O Valor de Uma Amizade - Minha Vida com Elisabete- Parte 1
Eu não sabia onde encontrar a paz naquele momento, pois confusos eram minha visão, meu mundo interior e minha mente como um todo. Todo o meu desejo resumia-se em voltar às origens do que me ocorrera. Elisabete sabia do meu paradeiro e só a ela podia eu confiar o meu destino. Vou voltar desde o início para dar a quem me ler o entendimento necessário a um julgamento justo. Se quiserem me culpar ou até condenar-me ao pior dos castigos aceitarei então minha sorte, mas tenho a mais absoluta certeza de que fiz o que fiz por achar o certo nas circunstâncias em que me encontrava. Depois de lerem-me com imparcialidade compreenderão as razões da minha atitude. Deixem-me então relatar os detalhes do que me aconteceu. Para isso preciso voltar no tempo; à época anterior a minha chegada nesta cidade.
Depois de ficar sem emprego, sem família e só no mundo, vim para cá. O vício do jogo fizera de mim o mais infeliz dos mortais. Deixo aqui, aproveitando a oportunidade, meu ódio explícito a este tipo de atividade. São pouquíssimos aqueles que conseguem como eu consegui desvencilhar-se desta praga mortal; precisam para isto do auxílio incondicional de alguém que, abdicando da própria felicidade, consiga provar o verdadeiro valor de uma amizade. Assim foi com Elisabete. Não nos víamos há alguns anos até que fixou residência próxima a minha sem que um ou outro soubesse que éramos vizinhos. A noite da minha prisão coincidiu com sua presença naquele bar. Se eu não tivesse reagido ao ataque do meu adversário no pôquer certamente hoje eu seria um homem morto.
Ele não podia de tanta bebedeira e me atacou com a faca. Pulei da cadeira antes que me atingisse. Ao cair estatelado no chão julguei que desistiria da briga ao dar-se por vencido ou bêbado ao extremo, mas não foi o que ocorreu. Com espantosa velocidade meteu a mão na cintura e sacou do revólver. Por sorte errou o tiro que mandara na minha direção. Eu não podia esperar para ver o que faria em seguida. Sendo assim, por estar muito mais sóbrio e com perfeito reflexo, caí para o lado enquanto sacava da minha arma e lhe mandava dois disparos certeiros, tirando-lhe imediatamente a vida.
Formou-se a confusão. Senti na mesma hora o frio do metal de duas algemas sendo atadas as minhas mãos.
- O senhor não pode levar preso este homem, ele agiu em legítima defesa. Todos aqui estão de prova, pois viram o que aconteceu.
Eram de Elisabete aquelas palavras. Já estávamos, eu e o delegado que me prendera, na porta de saída do estabelecimento quando ela, saindo da mesa onde se encontrava, ao fundo, interceptou com o próprio corpo os passos do homem, obrigando-lhe a lhe dar atenção.
- Pergunte a cada um que aqui se encontra e obterá a confirmação do que estou falando. O senhor mesmo presenciou e sabe que ele agiu para defender a própria vida.
Pela fisionomia vitoriosa do delegado e pela reação de medo e subordinação dos que estavam presentes, Elisabete entendeu que seriam inúteis os seus esforços. Sem testemunha nada poderia fazer. Minha felicidade por revê-la após tanto tempo misturou-se a nossa frustração quanto a uma solução positiva ao que ocorrera. Ela, isenta de contestação e demonstrando na fisionomia que avermelhara-se, uma ira incontida, desobstruiu a passagem e deixou que eu fosse conduzido para a delegacia.
Minha condenação seria a forca, pois cometera, segundo visão da lei, um assassinato. O que fez então Elisabete? Confesso aqui que nunca em minha vida encontrara pessoa de tal fibra, fidelidade na amizade e espírito de justiça como aquela mulher. Mr. Walton, o delegado em questão, não imaginara, ao negar um ato justo e óbvio como o da minha absolvição, o quanto aquilo iria pesar em sua carreira à frente da lei. Até ali era feita a justiça de acordo com a vontade do mais forte e o mais forte na cidade, até aquele momento, era Mr. Walton; ninguém ousara desafiá-lo ou contrariar suas decisões. Ninguém, até que surgisse na sua vida uma pessoa com a têmpera e a atitude de Elisabete.
Dois meses se passaram e minha execução foi marcada, com data e local. O que sofreu minha amiga durante este período mostrou-me o valor de uma verdadeira amizade. Fixou ali residência, pois poderia assim dedicar-se com mais tenacidade ao caso. Visitava-me com regularidade, insuflando-me de coragem e de esperança. Sacrificou a família e não perdoou o marido que lhe pedira o divórcio. Deu-o sem questionar, embora o amasse de verdade. Provou aí para mim que era uma mulher fora do comum em tudo que fazia e de tal forma que, uma semana antes da minha execução eu era um homem livre e incomensuravelmente agradecido. Sua fibra e coragem estenderam-se à população da vila, eternamente manipulada por Mr. Walton e ele perdeu suas credenciais e o direito de exercer sua profissão. Pagou caro por cruzar o caminho de Elisabete.
Meses se passaram e eu novamente perdera o contato com minha amiga. Já estou nesta cidade há meio ano e nada de novo acontece a não serem partidas de pôquer repletas de rodadas de cerveja e de fumaradas de charutos empestando o local. Diariamente, ao deixar a serralheria onde me empregara me dirigia ao bar e de lá não saia até o último freguês deixar a casa ou até que Curtis, o proprietário, nos expulsasse do recinto. Foi quando, numa noite de chuva forte, com relâmpagos e trovoadas, em que pensamos que nenhuma alma viva entraria porta adentro para beber ou jogar conosco, que houve a invasão.
Eram quatro os sujeitos, todos terrivelmente mal encarados. Reconheci um deles, Melvin, da Pensilvânia. Participara do maior assalto a banco já ocorrido naquele estado. Não quero me lembrar daquele dia, pois os momentos por que passei foram de agonia e desespero. Eu fora, durante mais de quatro horas, vítima de Melvin e de seus capangas. Ele não me reconheceu ao entrar no bar; eu era apenas um a mais que caíra em suas garras de marginal, mas seu rosto jamais sairia da minha mente. Retiraram um a um as capas ensopadas e as penduraram ao lado da porta de entrada. Sentaram-se não longe de nossa mesa e eu sinalizei para Curtis enquanto passava por mim na direção deles a fim de lhes providenciar os pedidos.
Durante os próximos quinze minutos nada de anormal ocorreu. A impressão que davam era a de apenas beberem e conversarem a um canto sem serem importunados. Mesmo a distância, conseguiríamos entender suas falas, mas eles não nos permitiram isto. Falavam entre si somente e em tom baixo o que aumentou de Curtis as suspeitas de que realmente tramavam alguma coisa. Confesso que, por conhecer Melvin e sabedor de seus métodos violentos de abordagem, estive suando frio e com muita vontade de deixar o local. Foi quando me levantei e me dirigi ao balcão para acertar minha conta. Eu não havia percebido que, enquanto me mantinha à mesa com meus companheiros de pôquer era protegido pela escassa luz que batia ali, mas, ao levantar-me e ir até o balcão expus-me completamente. Foi quando olhei para trás e vi que Melvin me olhava com extrema surpresa em sua fisionomia. Tremi naquele momento dos pés à cabeça. Disfarcei, paguei a conta e virei na garganta a dose de conhaque que acabara de pedir ali mesmo na expectativa de que esse gesto me desse coragem ao me aquecer a corrente sanguínea que mais parecia uma corrente de gelo dentro de mim.
Dei meia volta e caminhei em direção à porta.
- Aonde pensa que vai? - Era a voz de Melvin atrás de mim.
Permaneci calado, esperando sua próxima atitude. Acho que, mesmo se quisesse dizer alguma coisa não o conseguiria; senti que me sumia a voz. Certamente me reconhecera. Meu gesto seguinte e totalmente intuitivo foi levar a mão até a maçaneta da porta e girá-la para que abrisse. Foi quando Melvin esboçou seu ato de violência, o que não era para mim nenhuma novidade. Puxou minha mão com força e rapidez e me lançou de contra a parede, mantendo, porém, uma das mãos presas a minha camisa, quase me enforcando. Um de meus companheiros erguera-se de sua mesa, sacando de sua cintura a arma a fim de vir em minha defesa, mas viu pular de sua mão o revólver, abatido que fora por um dos comparsas de Melvin. Mais ligeiro, deixou ferindo e sangrando a mão do meu defensor.
Melvin então, demonstrando grande mau humor e irritação, trouxe-me, ainda agarrado por suas mãos, que por pouco não me enforcavam, dada a força com que torcia a minha camisa, de volta à posição que eu antes ocupava e me lançou furiosamente, fazendo-me sentar à força. Por dentro era indescritível a gana que me dominava. Reacendeu-me, ainda mais energicamente, a lembrança da humilhação que sofrera sob seu domínio naquele fatídico e inesquecível dia do assalto ao banco. Notei que meus companheiros de jogatina estavam dominados pelo medo; eu não podia esperar qualquer reação por parte deles. Como eu previa, o assalto ocorreu e de forma fácil e novamente humilhante. Curtis e eu sofremos tapas, cuspes e xingamentos. Não nos abandonaram enquanto não conseguiram tudo o que eles buscavam: dinheiro, garrafas de uísque, caras e disputadas guloseimas...
Jurei para mim mesmo que ainda me encontraria com aquele bandido; a mim não importava o quão temido e respeitado fosse. Era de tal forma incontrolável o meu ódio que passei, daquele dia em diante, a estudar cada detalhe de sua vida. E a minha não teria sentido dali para frente se não colocasse em prática o meu desejo de vingança. E esse dia não custou a chegar. Vou contar como tudo aconteceu.