"BANDIDINHA"
1969. Lucélia vivia numa cidadezinha interiorana situada no sul de Minas, e, embora desinteressada pelo contexto histórico dos bandeirantes, sabia, basicamente, que ali era um local marcado por sangue, febre do ouro e ganância. De certa forma, o ambiente inóspito e marcado negativamente repercutiu sobre a vida dos habitantes posteriores, sobretudo os descendentes diretos da linhagem de sertanistas que desbravaram as matas virgens do século XVII. Lucélia, contudo, com a sua personalidade original e seu desdém pelas raízes, apenas se preocupava com os seus interesses, muitas vezes, ingênuos e triviais. Por mais que fosse filha do minerador Sancha, um descendente direto dos bandeirantes, e crescesse escutando histórias e objetivos de ascensão da cidade para a condição de um centro referência em minérios, a sua preocupação momentânea se restringia a um único nome: Lucas.
Esse era, nos anos 60, um diplomata recém-surgido de Paris, palco da famosa Revolução de 1968. Culto, cosmopolita e sociável, ele se adaptou surpreendentemente àquela vida ociosa, óbvia e sem perspectiva da cidadezinha. Volta e meia, não obstante as limitações do local em setor social, econômico e político, Lucas promovia saraus, encontros de políticos de outras regiões e, inclusive, festas nas quais vinham empresários de outros estados, tais como do setor industrial e comercial. Meses se passaram, e, paulatinamente, a influência de Lucas transformou a região numa cidade de maior repercussão e representatividade. E isso fez com que Lucas, rapidamente, fosse alçado à condição de prefeito.
Lucélia, cada vez mais admirada, nunca havia conseguido, apesar de conhecer Lucas há três anos, aproximar-se efetivamente. A sua curiosidade, entretanto, permitiu que ela acompanhasse, como uma espectadora viva, o passo a passo da evolução daquele sujeito, bem como a sua gradativa conquista de simpatia populacional e aliados políticos. Assim, aos poucos ela foi levantando hipóteses, especulando o perfil psicológico dele e desbravando a sua complexidade interior. Lucélia podia não ter orgulho de seus descendentes desbravadores e astutos, mas era, indubitavelmente, uma desbravadora de minúcias referentes à condição da alma humana.
A sua condição social favorável, e, também, a sua falta de ocupações, foram alicerces que tornaram Lucélia capacitada a contratar um detetive particular e infiltrá-lo na vida privada de sua obsessão amorosa. Com o tempo, esse detetive se familiarizou como um excepcional secretário de Lucas, com comportamento reservado, disponível e sempre atento às exigências de seu patrão. Tanta prestação de serviços soava como um alerta para a irmã mais velha de Lucas, Carmélia. Essa, por sinal, era a única parente viva dele, uma vez que ambos se tornaram órfãos na infância. Além disso, Lucas era solteiro, nunca se relacionado com ninguém desde quando se consolidou na vida pública. Carmélia era, evidentemente, a sua conselheira e protetora, e, por isso, começou a alertá-lo sobre a maneira dúbia e dissimulada do detetive disfarçado de secretário. Lucas, embora um exímio estrategista político, acreditava nas pessoas de uma maneira quase infantil e negligente. Talvez pelo fato de se sentir em dívida com as pessoas por justamente estas terem lhe tornado uma figura relevante e reconhecida. Desse modo, ele manteve o detetive como seu secretário, não acreditando nas deduções infundadas e vagas de sua irmã. Foi a oportunidade precisa que Lucélia encontrou para se aproximar dele, apresentando-se num encontro restrito e familiar graças ao convite que o detetive lhe deu.
Para não evidenciar amadorismo e ideia impulsiva, Lucélia levou o seu pai ao encontro, e o fez se enturmar espontaneamente com Lucas, mas, principalmente, com a desconfiada e amarga Carmélia. Maquiavélica, imatura ou simplesmente banal? Talvez nenhum adjetivo ou, então, o conjunto deles definisse a mente engenhosa e construtiva dessa recente mulher de 24 anos. Por isso, quando surgiu a disposição de dialogar intimamente com Lucas, no meio do encontro restrito, Lucélia não hesitou. Desinibida, sarcástica e ousada para aquela época, e, também, para a cultura interiorana, ela o surpreendeu com uma biografia minuciosa, pois havia descoberto muitos segredos que ele nem imaginava.
- Se existe algo que eu admiro nessa minha vida pacatinha, é a originalidade de pessoas sem escrúpulos e, ao mesmo tempo, sedutoras como você. (Afirmou Lucélia, cínica e temerária).
- Sinceramente, eu não sei do que você está falando. (Questionou Lucas, ríspido e estarrecido).
- Talvez porque tenha faltado clareza na minha afirmação, ou, então, você já tenha se habituado tanto a ser uma pessoa querida e pública, que o seu interior antiético e obscuro acabou sendo escanteado.
Lucas, após isso, ficou ainda mais alvo do que já era. A sua aparência era de um austríaco nato, loiro, olhos verdes e barba mal-feita. A elegância, então, era exemplar. Pois, não obstante o fraseado ofensivo de Lucélia, continuou a escutando, embora inquieto e volta e meia mexendo no rosto ou no cabelo.
- Eu já havia ouvido falar de você. Lucélia, não é mesmo?
- Lucélia Tavares. Um sobrenome de peso aqui nessa cidade entediante.
- Mais conhecida como Bandidinha, sedutora, inescrupulosa e egoísta. Enfim, com esse seu reconhecimento como anti-heroína desse local, é evidente que eu nunca quis dar confiança a você. Por isso, mesmo após três anos que nos conhecemos apenas de vista, apenas nesse momento eu decidi lhe dar algum crédito. E até já me arrependo disso.
- Pois não deveria. Porque você, como prefeito, alguém letrado e evidentemente superior ao senso-comum, poderia ter mais confiança em mim. Talvez eu tenha sido muito incisiva com você nessa nossa primeira conversação. No entanto, eu precisava prezar pela objetividade.
- E o que te faz achar que eu queira algo com você?
- Não tire conclusões precipitadas. Você está indo com muita pressa. Evidentemente, eu não acho nada disso. Mas te amo, apesar de tudo. Não é à toa que já me sinto familiarizada com você, pois te conheço. Investiguei a sua vida.
Ainda mais constrangido, Lucas puxou Lucélia para um canto, notou que os seus convidados estavam distraídos entre si, no canto da sala, e a pressionou.
- Investigou o quê e o porquê disso?
- O porquê, eu acabei de lhe dizer. Estou apaixonada!
- Você não sabe nem o que é isso. Alienada, fútil e mesquinha!
- E o quê eu investiguei, será que vale a pena reiterar?
- Não seja ridícula! Aliás, a sua jogada é essa, não é? Criança carente, quer chamar a minha atenção a qualquer custo. Tudo isso por eu nunca ter lhe dado a oportunidade de se aproximar de mim nesses três anos?
- Tudo isso porque eu descobri, através de fontes muito confiáveis, que você cometeu um crime nos Estados Unidos, mais precisamente em São Francisco, se refugiou em Paris com revolucionários e trocou de identidade com um colega seu, de mesma idade, que morreu na revolução recente na França.
Lucas procurou controlar-se e riu para disfarçar.
- Imaginativa e com uma mente perversa e doentia.
- Realista a ponto de saber que você matou um ex-namorado, que havia descoberto que você desviou dinheiro de um escritório de advocacia em São Francisco. E o pior: você desviou, matou o namorado e fez com que a justiça de lá acreditasse que ele foi o culpado. Todo esse crime por ter descoberto que era amante do sujeito, um homossexual medroso, casado com uma mulher.
Emocionado, Lucas afastou-se de Lucélia por alguns instantes, olhou-se no espelho situado ao lado deles e a encarou por lá.
- Você me julga como um monstro nesse momento. Mas não distorça os fatos. Eu desviei o dinheiro pra ajudar a minha irmã, que também morava comigo. Ela estava extremamente doente, com leucemia. Desviei, sim, mas por uma causa nobre. Agora, a morte... Foi uma fatalidade não planejada. Ele me pegou em flagrante, me ameaçou. Sem contar que, dias antes, eu havia descoberto que ele apenas queria se divertir comigo. Dessa morte eu me arrependo, já do desvio, não.
Lucélia, intrigada, respirou fundo, olhou ao redor, viu que todos os convidados estavam longe, e se aproximou.
- Controle-se, não chore! Eu confesso, especulei demais! Sei que você teve as suas razões. E o simples fato de você assumir a identidade do amigo morto na França foi a oportunidade de recomeçar a sua vida.
- Exatamente. A minha irmã, eu fiz questão de trazer comigo quando voltei pro Brasil. Graças a Deus ela está curada. Agora, infelizmente, você já sabe de todo o meu passado duvidoso, e, se quiser, pode me desmascarar. Com certeza, provas concretas você já tem.
- Tenho sim! E reconheço... Fui longe demais por conta de uma paixão e admiração doentias que eu passei a nutrir por você. E, no fim das contas, a minha conclusão é que todos nós somos vítimas da nossa própria ignorância. E vim aqui pra te chantagear, pra te obrigar a se relacionar comigo. Vim com o propósito de te impelir a se casar comigo. Mas não. Agora que eu sei que você teve motivos maduros, e que não é nenhum inescrupuloso, eu não posso ser leviana. Afinal, você mudou a vida dessa população. Você trouxe esperança pra essa gente. Além de tudo, é honestíssimo e peculiar. Eu não vou destruir a sua vida.
Sorrindo e controlando o choro, Lucas aproximou-se sutilmente de Lucélia, acariciou o rosto dela e desabafou.
- Lucélia, você é uma pessoa muito inteligente, e mais sensível e generosa do que muitos daqui pensam. Talvez por sempre ter sido rejeitada pelas pessoas é que você quis provar a si mesma a sua capacidade de ser esperta e impactante. Veja como são as coisas: você, considerada a bandidinha desse local, capaz de fazer com que todos saiam da sua zona de conforto. E é isso o que está evidente. Se as pessoas te julgam, é porque você as faz externar a própria hipocrisia delas. Já eu, sou uma pessoa que vivia com medo, sobretudo, após o crime que eu cometi. Nunca mais consegui viver em paz após tantos anos. Seis no total. Por isso, considerei essa cidade e essa vida nova como a solução para eu esquecer quem um dia eu fui. Por isso, fique sabendo que, apesar de não te amar, eu me aceito casar com você, sim!
Lucélia se surpreendeu, sorriu por dentro e o abraçou.
-A gente pode vencer os preconceitos dessa vida juntos, Lucas. Eu sei que você só se casará por conveniência, pra ninguém questionar a sua sexualidade, como muitos questionam. Então, saiba que eu me casarei pra ser a sua amiga, pra te incentivar a lutar pelos seus objetivos, e, também, pra deixar de ser uma pessoa tão desocupada, especuladora e tendenciosa.
Assim, embora inicialmente por chantagem, Lucas e Lucélia se casaram, um ano depois. Nunca foi descoberto o crime que ele cometeu, no passado. Lucélia, por sua vez, cumpriu o prometido de ser apenas uma aliada, e, sobretudo, a grande amiga que Lucas sempre precisou para desabafar. Tiveram filhos. Três homens no total. E, ao morrerem, 30 anos depois, na mesma cidadezinha, para sempre foram lembrados como pessoas corajosas, determinadas, os quais lutaram pelo bem-estar da população e pelo desenvolvimento social e cultural da cidadezinha "pacatinha", como Lucélia - a bandidinha - frequentemente a definia.