688-QUEDA NA COVA - Prólogo e epílogo de "Senhora das Coroas"
(DE “SENHORA DAS COROAS”)
– Prologo e Epílogo, adaptado especialmente para revista INMEMORIAM
Ai, ai! Que dor na perna! Minha Nossa Senhora Aparecida, me acode. Se pelo menos pudesse me sentar. Não consigo mexer a perna. Nem o pé! Acho que quebrei. Estou me lembrando...
Beatriz começa a se lembrar de tudo. Estava voltando do enterro de Dona Amanda. Todos já haviam saído do cemitério, fugindo da friagem da tarde gelada de julho. Ela demorou mais, observando algumas tumbas recentes e não notou como a tarde foi ficando escura. De repente, tropecou em uns tijolos ou ferramentas espalhadas pelo chão e caiu.
— Socorro!
— Me acudam! Aqui dentro!
Não adiantava gritar. Já estava anoitecendo e Beatriz via as estrelas piscando. Os portões já tinham sido fechados. Todos já tinham ido embora.
Agora é que ninguém virá me tirar daqui! Nossa Senhora Aparecida, me ajuda! Tenho de permanecer acordada. Se dormir, posso nem acordar mais.
Lembranças e mais lembranças acodem-lhe à mente, desordenadamente. Tumultuam seus pensamentos, como folhas secas levantadas por um vendaval. As recordações da vida passam como num filme louco, instantaneamente, onde as figuras correm agitadas. Flashes de imagens recentes confundem-se com antigas. Lembra-se da última coroa que tinha acabado de fazer, antes de sair da flora e vir ao Cemitério, misturada com as centenas de outras coroas que fez durante toda sua vida. Um redemoinho de imagens toma conta de sua mente.
O esforço de organizar as memórias faz com que permaneça acordada. Então, aos poucos, as recordações vão lhe proporcionando um certo conforto.
Estou zonza... Tropecei em alguma coisa no chão... Caí... Aqui dentro. Ave Maria, Cheia de Graça, o Senhor é convosco...
A noite estendeu o véu negro. A friagem da madrugada não chegava até o fundo da cova, o que, de certa forma, deu um pouco de tranqüilidade à Beatriz. O silêncio envolvia tudo e ela prestou atenção nas estrelas piscando no veludo do céu noturno.
As orações em voz alta transformaram-se em murmúrios, e as lembranças, sempre as lembranças, mantiveram a centelha da vida.
Recordou-se de como fora importante para muitas pessoas que jaziam ali, naquele cemitério. Sempre procurou amenizar a triste realidade da morte, tecendo carinhosamente e com amor, coroas que iam sobre os caixões e que, depois, enfeitavam as lápides frias. Pouco recebera em agradecimento, mas não tinha importância agora. Fora carinhosa com as pessoas que pudera ajudar nos últimos momentos.
Sabia que sua hora estava chegando. Uma sensação de tranqüilidade tomou conta de seu espírito. Cumprira sua missão, seu dever, suas obrigações. De nada se queixava, pelo contrário, estava agradecida a Deus por todos os momentos de sua vida.
Percebeu que algo muito importante estava para acontecer. As dores já não mais a perturbavam e sentiu-se até confortável. Antes, muito antes da aurora, uma luz intensa iluminou a cova.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 18 de outubro de 2011
Conto # 688 da SÉRIE 1OOO HISTÓRIAS