A justificativa do carrasco
Eram três horas da manhã, já fazia uma hora que eu havia estacionado o meu carro na frente da casa do Nogueira, qualquer alma que houvesse estranhado a minha chegada já deveria ter se desinteressado e julgado que o dono do carro já haveria de ter entrado em alguma residência, conclusão falsa, pois eu não tinha nenhuma chave ou convite.
Depois de verificar a rua, sai do carro e peguei a escada que trazia comigo e a usei para ultrapassar o muro, tomando o cuidado de ter fechado as portas do carro, mas sem trancá-las, pois tal ato resultaria em um ruído indesejado. Também coloquei a escada no terreno da residência por razões óbvias.
Tal como havia me confidenciado há algumas semanas, em dias quentes dormia com a janela aberta, lembrança que foi o estopim para a minha presença naquela noite. Entrei, tal como havia planejado, embebi um lenço com clorofórmio e o usei em meu réu, para depois amarrá-lo e amordaçá-lo, para que quando acordasse, pudesse iniciar o meu trabalho como carrasco.
Antes de prosseguir devo contar-lhe o motivo do meu ato, sei que espera ansioso a realização da minha vingança, influenciado por diversas narrativas que leste ou viste antes desta, mas tenha calma.
Há poucas semanas atrás participei de um jantar na companhia de alguns colegas, o motivo do jantar era claro, desejavam diminuir a minha inquietação em relação ao concurso público que enfrentaria no dia seguinte. Sei que tal ato é desaconselhado por alguns, e que o certo seria relaxar em minha casa, mas procure entender, encontrava-me em um estado pessimista nos dias anteriores, então tal agrado era justificável. Fui para a minha cama cedo, pois meus amigos não tardaram e deixaram a minha casa, para que eu iniciasse o meu merecido descanso.
Na manhã seguinte acordei com uma terrível enxaqueca, fato que fez aumentar o meu pessimismo, que alcançou um nível superior ao daquele anterior ao do dia anterior. Como eu poderia me concentrar durante a realização do exame? Como era de se esperar o meu desempenho foi terrível e ao chegar em casa procurei escapar do desespero através de um jogo eletrônico.
Quando recuperei a calma me perguntei, por que tal desgraça me atingiu? Não tinha ingerido bebidas alcoólicas na noite anterior. Por que o sintoma? Não demorei para encontrar nos meus registros cerebrais um acontecimento semelhante em minha vida, que fora causado por uma alergia alimentar, procurei então o responsável pelo banquete servido no dia anterior. Sabia que ele não conhecia as particularidades da minha saúde por ser novo no grupo, mas fora auxiliado por Diamantino. Receando que este fosse o culpado e procurando assim um relato verdadeiro, encontrei-me com o cozinheiro.
-É engraçado me perguntar a respeito dos pratos daquele dia, pois achei estranho o comportamento de Diamantino.
-Poderia descrevê-lo?
-Ele verificou as informações contidas nas embalagens de vários ingredientes, pensei que fosse uma criatura que se preocupasse demasiadamente com a própria saúde, mas me enganei, pois a gula que demonstrou durante a ceia me chocou.
Era óbvio que Diamantino verificará se algum componente do jantar pudesse fazer mal a minha saúde, mas por qual motivo cometeu esta sabotagem, ou foi apenas uma terrível fatalidade?
-Por que me fez tal pergunta? Gostou de algum prato e gostaria de possuir a sua receita?
-Não! – a minha voz saiu nesse momento com uma entonação alterada, fato que comprovei pela feição que o meu colega apresentou.
-Sentiste mal na manhã seguinte?
-Sim, – respondi não conseguindo conter a minha raiva – senti-me mal depois de ingerir algum alimento, e para a minha infelicidade uma enxaqueca me atormentou durante o concurso que prestei.
Nesse momento percebi a expressão de espanto do meu interlocutor, porém ela rapidamente mudou para uma pensativa e depois de alguns minutos falou seriamente.
-É alérgico a morangos?
Assustei-me. Como ele poderia saber disso? E se sábia por que colocou esse ingrediente no jantar? Era ele o culpado?
Percebendo a mudança das minhas feições, deu-me a informação que foi o principio dos acontecimentos que levaria certo ser a sepultura.
-Depois que terminamos de fazer o jantar, Diamantino se retirou com os outros para participar das partidas daquele jogo de luta que estava sendo jogado naquela noite. Enquanto eu preparava a sobremesa Nogueira entrou na cozinha e me sugeriu um acréscimo interessante “Por que não inseri estes morangos na nossa salada de frutas?”, alegrei-me com a ideia, pois nunca havia feito tal salada.
Não perguntei mais nada a ele, apenas o agradeci pela informação e me dirigi a minha residência, local que foi palco de incríveis atos selvagens que não conseguiram aplacar o meu rancor.
Voltemos então ao instante seguinte ao termino da preparação do julgamento. Puxei uma cadeira e a posicionei na frente da cama de Nogueira, para que pudesse focar os meus olhos nos dele quando este acordasse. Enquanto as horas passavam senti uma calmaria que atingiu tanto meu corpo quanto a minha mente e me fiz à seguinte pergunta, a vingança que estava prestes a ser concretizar era justificável?
Ao pensar em tal questão procurei dentre meus conhecidos alguém que fosse atingido por uma consequência gravíssima e permanente vinda do meu ato, não encontrei, e já que não conhecia bem a família da minha vítima não a julguei muito relevante.
Uma coisa era certa, seria preso pouco tempo depois de empreender o meu ato, mas se este ato pudesse servir a sociedade para que eventos semelhantes diminuíssem em número, tal ação séria útil. Sendo assim era minha obrigação divulgar esta história em todos os blogs e sites que frequentava que permitissem a divulgação na forma de notícia ou comentário. Tendo tais pensamentos na minha cabeça tentei encontrar a causa da ação de Nogueira, mesmo que esta não importasse muito para mim, mas seria exigida pelos meus futuros ouvintes.
Remoí a minha memória procurando o motivo do crime. Depois de alguns instantes de pesquisa constatei que Nogueira andava mais reservado nesse ano que no anterior, foquei nesse fio e depois de uma reflexão demorada encontrei a razão de tal mudança. Há alguns meses atrás, durante um campeonato de lutas virtuais fiz uma piada em relação ao meu adversário que resultou em um apelido, que causou uma grande fileira de risadas, das quais uma dessas era deste. Esse jogador era Nogueira. Será que tal apelido remetia a algum conhecimento ou lembrança que resultava em um estado indesejado para este, e ele decidiu se calar para não ser excluído da cerimônia e olhado de forma diferente no futuro?
Depois de encontrar o motivo de tal ato me senti horrível, não era a minha vingança que era justa, mas sim a da minha vítima, que com absoluta certeza sofreu durante o seu silencio. Agora eu era o réu e ele o juiz, e este já tinha pronunciado e executado a sentença.
Como réu procurei me defender, se a vingança era justa por que não a divulgou para prevenir comportamentos similares ao que apresentei? Se não a apresentou, para que serviria a sua vingança? Conforto pessoal? Não, não aceitei tal argumento, pois julguei obrigatória a divulgação da razão da vingança, mesmo que gerasse consequências desagradáveis ao carrasco.
Depois de muito sofrer cheguei à conclusão que havia um caminho opcional e que não foi seguido por Nogueira, por que este não abordou o assunto comigo e com os outros que continuaram o chamando pelo novo apelido? Por que eu não procurei saber a razão da sua mudança comportamental? Éramos ambos culpados afinal.
Depois de desamarrar Nogueira comecei a escrever estas notas para que a nossa experiência – minha e de Nogueira – sirva para outros. Aguardo impaciente o momento do seu despertar para que possamos discutir os fatos passados e para que seja revelado a mim, se ele julgar necessário e oportuno, o motivo da sua repulsa pelo apelido.