680-MISTÉRIO E MORTE NA SELVA TROPICAL

Valentina aproximou-se por trás e me abraçou pela cintura; Senti o aroma suave e doce de sua pele, natural. Como uma mulher pode cheirar tão gostoso? Pensei. Meu corpo retesou-se, fiquei paralisado e olhei ao redor. Não vi nada nem ninguém até onde podia notar. A escuridão da noite era quebrada de vez em quando por relâmpagos esparsos.

— Vem prá dentro, Rafael. Cacilda já está dormindo.

Sabia o significado dessas palavras. O que não sabia era o que eu estava fazendo ali, àquela hora, longe da civilização, numa noitada completamente sem sentido.

— Acalme-se, Tina. — Falei para a loira, em voz baixa, um cochicho. — Carlão e Cosme estão lá na frente do barraco, podem entrar a qualquer momento.

Apertou mais ainda seu abraço.

— Estou com medo. O quê eles estão esperando?

— Sei lá. Boa coisa não é. Nem sei mesmo porque nos trouxe aqui.

Éramos cinco no barraco à beira da selva, que se iniciava a apenas uns dez metros, atrás do telheiro onde Tina me apertava com seus braços. Eu, Tina, Cacilda, sua filhinha de cinco anos, Carlão, seu marido, e Cosme.

Carlão me havia convidado para “uma noite surpreendente, diferente de tudo o que você já viu”. Estávamos em Corumbá, num hotel á beira do rio, esperando alguns outros amigos que deveriam chegar no dia seguinte, para a pescaria rio acima.

Agora tenho certeza que ele desconfiava de que alguma coisa estava rolando entre sua mulher e eu, mas não fui malicioso bastante para perceber que o convite poderia ser uma armadilha para nós dois.

Carlão era misterioso e dúbio em tudo. Ninguém, nem a própria esposa, sabia onde arranjava dinheiro para vida folgada que levava. Tinha boa casa, em cuja garagem estacionavam-se o carro de Tina (sempre último modelo) e suas modernas camionetas. Não trabalhava e aparentemente ganhava a vida à noite, pois passava os dias em casa, dormitando vendo a TVE ou dando e recebendo longos telefonemas.

O quinto elemento, Cosme, me era desconhecido. Tina avisou-me:

— Não dê muita corda pro Cosme. É um detetive aposentado e está com meu marido à procura de aventura. Pescador é que ele não é.

Carlão nos levou na confortável Hilux por uma estrada que margeava o rio e em seguida embrenhou-se pela esquerda por uma trilha que se adentrava pela selva densa. Chegamos até um povoado, um ajuntado de uma dúzia de casebres miseráveis, feitos de paus entrelaçados e cobertos de folhas. Estacionou o veículo na habitação menos pior, com paredes de tijolos à vista e coberta de telhas. Tudo muito úmido e cheirando a mofo. Poucos móveis, apenas alguns bancos, e nos quartos, catres cobertos com colchões imundos, recheados de folhas secas de coqueiro.

Chegamos ao lusco-fusco do dia, uma meia escuridão provocada mais pelas sombras da floresta do que pelo ocaso do sol. Vi os demais casebres, em cujas portas lamparinas iluminavam parcamente o derredor.

Desembarcamos a tralha da viagem, ou seja, colchões de acampar, cobertores e caixas de isopor com comida e bebida. Cerveja, muita cerveja.

— Vamos passar a noite. — Disse Carlão, laconicamente.

Logo, a escuridão tomou conta de tudo, e os pontos de luz foram se apagando, à medida que a noite avançou.

Carlão e Cosme pegaram dois bancos e levaram para fora, para uma área de chão batido, além do rústico alpendre. Ficaram os dois com conversa baixa, tomando cerveja, uma lata atrás da outra, sem parar.

A camioneta estava atrás da casa, próxima ao telheiro do cômodo que algum dia fora uma cozinha. Ajudei Tina a arranjar as coisas, e a preparar sanduíches.

— Tem comida pra mais de uma semana, falei.

— Carlão é assim mesmo. Exagerado em tudo.

Ela afofou um colchão, estendeu uma manta e preparou para a filhinha, dizendo:

— Você pode deitar quando quiser, Cacilda. `

Acendemos dois lampiões: um ficou na sala e outro dependuramos no telheiro da frente.

Sentei-me sob o alpendre e Tina ficou de pé, encostada num tronco liso que servia de esteio à coberta da casa. Mantivemos silêncio por alguns momentos, e notei que os dois homens, sentados a mais ou menos uns vinte metros, conversavam entre si; mas não pude distinguir o que falavam.

Notei, pela parca iluminação que chegava até eles, proporcionada pelo lampião que estava no telheiro, que olhavam seguidamente na direção do final da trilha. Um relâmpago revelou algo que achei inusitado.

Na direção de onde eles olhavam havia um paredão de uns trinta metros de altura, ao lado do qual passava a trilha. Era uma clareira, onde estava sentado (numa pedra ou num tronco?) um homem com chapéu de abas largas, que escondia o rosto. Mais dois ou três clarões delinearam toda a cena. O homem tinha uma arma (fuzil ou espingarda) sobre os joelhos, fumava e olhava na direção do casebre onde estávamos. Alguma coisa me intuiu que aquele “caçador” estava, de alguma forma, nos observando, sendo também observado por Carlão e Cosme. Tinham alguma coisa a ver, algum negócio em comum.

Num dado momento (o tempo não era medido por minutos ou horas, mas pela escuridão e por um pulsar diferente, da natureza) dois homens e uma mulher passaram pelo caminho rústico, defronte nosso casebre, visivelmente embriagados ou drogados. Conversavam alto, os passos imprecisos e os corpos balançando-se em dança desconjuntada, macabra.

Vi — e tenho certeza que Tina também viu — duas piscadelas de lanterna vindas do local onde estava o “caçador”.

Carlão e Cosme levantaram-se e correram naquela direção, passando por nós e dizendo:

— Apaguem os lampiões, vão pra dentro. Rápido!

Eles seguiram pela trilha. Tina assustou-se e correu para dentro da casa. Apaguei o lampião do alpendre e também fui prá dentro. Vi quando ela correu para o quarto onde estava Cacilda, dormindo, e pegando a menina, meteu-se debaixo do catre.

— Vem! — disse ela.

Apaguei o lampião da sala e, na escuridão, enfiei-me também debaixo do catre. A menina estava no canto, e fiquei na beirada, com Valentina entre a filha e eu.

A garotinha não acordara. Dormia um sono profundo e silencioso.

Tina ofegava. Peguei-lhe a mão e ela me abraçou com força.

— Calma, cochichei-lhe.

Senti seu corpo bem junto ao meu, tremendo. Aos poucos, parou de ofegar e de tremer. Um calor suave nos envolveu. Ela me beijou com paixão.

Ouvimos estalos. Tiros. De diversas armas. O pipocar de pequenas armas automáticas e o som cavo de tiros de fuzil.

— Carlão tem arma? — cochichei.

— Sim, ele sempre anda armado. Dois revólveres.

Fiquei surpreso, pois não notara antes que ele portava armas.

Silêncio profundo e sinistro por alguns momentos, quebrados por trovões. A tempestade se aproximava.

Ouvi sons cavos de passos sobre o terreno. Sons de botas, pisadas fortes de homens apressados. Entraram na casa. Clarões luz de lanternas passaram pelas paredes e pelo teto.

Alguém movimentou o colchão do catre sob o qual eu, Tina e Cacilda estávamos escondidos. Nada viu, nada descobriu.

Escutei vozes soturnas, gritando:

— Carai, acá no hai nadie.

— No importa! Vamonos!

O som das passadas diluiu-se. Por entre o trovejar ouvia-se o barulho da chuva torrencial.

Tina se apertou mais em mim. Tapei-lhe a boca com a mão, não fosse ela emitir algum som ou um grito denunciador. A menina continuava dormindo.

Ficamos assim, corpos colados, por longo tempo. Uma eternidade... Ouvindo o barulho da chuva, o respingar das goteiras dentro do quarto. Não pude evitar que, apesar do medo, meu desejo se manifestasse. Ela também sentiu e me tocou com urgência.

— Não, não! Agora não!

Inútil negativa. Ela rapidamente abriu o zíper de seu jeans e encostou-se em mim, procurando-me avidamente. Encontrei o caminho entre suas pernas. Na urgência que o momento exigia, gozamos os dois em silêncio, num êxtase intensificado pelo perigo que nos cercava.

Ficamos ali minutos? Horas? Somente ao alvorecer nos atrevemos a sair do esconderijo.

Gritos e barulho de gente correndo sobre terreno molhado chegaram até nós. Saí bem devagar, falando com Valentina:

— Fique aqui, só saia quando eu vier lhe buscar.

Olhei com cuidado por uma fresta na janela de palha. Muitas pessoas corriam de cá pra lá, desorientadas. Paravam aqui e ali, apontando para o chão.

— Aqui tem mais um! — Gritou um rapazote.

Um cachorro latia perto da casa onde estávamos e fuçava o chão.

— Korak achou outro! — Anunciou uma menina.

A movimentação toda estava na trilha que ia da casa onde estávamos até o paredão, que agora se assomava, visível em sua completa amplitude, dominando a paisagem.

Ninguém se atrevia a entrar na casa, parece que respeitavam alguma coisa. Falei, sussurrando, para Valentina:

— Vamos fugir pelos fundos. Entramos na camionete e fugimos.

— E Carlão?

Não quis lhe dizer do que eu suspeitava: que Carlão e Cosme (e talvez até o “caçador”) estariam ao longo da trilha, feridos ou mortos.

— Sei lá. Aqui dentro não estão. Vamos embora logo.

Carreguei Cacilda para a camioneta, deitando-a no banco de trás. Ela acordou.

— Fica quietinha, filhinha. — Disse Tina, enquanto sentava-se no banco ao meu lado e eu ligava a Hilux. — Fica deitadinha, que vamos embora.

— Cadê papai?

— Vamos encontrá-lo por aí. — Eu disse.

A camioneta pegou no ato e fiz a manobra mais rápido ainda. Dirigi rapidamente, antes mesmo que o pessoal da vila se desse conta de que estávamos partindo.

No percurso entre a casa e o paredão, vi os corpos de Carlão e Cosme, e pude notar as roupas manchadas de sangue. Se Valentina viu, não sei, pois ela nada falou.

Ante o paredão, onde o caminho fazia uma curva, tanto eu como Valentina vimos o corpo do “caçador”, de bruços sobre o tronco no qual, horas antes, estava assentado, esperando... a própria morte.

Dirigi sem cuidados pelo caminho pouco usado, e aumentei a velocidade quando entrei pela rodovia.

Chegamos ao hotel esbaforidos e com cara de quem tinha passado a noite numa farra ou numa confusão qualquer.

— Apronte sua mala e da menina, vamos sair daqui o quanto antes. — Ordenei a Valentina.

— E o papai? — Perguntou a menina.

— Ele vai depois. — atalhei, ante a indecisão de Valentina.

Tomei banho, fiz a barba e arrumei minha mala. Estava terminando de pagar a conta, na portaria, quando Valentina e a filha chegaram. Haviam se lavado e traziam duas pequenas malas.

— Dona Valentina está partindo comigo. O marido deve chegar dentro de duas horas e fará o pagamento. — Expliquei ao atendente da portaria, um velho senhor de cabelos brancos, que me olhou e pareceu compreender toda a situação.

— OK. Obrigado pela preferência e boa viagem!

Viajamos sem parar dois dias e uma noite, rumo a S. Paulo. Tina dirigiu em alguns trechos, enquanto eu puxava cochilos reparadores.

Na grande capital, voltamos à nossa vida normal. Terminado meu período de férias, retomei a rotina bancária de meu emprego. Valentina e eu ficamos três meses sem nos ver, por precaução, não fosse nosso namoro motivo de desconfianças por quem quer que fosse.

Não sei como Valentina explicou a ausência de Carlão aos empregados da mansão ou a algum conhecido. Mas a vida dele era tão estranha que ninguém iria se incomodar.

Somente Cacilda é que indagava, com interesse cada vez menor:

— Tio Rafael, o senhor sabem onde papai está viajando?

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 2 de agosto de 2011

Conto # 680 da Série 1OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 04/03/2015
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