O Fim de Tudo
O que estou fazendo aqui à beira desse precipício? Será que terei coragem de saltar lá em baixo para a morte? Definitivamente não deve ser este o meu destino. Então por que escalei esse monte e me encontro aqui tão acima do solo? É certo que a solidão ataca com frequência os meus dias sem sentido desde que perdi Isabela. Mas isto não me é motivo para dar cabo da vida. Aprecio-a acima de tudo.
Quero vivê-la intensamente e provar a Isabela que ela não me destruiu totalmente. Há pouco passei entre casebres e constatei a felicidade das pessoas que precisam de tão pouco para se sentir em paz com elas mesmas. Por que eu, porque perdi um amor, quero acabar com minha existência? Não faz sentido esse meu jeito egoísta de ver o mundo. São dois tipos diferentes de universo que compartilho agora, à frente e por trás de onde me encontro. O pacato, de vida rica em atividades voltadas para o interior, como o contato com o divino na natureza, a alegria de sentir o ar despoluído das montanhas vivificar a alma e os pensamentos. E o mundo da competição, das mentes desgovernadas pela ambição, onde não há tempo para amar a não serem as coisas efêmeras e ilusórias. Foi nesse mundo que encontrei Isabela e por ela me apaixonei.
Visualizo agora, bafejado pela aragem vespertina e presa de pensamentos obscuros, como pontos minúsculos e inidentificáveis, veículos na disputa nervosa de um espaço mais vantajoso nas rodovias, na ânsia de alcançarem o quanto antes os seus destinos; como se todo o significado de suas vidas atribuladas dependesse disso exclusivamente. Enquanto a vida aqui em cima me insufla de energias novas que não consigo explicar como encontraram abrigo em meu íntimo tão massacrado, só o pensamento em recomeçar o que deixei por fazer lá embaixo faz desabar o pouco da coragem que ainda me resta.
Vou decidir até o final desta semana se cometo ou não o suicídio a que venho me propondo já faz algum tempo. Por hora, minha preocupação principal é arranjar os preparativos para a minha mudança definitiva para aqui. É o que quero. Dou a mim mesmo esta semana porque é o prazo que Isabela pediu para refletir sobre nosso relacionamento.
Encontrei finalmente a casa que me apraz, com todas as condições que requer um plano perfeito. É a última da alameda que termina no precipício. Tenho, nos últimos dias, subido aqui a cavalo e feito os preparativos. Se não estou ficando louco, a impressão que tenho é que todos me olham como se estivessem cientes do que vim fazer aqui em cima. Logo na subida, ao cruzar o primeiro rancho, vi que pessoas se aproximavam de suas cercas, umas trazendo baldes com supostas peças de roupas para serem estendidas; tudo porque, de dentro de casa, reconheciam o trote de minha égua malhada. Não sou do tipo que se apoquenta com comentários alheios nem se envergonha com olhares dissimulados das velhas senhoras que gastam as tardes nos bancos das alamedas por onde, forçosamente, terei de passar.
Minha educação quadragenária obriga-me a cumprimentá-las com um sorriso ou com um aceno do meu chapéu. Nunca paro com a intenção de iniciar conversas; quando muito, aperto gentilmente a mão que me é estendida inclinando-me um pouco sobre o lombo do animal, mas logo em seguida meto-lhe com suavidade as botas na barriga para que se adiante sem demora. Finjo também que não percebo uma bicicleta que se aproxima ou que não ouço o cumprimento de algum velhinho, sempre por ali, pitando o seu fumo ou fingindo que cochila junto ao tronco de alguma árvore do caminho.
Os dias que se anunciam estarão marcados por um tremendo tédio, pois só terei a companhia do vazio da alma e da solidão do lugar que escolhi para me refugiar. Poucas pessoas chegam até aqui; realmente estou afastado de quase tudo. Deixo, momentaneamente, a beira do precipício para receber o carro que buzina atrás de mim trazendo as coisas que encomendei. Pouca mobília, alimentos básicos para uma dieta não muito salutar, pois mesmo o simples ato de cozinhar me aborrece; e minhas telas já pintadas e sem destino. Porém, o essencial, no meu caso, teve que ser confirmado e foi o que fiz no momento em que me aproximei do veículo.
- Estão aí as armas?
-Sim, senhor. Na cabine do automóvel. No calibre que o senhor pediu.
- Muito bem; desembarquem-nas com cuidado e ponham-nas na varanda, sobre aquela mesa – eu disse, apontando para a carroceria.
- Espero que não desconheça a lei ambiental sobre a caça nesta região, caro amigo. Boa parte dos animais ali – disse, apontando para a mata o motorista – está sobre o risco de extinção, logo, protegidos pela legislação. É apenas um alerta para poupar sua dor de cabeça mais tarde.
- Agradeço a sua preocupação; vou ter cuidado.
Tive que usar desta estratégia para não dar a entender a verdadeira intenção de ter encomendado aquelas armas. A que ponto pode chegar a cabeça de um homem quando se vê frustrado na realização do amor! Em meio à desorganização que agora me rodeia dentro de casa, reflito, penso e repenso se valerá a pena a bobagem que tenciono fazer. Minha sala de estar não passa agora de um amontoado de tralhas, o enorme sofá de couro marrom atravancando a passagem recebe meu corpo cansado de tanto esmiuçar pensamentos que a nada me têm conduzido a não ser estresse e mal estar. Sentado, examino um dos revólveres, ainda sem a munição que permanece na caixa; tremo só de olhar para aquele estojo sobre a mesa da minha varanda. Se Isabela imaginasse o que faço agora! Vou mais longe: se ela pudesse avaliar o que sinto e quais as minhas intenções; e por causa dela, exclusivamente por causa dela...
Por que as mulheres são desse jeito? Por que razão alimentam a esperança de um pobre coitado fazendo-o crer que estão apaixonadas e, sem uma explicação, sem um motivo aparente, descartam o seu amor, alegando as mais inverossímeis desculpas? Se ela soubesse, se desconfiasse ao menos, que tudo que fiz, que faço e que agora tenciono fazer resultou de uma escolha, a escolha de um desgraçado, que deixou sua casa amargando aquela frase, aquela terrível frase: “sinto muito, mas não o amo”. O que pode então esperar um homem que soube que não é amado; e por aquela que é a razão de sua existência, o motivo de ele ainda querer respirar?
Vou até à mesa e abro a caixa de munição. Carrego minha pistola presa de um tremor, de uma excitação inclassificável. Deixo-a na mesa e me dirijo mais uma vez à beira do precipício. Meu Deus! Que altura! Mas não custa nada além de uma decisão imediata e uma coragem de macho. É um pulo, apenas. A encosta desce íngreme. Há pedras pelo caminho, centenas delas, grandes, pequenas; trilhas esquecidas, arbustos espinhosos e, lá embaixo, ao fim de tudo, ruas escuras, casebres iluminados, encostas desertas, pedreiras arruinadas.
Não suporto por muito tempo esta visão. Retorno para dentro de casa; pareço bêbado, sem direção e saio tropeçando nas caixas que largaram na entrada do corredor. Da mesa, pego mais uma vez minha arma e jogo-me sobre o sofá de couro marrom. Vamos! Mostre a você mesmo que é um homem e cumpra o seu papel; é só apertar o gatilho. Levo o cano na direção do ouvido; o dedo tremendo, incontrolável. Os segundos passam desesperadamente lentos e eu caio. Caio, chorando feito criança, com a cara entre as mãos.
Desculpe-me, Isabela! Você tem mesmo razão de não querer nada com um moleirão como eu.