Anjos da Morte
Eu morri em meio a uma cirurgia cardíaca, pelo menos acreditava que morri. Eu estava de pé ao lado do meu corpo aberto jorrando sangue, rodeado de médicos e enfermeiros desesperados pronunciando diversos termos complicados ao mesmo tempo. Meus olhos corriam sobre minha expressão sem vida e longínqua, não tinha como eu ainda estar presa a este corpo. A porta da sala se abriu e dois médicos fortemente equipados se atiraram para dentro com uma velocidade anormal, tomaram conta da situação. Ao lado do meu corpo surgiu um homem, de terno preto, rosto pálido, olhos profundos e sem vida, cabelos curtos e penteado para trás. Ele estendeu a mão para mim e fez um breve sinal com a cabeça para que eu o seguisse para o lado de fora da sala. Assim o fiz, caminhei por entre os profissionais que tentava incansavelmente me reanimar, atravessei a porta e fiquei diante do homem misterioso de terno.
- Bem vinda anjo da morte.
- Quem?
Questionei girando meu rosto para a direita e olhando por cima do ombro, para ter certeza de que ele não estava falando com outra pessoa.
- Meu nome é Daniel, sou um anjo da morte assim como você. – ele fez uma pausa analisando minha expressão facial tranqüila – Meu dever é garantir que a lista de morte seja zerada. O seu é garantir que ninguém morra na véspera.
Eu sorri, aquela situação não poderia ser real. De repente senti meu peito explodir e tudo escureceu. Acordei no quarto do hospital, grande iluminação, barulhos irritantes, como alguém pode dormir aqui? Diante de mim um medico de estatura alta e feição cansada analisava meu prontuário enquanto mastigava a parte traseira da caneta. Ele arrastou os olhos da prancheta até mim e forçou um sorriso acolhedor.
- Oi – ele mudou a feição e as palavras saíram arrastadas de sua garganta, como se fizesse por obrigação – seja bem vinda de volta, você nos deu um susto.
O restante da minha estadia no hospital foi agitada, entre exames, comidas ruins, e visitas curiosas. Dois meses depois eu estava com minha rotina estabilizada, colégio, curso de idiomas, e cursos preparatórios para faculdade. Certo dia eu saia do colégio quando senti uma brisa passar por mim em pleno verão, senti os pelos da nuca e do braço se arrepiarem. Um carro dobrou a esquina, derrapou, bateu na traseira de outro veículo, girou e atropelou três pessoas, seus corpos foram esmagados e parte deles foram jogados sobre mim, fechei os olhos e girei o rosto. De repente tudo se acalmou e eu estava em pé ao lado do portão do colégio , sozinha. O homem misterioso de terno surgiu na esquina, cruzou os braços, encostou seus ombros na parede e me lançou um olhar irônico. Minha cabeça girava, senti a brisa outra vez, as três pessoas passaram por mim rindo de forma exagerada, eu senti um impulso que me lançou sobre elas.
- Com licença.
Joguei as palavras no ar o mais alto que pude. Elas pararam e voltaram seus rostos para mim.
- Meu nome é Kira, fiquei um tempo longe do colégio, gostaria de saber se vocês tem o contato do Professor Geoge.
Elas começaram a fuçar em suas mochilas.
- Eu tinha – disse uma delas – deixa me procurar.
De repente o carro dobrou a esquina, derrapou, bateu na traseira do outro, girou e veio girando até nós. Quando estava centímetros de nós ele parou e começou a vazar gasolina,não havia sinais disso, mais eu tinha uma certeza inexplicável. Puxei as três pessoas para dentro dos portões do colégio, alguns segundos depois o carro explodiu jogando seus pedaços para cima e para os lados. O homem de terno surgiu furioso diante de mim.
- Você enlouqueceu? – ele gritou sobre meu rosto lançando seu hálito frio e com um forte odor de morte sobre mim.
- Não. Pensando bem, acho que sim.
- Não se mete mais nas minhas mortes – ele cuspiu seu ódio em meu rosto – ou você será a próxima da lista.
- Não tenho medo de você.
- Pois deveria. – ele caminhou até o carro e desapareceu em meio as fumaça.
Arrastei meus olhos para as três pessoas vivas jogadas no chão aos prantos, era para os seus pedaços estarem voando contra mim, senti uma ponta de orgulho por ter feito algo bom, mais não durou muito tempo. Cerca de uma semana depois eu caminhava com meu namorado com meu braço em sua cintura e sentindo o seu braço em meus ombros. Atravessamos-nos a rua e continuamos caminhando. Ele me dizia em longas palavras sobre o futuro, o quanto ele gostaria de ir para a mesma universidade que eu, mais o destino teimava em nos separar. De repente senti uma brisa que arrepiou minha nuca, um homem mascarado saiu de uma loja, virou o cano da arma para nos e disparou quatro vezes, senti a bala perfurar meu crânio e meu corpo desabar ao chão. De repente eu estava do outro lado da rua me preparando para atravessar para o lado onde o homem mascarado estava. Puxei meu namorado e entrei em uma loja de roupa, fiquei puxando as roupas com os cabides uma a uma com o rosto voltado para a porta de vidro que nos dava acesso a rua. O homem mascarado saiu e atirou, entrou em um carro e desapareceu, girei meu rosto e um cachorro preto com longos dentes e unhas afiadas saltou sobre o vidro o despedaçando, ele caiu sobre meus pés e rosnava para mim. Seus olhos frios o denunciaram.
- Daniel – sussurrei – Você não me assusta.
- Não preciso – ele respondeu voltando a sua forma humana – agora o universo vai conspirar para você estar em todas as vezes que uma pessoa for morrer antes da hora. Boa sorte.
Ele desapareceu deixanxo uma risada pesada no ar. As situações acalmaram. Certa de três meses depois eu estava em uma lanchonete com os cotovelos apoiados a mesa, com os olhos fixos na tela do celular, senti um rosnado atrás de mim, saltei para frente atropelando a mesa, e lá estava ele.
-Daniel – sussurrei.
O cachorro virou a cabeça olhando para fora, e um carro estava pegando fogo no fim da rua, eu saltei sobre ele e corri para o carro, joguei meu corpo sobre o capô, havia uma mulher de aproximadamente 25 anos no banco do motorista, olhos grandes, e ardia em chamas. Pessoas surgiam com extintores por trás de mim e afastavam o fogo aos poucos. Estendi a mão e agarrei a mão dela na tentativa de puxá-la para fora, ela gritava desesperadamente, sua pele derretia e formavam bolhas diante de meus olhos. De repente alguém me puxou e eu estava outra vez dentro da lanchonete diante de Daniel. Girei o rosto e avistei o carro pegando fogo.
- Por que não pude salvá-la? – minhas palavras saíram junto com as lagrimas e explodiram sobre seu rosto pálido.
- Porque você só pode evitar quando não for à vez dela de morrer.
- Ela está sofrendo.
- Eu sei.
- Leva ela logo – gritei.
- Se você se importa tanto por que você não faz?
Senti minhas mãos queimarem, caminhei até o carro e fiquei diante dela, seus olhos me pediam misericórdia, coloquei as duas mãos no capô, inclinei o rosto para baixo.
- Vai Kira, você sabe o que fazer. - Daniel disse de forma irônica.
- Cala boca totó.
Arrastei meus olhos novamente para ela, inclinei meu corpo pra frente.
- Me perdoe – sussurrei.
Empurrei o capô do carro para baixo fazendo o amortecedor ceder e o carro desceu, senti meu braço esquentar, fixei meus olhos na mulher. Meu braço continuou esquentando até causar outra explosão,desta vez próximo a ela, soltei o carro e ele deu um pequeno pulinho. A tampa do capô foi arremessada para cima e quando desceu entrou pelo vidro da frente diretamente no rosto da mulher o partindo em dois, seus olhos ainda me confrontavam, ela parecia não ter abandonado o corpo ainda, mais certamente não sentia mais dor.
- Bom trabalho novata.
O homem de terno se afastou, caminhou até o fim da rua e lá ele pegou a mulher do carro pela mão e a conduziu para longe, me deixando ao lado do carro com os olhos lacrimejando e o coração apertado. Naquele momento eu entendi o que o anjo da morte tentou me mostrar, existem situações que você deve tomar a frente e impedir, existem outras que você deve deixá-la se consumir e aceitar. Depois de 10 anos a lista de pessoas salvas éra muito grande, mais a lista das que eu vi morrer éra ainda maior, às vezes Daniel as trás pra mim, a ultima foi um garoto com câncer terminal, eu assisti sua morte e me odiei por não ser capaz de impedir. Depois que sua alma deixou seu corpo ele surgiu ao lado de Daniel, se jogou em meus braços e sussurrou em meu ouvido.
- Agora posso saber o que é não ter dor.
Confesso que nunca chorei tanto diante de uma criança, seu sorriso atravessava meu peito e cortava meu coração como uma espada de dois gumes, ele estendeu a mão e passou o dedo sobre uma gota de lágrima a secando.
- Não chora – disse ele sorrindo – eu nunca mais vou chorar de novo.
Depois ele me deu um beijo no rosto e se afastou, os dois saíram pela porta e desapareceram no corredor. Eu sai do hospital chorando, e me sentei em um pequeno banco na pracinha de frente ao hospital, eu soluçava tanto que achei que não conseguiria manter a respiração. Daniel surgiu atrás de mim, se sentou ao meu lado, inclinou o rosto para baixo mantendo seus olhos no chão. Enfiou a mão no bolso e retirou um papel dobrado.
- Sabe- disse ele colocando o papel em minhas mãos – quando eu comecei ainda estava vivo, também salvava pessoas. Comecei a trabalhar com a lista de morte depois de ter morrido. O mesmo acontecerá com você.
- Se está tentando me animar, não está funcionando.
-Tem uma frase, que me ajudou muito enquanto eu estava vivo, e continua me ajudando agora.
- E qual seria? – reagi.
- Volta pra casa, toma um banho bem demorado, come alguma coisa, quando for deitar leia o papel, quando acordar, leia o papel. – ele fez uma pausa pensativa – até que você decorar, mais não o jogue fora, um dia você estará do lado de alguém desesperada como você esta agora, e entregara o papel pra ela.
Obedeci, fui para casa, tomei um longo banho, comi algo leve, deitei e abri o papel, li baixinho e confesso que realmente me ajudou. Sobrevivi a anos evitando e assistindo mortes até que sofri um ataque cardíaco e morri, desta vez morri de verdade. Fui ao meu enterro e Daniel estava lá com uma feição orgulhosa.
- Passou para o meu lado novata?
- Não se anima muito que vai aparecer um sorriso neste rosto frio.
Ele se afastou com um olhar tranquilo. Esperei todos irem embora, ajoelhei diante de meu tumulo, enfiei a mão no bolso, arranquei o papel que Daniel havia me entregado anos atrás, e copiei no cimento ainda úmido do túmulo o que estava escrito:” Concedei-nos Senhor, Serenidade necessária, para aceitar as coisas que não podemos modificar, Coragem para modificar aquelas que podemos e Sabedoria para distinguir umas das outras. - Reihold Niebuhr”
Às vezes ainda volto no meu túmulo para ler a frase novamente, e levo as pessoas lá quando preciso mostrá-la. Da ultima vez que voltei, alguém havia feito um risco embaixo das partes: “Serenidade, para aceitar... Coragem para modificar... Sabedoria para distinguir...”. E eu sorri, pois naquele momento percebi que mesmo depois de morta, e recebendo a lista de morte, ainda salvo vidas. E nunca me senti tão viva como naquele momento.
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