Maquiavel, as mulheres, e o medo.
Desacelerou o passo, tentou fazer os batimentos arrefecerem. Impossível. O corpo não tá pronto pra mentir só porque seu cérebro está. Checou mais uma vez, ele se aproximava. Trancava o carro e no exato momento em que ele passou por ela, deixou os livros caírem, não tinha como não notar, não os livros e os papeis espalhados no chão, mas aquela mulher de olhar decidido. O efeito foi exatamente o esperado, outros patetas preocupados com os papeis que voavam, tentando reaver a dona que parecia á vontade em meio aquela bagunça, e um pateta parado, observando a expressão daquele rosto de mulher maquiavélica. Sentiu dó de ver no chão o seu precioso exemplar de Travessuras da menina má de Mário Vargas Llosa, nesse momento tentou sentir-se como a chilena do texto do seu autor tão querido. Esse pensamento logo se foi, pois sua reação foi verdadeira e natural, ao juntar do chão, ainda com um pouco de areia e machucado da queda, seu adorado livro. A mentira para ser realmente boa tem que estar mesclada com a verdade, assim vai ser fácil repeti-la até que ela seja inteiramente verdade. Precisava dele, pelo menos daquele momento, sem dúvida. Apoiou o livro contra o peito, fingindo não se dar conta que se sujara de areia, ou da reação daquele corpo masculino tão previsível.
- Nossa, obrigada! Muito obrigada mesmo. Esse é meu livro favorito. –Disse ela descaradamente fingindo não saber quem ele era.
- Você é a moça do minicurso de literatura não é? Ontem nós fizemos parte do mesmo grupo lembra? Você teve a ideia sobre a temática do maquiavelismo feminino. Acha mesmo que as mulheres são manipuladoras assim, ou isso é uma projeção da sua personalidade? A proposito sou Roberto. – Falou estendendo a mão, que ela segurou com bastante força para uma mulher.
- Juliene. O que eu acho não importa. O que é relevante é essa leitura que fez de mim. Da minha personalidade. Você é bom, quer dizer, para um homem. Você, Roberto, é sem dúvida uma exceção da sua espécie. Eu adoraria ficar e continuar essa conversa que parece tão promissora, porém como você bem sabe amanhã é o ultimo dia do minicurso e tenho que terminar meu artigo. – Falou isso e pegou a caixa que estava próxima a porta do carro. Duas garrafas de vinho bem a mostra.
-Deixa, eu abro para você. Afastou-se um pouco e abriu a porta do carro dela. Colocou no banco de trás as garrafas de vinho e o netbook.
-Não acha que é vinho demais, você vai pro lago não é? A entrega dos trabalhos é amanhã pela manhã. Se você não fosse tão autossuficiente me ofereceria para ir acompanhando seu carro. Mas já sei. Vai me dizer que tem step e que sabe muito bem como trocar um pneu, não é, Juliene?
- Na verdade eu não formulei o convite porque estava certa de que me achava uma manipuladora maquiavélica...
O final da tarde se fez noite durante os dez minutos de conversa que trocaram na rua bastante afastada do hostel onde tantos alunos estavam alojados. Juliene vestia um jeans surrado e uma camiseta branca que estava coberta por um casaco azul claro. Um dos rapazes que presenciou o vendaval de papeis reuniu tudo e entregou para Juliene que agradeceu com um sorriso enorme como se o rapaz lhe tivesse doado um órgão. Os papeis ainda estavam cheios de areia, ela então soprou na tentativa de limpeza. Os grãos de areia encontraram abrigo nos belos olhos castanhos de Roberto. Pensou como era idiota aquele rapaz.
-Oh meu Deus, desculpe. Nossa, acho que aquela escolta tá cancelada não é? Ai que tapada que eu sou. Roberto deixe me olhar isso. Sei que não é uma técnica inovadora, mas posso soprar. – Deu um sorrisinho aproveitando-se da cegueira temporária de seu recente amigo.
Ele ainda com os olhos fechados disse: Não foi soprando que tudo isso começou? Se não queria minha companhia era só ter falado, não precisava me deixar cego.
Ela sorriu e disse que ele ainda podia ir com ela, mas teriam que ir no mesmo carro.
-Alguém diz não pra você e esses seus belos olhos? Eu só tenho que ir buscar um saco de dormir pra...
- Não precisa, eu tenho dois no porta-malas. Você vai ficar bem, prometo. Deu um sorriso um tanto estranho, difícil dizer se era de satisfação ou maldade.
Duas horas depois disso estavam na beira do lago, estava realmente bem escuro e inabitado. Todos os outros alunos estavam na calourada de despedida do simpósio. Ela estendeu uma toalha fininha sobre a grama. Ao sentar sentiram a humidade da grama. Roberto segurava uma das garrafas de vinho que Juliene segurara mais cedo. Ela deixou que ele abrisse a garrafa. Como não tinha copo ela disse que ele podia beber primeiro. Ele deu dois goles. Era horrível aquele vinho. Resolveu não bancar o fresco. Não comentou o gosto excêntrico do vinho. Deu mais dois goles e estendeu a garrafa na direção dela.
- Você não mudou nada. Continua linda. Na verdade mais, com esses cabelos assim escuros. Não entendi porque a bobagem de inventar um nome. Você acha que eu esqueceria seu rosto? Eduarda você continua achando que os homens são brinquedos seu. Acha que me convenceu a vir aqui?
-Como já disse antes o que eu acho não importa.Você também não mudou nada. Acha que aprendeu alguma coisa sobre as mulheres? Acha que sabe o que é maquiavelismo? Ou manipulação por falar nisso? Acha que eu não sei que me reconheceu no momento em que eu me pronunciei durante a atividade em grupo do minicurso? Você ainda acha que continua sem entender o gosto de um bom vinho. Esse é realmente um vinho com gosto ruim, Roberto. Vinho com veneno fica com gosto estranho mesmo. Você não achou estranho o meu carro estar tão afastado do hostel?
Foi puxando a toalha que se desprendeu do chão bastante húmida. Enquanto observava o olhar quieto de Roberto, deitado na grama com aquela garrafa de vinho que datava de dez anos atrás. Foi inevitável não estabelecer naquele momento a conexão entre as mulheres o maquiavelismo e o medo. Como bem disse Maquiavel é melhor ser temido que amado.