O Céu é o Limite - reedtado

Quando Teobaldo alcançou finalmente aquele ponto da montanha e pousou sobre o solo empedernido pelo gelo o que sobrara de sua bagagem, não pode conter a emoção. Ao olhar para baixo e ver os topos dos outros montes encobertos pela neve e, mais ao longe, até onde alcançava sua visão, o suave e belo espetáculo das nuvens deslizando sobre a cordilheira, agradeceu em silêncio ao criador por lhe ter conservado a vida até ali. Não foi fácil a escalada. Atrás de si, arrastados, mais mortos do que vivos, vinham os seus amigos. Anselmo e Luiz Paulo já não acreditavam que pudessem completar o feito. Mas a meta de Teobaldo era chegar ao cume. Até ali 4.950 metros já haviam sido escalados; vencer os 2.000 metros que tinham pela frente era a etapa final, porém a mais difícil e arriscada. Anselmo não estava bem. Precisava parar para recuperar as forças já quase extintas. O gorro que lhe protegia a cabeça fora arrancado por uma rajada de vento repentina e voou para o espaço aberto, desaparecendo rapidamente. Tinha, portanto que parar e retirar da mochila outra cobertura. O frio tiritante lhe castigava o rosto e ele batia os dentes de maneira incontrolável.

- Acha que vamos conseguir?– perguntou Anselmo quando finalmente alcançou Teobaldo que parara sobre um atalho, metros acima, e agora se encontrava sentado, fazendo de escabelo uma enorme rocha.

- Não sei quanto a vocês, mas não pretendo terminar aqui a minha escalada. Não peço que me acompanhem. Como vocês, já cheguei a este ponto em que estamos agora. E mais de uma vez. Terão também a chance de pensar e optar pela melhor escolha; não quero influenciá-los. Apenas decidi que, desta vez, é lá que eu quero chegar – concluiu, apontando para o topo do monte.

Nuvens compactas beijavam o Aconcágua. Em seu translado lento e harmonioso, hora ocultavam, hora faziam descortinar toda a aparência do pico, destacando de fora a fora o seu perfil magnifico. Naquele ponto acampariam juntos pela última vez caso Anselmo e Luiz Paulo decidissem por retornar dali mesmo na manhã seguinte. Embora houvessem estudado cuidadosamente as previsões meteorológicas e empreendido a subida em época que lhes parecia a mais propícia, não escaparam de alguns acidentes inopinados. Um princípio de avalanche, felizmente na primeira fase da trajetória, antes de alcançarem Los Puquios a 3.400 metros, quase põe tudo a perder. Eram as primeiras horas do nascer do sol e havia rochedos superpostos onde puderam encontrar abrigo, esperar e decidir o que fariam em seguida. Já haviam atingido quase trezentos metros e perderam parte da equipagem, mas nada que os impedisse de dar prosseguimento à aventura. E foi o que fizeram, por ordem de Teobaldo, chefe daquela missão.

A temperatura era de sete graus centígrados no fim da tarde e estimavam que chegasse perto de zero ao correr da noite. Logo, não havia muito que fazer além de se espremerem dentro da pequena barraca, tomarem o chocolate ainda quente e saciarem a fome com as frutas e as bolachas que tinham em seu poder. Em seguida tentariam, da melhor forma, conciliar um pouco de sono, pois teriam pela frente no dia seguinte o desafio de suas vidas. Mesmo Anselmo e Luís Paulo, se optassem por retornar à base inicial em Puente de Inca, tinham consciência dos contratempos que deveriam enfrentar na descida; e sem a companhia e as orientações de Teobaldo pior ainda seria. A noite foi lenta e penosa. O vento rajava a uma velocidade extraordinária. Silvava com fúria, agitandoos panos da barraca. As barras, fincadas no solo eram reforçadas por pinos grossos e resistentes. Mesmo assim, com a força incomum do vendaval, entortavam-se como se preparando para alçar voo. Teobaldo, mais de uma vez, precisou levantar para ajeitar a armação, tranquilizando assim seus camaradas. Anselmo mal pregara os olhos, assustado com os caprichos da noite tétrica.

- Desejem-me boa sorte – disse Teobaldo aos amigos. Já sabia, por experiência própria, que eles não completariam o percurso.

- Não acredito que tenha coragem de enfrentar este tempo. Como conseguirá chegar lá em cima? – disse Luís Paulo sem conseguir esconder o assombro.

- Não me importam agora as dificuldades; sinto-me preparado. Conheço cada centímetro dessa montanha.

- Mas não lá em cima; não o topo dela. Você não sabe o que vai enfrentar; nunca ninguém conseguiu chegar ao topo do Aconcágua.

- Ouça! Não estamos querendo desencorajá-lo – disse Anselmo – sabemos o quanto preparado está, mas...

- Meus amigos – disse Teobaldo, interrompendo a frase do outro – sei da preocupação de vocês com essa minha decisão, mas eu asseguro: estou confiante; esperei muito por esse momento e não vou desistir agora. Fiquem tranquilos, estarei bem.

- Esperaremos aqui o seu retorno – disse Anselmo.

- Eu não aconselharia isto. Não sei quanto tempo levarei para cobrir o percurso. De qualquer forma gastarei um dia inteiro; vou acampar lá em cima e retornar com o nascer do sol. Mas tudo vaidepender das condições do tempo. Além do mais não podem ficar inativos. Empreender o percurso de volta será um ótimo exercício, contanto que o façam com cautela. Precisam estar hidratados e em boas condições físicas, por isso as paradas para descanso serão indispensáveis.

Era notória a apreensão dos companheiros de Teobaldo. Sabiam não terem argumentos para demovê-lo do seu propósito inflexívelde alcançar o auge do monte. A conversa mudou de sentido e adquiriu o tom do aconselhamento, pois não deixava de ser visível também a inquietação de Teobaldo com o empreendimento deixado a cargo dos dois amigos. Muito recomendou, fez perguntas com a intenção de testar o que haviam aprendido e ensaiado exaustivamente; reorientou, esclareceu dúvidas e, sobretudo, insuflou de coragem e ânimo as mentes de Anselmo e Luís Paulo. Quiseram saber com detalhes como agir numa situação inesperada, caso fossem surpreendidos por uma nevasca, uma avalanche ou requisitados para uma ação de primeiros socorros. Teobaldo foi paciente e amoroso em cada explicação. Tudo era questão de recordarem o que já haviam assimilado; um repasse de instruções, mas o sentido primário de tudo era reconfortá-los e acalmar suas aflições.

Era a hora ideal para Teobaldo reiniciar sua escalada em direção ao objetivo, como para Anselmo e Luís Paulo começarem a descida de volta à base. O tempo estava perfeito. O sol de oito da manhã era bem fraco e lá em cima as nuvens passeavam ao longe, permitindo a visão integral do topodo Aconcágua.O cenário da cordilheira como um todo, se mostrava deslumbrante. O céu, de um colorido anilado, inspirava a aventura. A linha de crista das montanhas abaixo estava nítida e receptiva; era reconfortanteconferir o voo das aves circunscrevendo a cumeada. Suas asas firmes e retesadas proporcionavam um espetáculo a parte à medida que planavam por cima e em volta dos montes. Checaram seus aparelhos de rádio, trocaram palavras de despedidae ânimo. Anselmo e Luís Paulo acompanharam com o olhar a subida de Teobaldo até que este, seguindo a trilha, contornoua penedia, desaparecendo por trás da parede de rocha.

É só o que viria durante um bom trecho daquele caminho íngreme: escarpas, cabeços e despenhadeiros alcantilados. O cuidado de Teobaldo era onde pisar e o jeito de fazê-lo com segurança. Calhaus desciam das encostas e rasavam sua cabeça, agora com capacete. Nem tanto com a inclinação, que aos poucos se acentuava, ele se preocupava por hora, mas com o aspecto topográfico das trilhas. Algumas vezes retornava de um trecho depois de havê-lo percorrido, por se apresentar quase impossível a sua transposição. Mas já não havia muita escolha. Optou por um atalho que julgou mais acessível e seguiu por ali. Percebeu, todavia, ao ganhar ótima distância sem grandes incidentes, que não lhe encurtaria o trajeto; pelo contrário.Por trás da enorme penha, que lhe impedira figurar o caminho à frente, a trilha se estendia quase a se perder de vista e o trecho era acidentado e perigoso. Teobaldo precisou então tomar fôlego antes de enfrentar mais esse desafio inusitado. Olhou em seu relógio de pulso. Havia feito três horas de caminhada íngreme, mas estava com boa disposição, excetuando um ligeiro cansaço, o que considerou positivo.

Depois de breve refeição e uns goles de água, sentindo-se revigorado, prosseguiu avançando, tendo como prioridade o ritmo da caminhada. Embora disposto, não queria se entusiasmar; a experiência lhe demandava cautela e comedimento. Sabia que dali para frente era subida abrupta e dificultosa, por isso guardava toda sua reserva de energia para o momento oportuno.

Chegou, pelo fim da tarde, abaixo do ponto culminante, a partir do qual, num ângulo perigosíssimo, era o topo. Pairou na mente de Teobaldo a dúvida quanto ao que fazer em seguida. O trecho era longo, rochoso e parte dele inacessível a simples caminhada. Ele não arriscaria utilizar apenas as mãos. Embora hábil neste tipo de tática, avaliou rapidamente as consequências de uma falha, minimamente que fosse. Qualquer deslize o projetaria para baixo, de encontro à penedia mais próxima. Isto significava rolar trezentos metros antes de se espatifar contra os rochedos. Embora estes o protegessem contra a queda no precipício, proporcionar-lhe-iam outro tipo de morte e talvez muito mais dolorosa. Afora isto o preocupava a hora; queria chegar bem antes do anoitecer e comemorar o acontecimento em dia claro, apresentando, à luz do mundo, a sua vitória.

Sendo assim, armou o rapel, equipou-se da corda e dos pinos. Tomou fôlego e iniciou a subida. Cada encravada na rocha, cada pisadela e cada metro avançado representava uma vitória; deixava mais próximo o sonho de Teobaldo. Vencido um trecho escarpado ele recolhia o material e prosseguia caminhando. Vez ou outra um ruído lhe chamava a atenção. Tufos de neve desciam desgovernados ou um seixo escapava, varando a atmosfera até perder-se no precipício. Esta situação foi-se agravando até se tornar claro para Teobaldo que uma avalanche em formação não custaria a assolar aquele pedaço da montanha. Por instantes ficou inativo; apenas a mente trabalhava, de forma rápida, sem se permitir atemorizar. Estava em trecho desprotegido, a parede de rocha mais próxima ele havia deixado bem para trás. Se apressasse a subida ganharia o rochedo seguinte e ali estaria seguro para acampar e esperar pela mudança do tempo. Contudo, estaria perdido se fosse pego pelo caminho, além de o aparvalhamento submetê-lo a um escorregão e isto seria o seu fim.

Optou pela descida, lenta, mas confiante por já conhecer o terreno. Mas a avalanche não esperou que ele chegasse aonde pretendia. Foi surpreendido; e de forma feroz e impiedosa. O monturo veio com tudo. Neve acumulada, lixo que se desprendia de encostas saturadas e, o mais assustador, rochas, calhaus arredondados desciam como bolas lançadas por catapultas. Teobaldo apressou as passadas para ganhar o rochedo. Em dado momento da fuga acabou por desequilibrar-se e rolou pela trilha. A avalanche precipitava-se, quase a alcançá-lo e ele caía, dando cambalhotas e quicando no solo argiloso. Enquanto o fazia, sua intuição conduzia-o a um gesto crucial para sua sobrevivência. A mão no capacete não permitiria que este lhe escapasse, pois sabia ser esta atitude sua salvação em caso de choque, o que poderia ocorrer a qualquer momento.

E foi o que aconteceu. Depois de deslizar, perdendo a velocidade, auxiliado pela aspereza do solo e usando as pernas para minimizar o atrito, bateu de leve contra o rochedo tendo, sua vestimenta apropriada,como sua presença de espírito o livrado de ferimentos graves. Mais do que rapidamente, divisando uma reentrância numa das extremidades da rocha, correu para lá quando faltava muito pouco para ser apanhado pela avalanche. Teobaldo recebeu, no momento em que alcançava a cavidade, o impacto de uma pedrada que, mesmo acertando-o por cima do capacete, levou-o ao chão. Antes de desmaiar, entretanto, arrastou-se como pode para dentro da abertura e ali perdeu os sentidos.

O barulho tornou-se ensurdecedor. Uma queda implacável, um temporal avassalador dominou o cenário da montanha. O universo de luz e cor de horas atrás cedeu lugar à escuridão assombrosa da tempestade. A procela trazia como companheiro inseparável o uivo visceral que concita os elementos que lhe são próximos à participação na desordem. Isto perdurou noite adentro e entrou pela madrugada. Nas primeiras horas do dia seguinte era como se nada de anormal se passara; tudo estava calmo e silencioso. Teobaldo, retornando do estado de inconsciência, mantinha a noção vaga e deformada de onde estava e o que lhe havia calhado. A temperatura voltara a cair bruscamente; sua noite fora de frio e de agonia. Estava fraco e hipotérmico. A manhã avançava. O sol, erguendo-se no firmamento lhe dava um pouco de ânimo, mas não o suficiente para se levantar ou mesmo mexer-se por sua própria iniciativa.Compreendeu, por um esforço hercúleo de memória, o que havia acontecido. Um sentimento de frustração tomou posse e nenhuma outra atitude lhe importava a não ser dormir; dormir para esquecer a derrota.

Caiu a tarde, uma tarde admirável, destacando a beleza da paisagem montanhesa e os contornos dos vales aquecidos e iluminados. Anselmo e Luís Paulo podiam não ter a experiência e a coragem de Teobaldo, mas tiveram a paciência necessária de ver no que ia dar aquela empreitada maluca. A decisão que tomaram de não descerem e aguardarem o retorno do amigo culminou com a salvação dele após a passagem da avalanche. Valeu a pena esperarem e encontrá-lo vivo e consciente, capaz de narrar, dias mais tarde, o todo de sua aventura; que o deixou, mais uma vez, a um passo de realizar o seu grande sonho.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 11/06/2015
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