infira e pergunte-se ou denifa que cometi equívocos imperdoáveis à sua atenção: meu nome não será revelado. Este é um puro capricho da idade de pertinácias, não tendo eu nem um quarto de século, estou com aval para tamanhas frescuras, não acham?

E não sigo este assunto, pois pelo tamanho do incômodo, posso ficar auto-difamado. Agora que sigamos para uma clara manhã de Outubro. Eram tempos de viagens do pensamento e brincadeiras sem razão. Tudo equivalendo a uma exorbitância da mente juvenil; toda esta basta em riqueza do bem, e fugitiva nos sortilégios do mal.

E eu, apenas com oito anos vividos, escutei dizerem por uma roda de conversas inúteis, sobre uma silhueta que escondia-se por trás das prateleiras do aposento de limpezas; junto aos baldes, esfregões e papéis. E então um macacão azul enchia-se. Caracóis vermelhos lhe subiam pelas golas. Botinas negras que rangiam e luvas brancas de seda. Assim revelava-se a cabeça, que possuía o rosto oculto sob os cabelos desgrenhados. Este perfil sinistro punha os olhos na indefesa criança, e a partir daí não se sabe mais o que passa.

Ri-me bastante da fantasia. Afastei-me. Eu podia até ser um lírio da juventude doce, mas nunca uma flor celestial do Jardim do Éden. Sabia que era desenvoltura da imaginação. O caldo açucarado do pecado com que os contos cabalísticos banham os olhos das crianças. E aquilo me atraía muito. A definição era burlesca, e o nome estúpido: palhaço escondido. Aí me veio em mente um chocarreiro publicitário, uma figura famosíssima, que aqui não revelo o nome, pois propaganda não é minha função. Isto tudo era somente tópico de semi-internato, fora o que pensei. E concluí que era gente que pelo fator de permanecer o dia todo em cima dos livros, tinha muita história que contar. E naquele momento, minha concepção que trescalava com os viços aromas da crendice, viu tudo bastante divertido. Fui até o grupo.

-E eu posso brincar?

Se conseguissem imaginar, leitores, os olhares turvos que recebi, logo concluiriam de que não era nada encarado como simples conto de crianças curiosas. Fui picado em mil expressões de boicote. E eram apenas guris de sete anos vividos. Agora sei que ao mesmo modo eram inferiores e superiores à minha pessoa. Porque ao mesmo instante que pensavam mais à frente, também não possuíam inocência. Tive de me calar e procurar brecha para ter conversa com alguém. Não obtive sucesso.

Passou-se algum tempo de aula, cuja disciplina não me recordo ao certo, mas acredito que seja estudos sociais. Isso não vem ao caso. Aí é que inicia-se a corrente do mistério: pedi à professora, Dona Emília, para ir ao bebedouro. Concedido.

O bebedouro ficava ao canto de uma entrada em frente a cantina, antes tinha de passar pela porta de ferro branco, que era o aposento de limpezas. Dei um rabo de olho. Havia ficado zanzando em mim alguma abelha de curiosidade que tinha picado e me injetado na mente uma fascinação por aquela história cômica.

Então pego-me numa observação fissurada a um postigo que ficava à altura dos olhos de um adulto. Houve um tênue e sorrateiro calafrio que me surpreendia o peito, como se libertasse argueiros de um pavor escondido que queria despertar no meu semblante, e começava a devorar meu subjetivo. Pois aquela pequena fisga mostrava a escuridão que dominava o quarto enquanto a porta estava trancada.

Continuava a grudar os olhos naquela contemplação sedutora e nada objetiva, bem ao centro de um silêncio que já torturava os neurônios, obrigando a esconder o pavor de mim mesmo.

Senti estremecer quando a faxineira e inspetora, Dona Lúcia, me tocou ao ombro.

- Vá para sala menino. – Repreendeu com bom humor.

Sendo um bisonho moleque, pus-me a debochar de mim mesmo. Segui para onde devia estar: o bebedouro. Disfarçava e tentava ignorar o silêncio sinistro que fora instalado pelo desconhecido, ou pelo temor que eu havia criado.

A água travou-me à garganta, apenas um som.

CAPÍTULO 2

Logo atrás um ruído estrídulo, batendo forte aos nervos e despertando um repentino incômodo. Instantaneamente treme o corpo. Este efeito abole a saliva e crispa os lábios. Também o coração descompassa e os versos de uma conhecida canção tomam forma de verdade, quando se diz que não é olhado para trás, pois sabe-se que alguém ali está. E o mais temerário fora que minha percepção, de primeira reconheceu o estampido.

Fora a tranca de ferro que havia se movido. Mecanismo simples e antigo. Material nada maleável, por isso tinha de imprimir força para a abertura. Assim que cedia, batia-se a trava e causava um baque semelhante a abertura de uma cela.

Volvi a cabeça e nada se apresentou. Nesse instante o coração pulsava com o ardor do surreal. Parti ao encontro da metáfora do medo a passos carregados. Nesta altura, não mais sabia para onde ir, mas de certo queria disparar de volta à sala, porém a paralisia impedia; não só esta, mas também a cisma de moleque abelhudo e curioso demais. Plantei-me à frente da porta de ferro. Uma mensagem remexia nos confins do cérebro, como uma voz soturna, incitando a fascinação pela lenda.

Desta vez, leitores, ocorre um instante em que a mente varre o derredor e fixa os olhos somente naquilo que se apresenta à frente; devo mostrar: a porta abria-se numa lentidão pavorosa, a qual a escuridão libertava-se gradualmente, e uma silhueta se perfilava. Os cabelos reboliços e vermelhos como o sangue, iniviabilizavam a face. Um macacão azul e com suspensórios. As botinas, lustradas como se houvessem sido banhadas a óleo. E luvas de uma excelsa seda. Assim fez-se à minha frente.

E não é que lá estava a tal figura de palhaço?...

Nesse instante meu corpo estrebuchava e tinha golpes de convulsão. As mãos enregelaram e a respiração fluía com laboriosos suspiros. Não posuía o conhecimento se vivo eu estava, ou apenas era um intruso que se perdeu de tempo no abalroamento de duas dimensões. Mas se morto estivesse, ainda arfava com frêmitos de vida.

A figura cabalística moveu-se com tamanho mecanismo nos atos, como se carregasse o ônus de tão bizarra existência, e botou-se a subir pelo jogo de escadas. Talvez por não ter a certeza se ocupava real matéria no universo, ou era apenas criação do pensamento, é inexequível descrever a sensação. Mas uma impulsão, um ato que me impelia, uma reação que nascia na geada do entorpecimento, me fez mover as pernas e seguir aquele perfil assombroso e trivial.

Ao subir as escadas não sentia o cansaço comum e nem anélitos. Este que era outro aspecto que me fazia duvidar da vitalidade. Assim, num piscar de olhos lá estávamos.

Uma quadra aberta e não me recordo de ventos gelados. Somente me lembro de estremecimentos por impulsos de frio que explodiam pelo corpo. E, leitor, já disse que esta é a traçada do mistério, e como todo bom suspense, precisamos de uma lacuna; e entenda somente com o ato de fechar os olhos e partir da dimensão de há pouco.

Acordei de súbito e aturdido. Os olhos saltavam e banhavam-se em vermelho. As roupas encharcadas de um suor que lustrava a superfície da carteira. A Dona Emília, com as feições entre o ralho e a surpresa, perguntava o que ocorria. E eu, ainda rondando o olhar à minha volta, não podia escutar ao certo e as palavras não se formavam ao pensamento. E tinha a professora insistência por saber se dormia tarde e que haveria de ter com minha mãe sobre esse mau desempenho durante a aula.

De pouco a respiração cadenciava, o coração voltava a compassar e as mãos amornavam. Dessa forma,a total certeza de que fora apenas uma violenta tomada de imaginação daquela lenda, ao ponto que um sonho simples decorava os cenário da realidade e bagunçava aquilo que tinha em sã consciência.

Passara a aula e o dia. Não mais pensei no pesadelo radical e apenas desfrutei de um tranquilo sono com uma reza de premissa, junto com os bons conselhos de uma mãe católica e temente a Deus.

E pelo dia que vinha, já estava eu na escola. Era totalmente certificado de que tudo fora um sonho atormentado, porém, ao ser chamado ao intervalo, tive a angústia retornada.

- A lenda te parece engraçada agora?

CAPÍTULO 3 [FINAL]

A audácia da pergunta, ainda que feita por um guri de minha idade, me perfurou a paz inocente. Um temor gélido me tomava o corpo e ressurgia. Junto uma tremenda irritação pela fisionomia de quem me indagou, que era um rapazinho invocado com os cabelos bastante eriçados, e ao seu lado, um menininho que parecia com tremedeira e não sacava as mãos dos bolsos. Pois sim, ambos eram internatos.

- Do que está falando? – Indaguei eu, tentanto inutilmente a dissimulação

- Vai dizer que não sabe?

Pois que sabia, mas a realidade amalgamada pelo sonho e o surreal já azoavam a cabeça, e não tinha a noção do que devia responder. Afastei-me e digo que não dialoguei com meus colegas pelos dias que seguiram. E também, mimosos como eram, não fizeram a questão de me terem a companhia. Todos os momentos significantes resumiam-se à minha estada no quintal de casa, na vila onde residia, que era o momento ao qual questionava minha mente pueril, como tudo fora possível. Mas isto foi apenas sonho?

Houve algum raio de luzerna que nascia em meu interior bastante indefinido de criança, e petrificara o medo do intangível, e afirmo que fora um lampejo de longanimidade. E tinha-me decidido inexoravelmente de que iria chegar até o birrento de cabelos arrepiados, sem receio de seu alarde, olharia bem aos olhos e lhe perguntaria como que soube de meu sonho latente. Por acaso houve gritos meus em sala enquanto dormia? Ou aquele moleque parrudo fora dotado momentaneamente por um vaticínio e soube sobre a minha quimera radical, apenas por levemente conjecturar que devia eu estar perturbado pelo conhecimento da história estranha? Tinha de descobrir.

E assim fui. Camuflei-me de coragem e cheguei a uma mesa de lata, que era uma das muitas daquele pátio. Sentei-me com ímpeto de guri bastante folgado e peitudo, puxei a cadeira para dentro e aconcheguei os cotovelos. Junto do sujeitinho de cabelos nervosos, também havia o mãos-nos-bolsos e mais um mirrado, que escrevia as lições tão rápido quanto corria.

- Agora eu quero saber: como é que vocês souberam do que sonhei.

Entreolharam-se com risos que pairavam ao ar, e de tão debochados, hoje posso interpretar como um ligeiro escárnio, vindo do sarcasmo infantil.

- O que é isso? Eu perguntei...

- Não precisa se desesperar. – Acudiu o dos cabelos em pé. – Acontece é que você disse algo com palhaço enquanto dormia.

- O que?

- E foi isso mesmo. – Agora era o guri que havia tirado as mãos dos bolsos para poder gesticular. – A gente senta perto, esqueceu?

E não é que os bobalhões tinham razão? Realmente nos sentávamos próximos em sala de aula, e antes mesmo que Dona Emília notasse meu cochilo, estes três já o haviam percebido, e criança que assim o é gosta de tirar barato dos colegas.

Senti-me envergonhado de uma atitude tão valente e grande, para uma causa tão burlesca e apequenada. Não havia o mais ínfimo dos motivos para inquirir aqueles meninos leigos e meticulosos pelo afago dos pais.

Aos dias que entraram convenci-me a cerca do remoque que usaria minha mãe; sendo este: apegue-se mais a Deus. Foi o que fiz. Simples reza e impossibilidade de entender o infinito, pois a oração não conhecia. E clamei para que o Pai me afastasse das sombras. E acredito, sem poder afiançar se nosso Criador interviu, que houve um bom lampejo em meu espírito; e pode-se atribuir um vigor de alma pura que restaurava-me, pois não houve mais obscuras lembranças sobre o tal palhaço. Assim, pode ser revelado que uma dezena de dias correram.

Assim, chegamos a uma manhã comum de Novembro. Não havia risos, palmas ou corridas. Apenas finas vozes, como um sutil burburinho. Pedi à Dona Emília que me liberasse para ir ao bebedouro.

Lá estava quando um estampido me fez arregalar os olhos instantaneamente. A mesma tranca endurecida de ferro se rompe. Desta vez, com uma explosão de adrenalina, não hesitei e volvi os olhos de súbito. Um tremor irrompia pelo corpo e o gelo tornava cruas as mãos. A respiração tornou a atravancar e um sorrateiro calafrio engoliu todo e qualquer vislumbro do subjetivo.

Pelo tamanho da emoção impelida com o temor, minha pernas eram móbeis e corri até a frente da porta. Novamente a inefável situação, quando uma silhueta ganhava as cores de um macacão azul, caracóis nos cabelos vermelhos, lustros oleosos nas botinas escuras e luvas brancas de seda.

Homogêneo à outra ocasião, a figura aviltante arrastou-se a subir as escadarias. E sem ter a sensação do coração, cruamente autômato, o segui. Chegamos assim ao último andar, porém, neste lance havia uma vitalidade presente em mim, não sendo mais um corpo oco, e sem esperar nenhum milésimo corria a sua direção, quando parou bem ao centro da quadra. Fui e plantei-me bem à sua retaguarda. Fiquei ali, fincado com uma coragem que se agarrou ao meu espírito.

Num único ato, quase sem as meças do tempo, ele virou-se a mim num movimento absurdo e fogoso. Somente uma onda de fios vermelhos que serpearam, sacudiram e cessaram por um único instante. E pelo ato do reflexo, pois tive a impressão que me desferia, só pude enxergar de relance um nariz de palhaço.

Encolhi-me por momentos, apenas esperando o ataque que me causaria aquela figura medonha e extravagente. Como que numa mudança brusca de sazão, o frio se foi e a respiração já podia fluir bem. Agora o coração voltava a cadenciar e as mãos amornavam. E assim saí da posição de defesa mínima e abri os olhos, observando toda a volta. Havia ali somente a quadra, os muros e o vento. Por alguns momentos senti-me anestesiado ao encontro real com o devaneio de meu cérebro.

Um impulso violento quebrou meu êxtase e pus-me a correr infrenemente escadas abaixo, chegando ao pátio principal. Desatei a forçar a tranca do aposento de limpezas a todo custo. Conseguindo entrar e causando um estrondo que ecoou por todo colégio, fui ao fundo e meus olhos logo captaram detalhes: o mesmo macacão jogado sobre uma caixa, com um dos suspensórios caído fora. Também o par de luvas de seda, que pelo efeito do tempo eram amareladas. Já as botinas lustrosas me pareceram molhadas. E ao chão, entre caixotes e esfregões, uma peruca vermelha e desgrenhada.

Um extremo alvoroço me consumiu e sem nada pensar, catei tudo e fui enfiar no latão de lixo, afundando entre latas e longe ao alcance de abelhas e dos outros curiosos.

Quando fazia por encobrir todo aquele uniforme horrendo, e já socava a última lata para esconder, uma pupila amarela cravou os olhos na minha figura pasma e amedrontada, e num único instante remeti para trás com tremendo susto.

E maior ainda fora a surpresa da inspetora, que notei que chamava por meu nome.

- Mas o que é isso moleque?!

Nada podia dizer, pois a respiração era arritmada. Somente percebi que estava sentado à uma das mesas do pátio e Dona Lúcia lutava para me chamar a atenção.

- Está dormindo de olho aberto? Estou falando com você! Anda, vai para a sala que agora é horário de aula.

E fui tomando consciência aos poucos, de que tudo fora mais um sonho engendrado pela criatividade absoluta do cérebro humano.

- Que é? Por acaso teve um pesadelo? – Perguntou-me a inspetora.

- Acho... – E botei-me a olhar a porta branca. – Acho que sim.

- Pois é muito bem feito! Eu ando avisando para vocês não ficaram de conversa fiada e contando história, mas não ouvem...

E partiu Dona Lúcia a abrir a porta do aposento de limpezas. Um alor quase me fez tentar impedi-la, e correr à sua frente a ir procurar por toda a vestimenta que devia estar no interior do quarto ou na lata de lixo.

Pois nada fora preciso.

Para pegar materiais de limpeza, ela escancarou a porta e pude ver bem ao seu interior; e não havia nenhum macacão, bota, luva ou peruca. Em seguida a inspetora e faxineira retirava os sacos das latas e separava os materiais que ainda podiam ser aproveitados. Fazendo assim com que eu tivesse a total certeza de que não havia nenhum rastro da figura medonha.

- Você é surdo menino? Vá para a sala. Já disse. – Olhou-me de repente e me disse, ainda separando todo o lixo.

Decerto fora um sonho bastante próximo de toda realidade, porém não passou de devaneio. A utopia é poderosa, basta ganhar vida. Somente dirigi-me de volta a minha sala, com a calmaria cada vez maior que tomava conta e afiançava de que não havia e nunca houve palhaço escondido. Pois se existiu um começo, submergido no pensamento pela seriedade de uma lenda, também há um fim, quando é sabido do poder metafísico da imaginação, e mais ainda vivaz aos olhos de uma criança. Somente terminou.

Vinícius Thadeu
Enviado por Vinícius Thadeu em 17/07/2015
Reeditado em 17/07/2015
Código do texto: T5314333
Classificação de conteúdo: seguro