ELA
Não desejava eu que fossem as palavras de um moribundo, entretanto, quis o destino que atingisse minha vida este ponto, nestas esquálidas e sofríveis condições. Não devo perder muito tempo em preâmbulos visto não saber quanto tempo ainda me sobra. Percebo pela sua fisionomia, como pela de todos que me visitaram nestes últimos dias, que meu aspecto não é dos melhores, antes assim, pois passarão todos a lutar e a torcer pelo meu desenlace do corpo, ao invés de empreitarem tentativas inúteis para manter-me vivo; preso a uma existência que não mais quero.
Tenho consciência do quanto fiz sofrer os que me cercam e amam, mas em minha defesa vos pergunto: se que me importa a colossal herança familiar, o casamento que esfacelei, a juventude que voluntariamente permiti gangrenar? Deveria em prol da felicidade de terceiros negar a minha própria? Pareço egoísta, mas ao mesmo tempo em que me liberto, também os estou auxiliando. Não precisarão preocupar-se comigo e nem viver atados a uma criatura fria e amargurada. Acredito, meu caro confidente, que me espera e aguarda, na curva que tantos temem dobrar, uma felicidade sem conta, sem limite, sem pudor. Anseio a cada dia pela minha partida deste mundo frio, de dores, prantos e ranger de dentes.
Não derrame lágrimas em seus olhos, a minha ventura futura proíbe e contrasta com tal tristeza. Sou feliz por saber que poucos padecimentos me restam nesta vida e que um prêmio de beleza inimaginável me aguarda no plano em que os anjos trafegam livremente, desprendidos das amarras cruas e gélidas do corpo carnal.
Quando eu a vi pela primeira vez, a minha musa, fiquei literalmente sem fala, sem movimento, sem ação. Meu coração estancou, como se uma fria estaca me fosse transpassada em apenas um segundo. Minha esposa com seu corpo lindo e quente aquecia-se sob as cobertas ao meu lado. Acreditava ser naquele tempo um dos mais felizes dos mortais; e talvez o fosse, tendo como ponto de partida a ótica limitada em que habita a vasta maioria dos meus infelizes pares humanos.
Dormia um sono profundo, digno das consciências santas. Criado dentro das vastas regalias da corte, não encontrei obstáculos na jornada terrena. Dediquei-me muito aos estudos, tendo a filosofia sendo o meu campo preferido de aplicação. As questões de finanças passaram ao largo, como sempre faziam os de minha ascendência, entregando a administração a notáveis e corretos senhores que por gerações contam de engordar e enriquecer os já faustosos cofres de minha família.
O amigo bem sabe disso tudo. Sabe também do meu enlace com Camila, a divina herdeira da boa família dos Antônio de Meneses. Tão ricos quanto o nosso pouco modesto clã. Nossas bodas duraram 7 dias, sendo comentadas por todos os recantos da Europa e até mesmo nas distantes colônias de Além Mar. Contei que O Rei quase me nomeou Governador de uma das Províncias do Brasil?
Gostaria de narrar essa história, como muitas outras, mas o tempo escorre pela ampulheta da vida e a vida, na outra vida, se aproxima a cada grão de areia que cai. Camila abandonou-me. Os criados abandonaram-me; ou fui eu que os expulsei? Sim, eu os expulsei. Somente não consegui por para fora esse velho teimoso do Lobato. Maldito, maldito! Se não fosse por ele e pelo seus bons tratos eu já teria morrido há muito tempo.
E por que, meu amigo, devo adiar a minha felicidade? Diga-me, há algum motivo aparente? Sei que minha tosse o preocupa. Estou bem, recuperei o fôlego. Sem água, sem água, por favor. Quero abreviar os meus últimos momentos.
Como lhe dizia, eu a vi primeiramente em um sonho. Peço-lhe que registre minha história. Você promete como meu último pedido, me bom e fiel amigo? Sei que é difícil olhar para o meu rosto assim cadavérico, se quiser não precisa...
Eu dormia quando me desprendi do físico e deslizei pelo quarto; pois este é o mover propício quando nossa alma se desloca pelo espaço. Camila dormia em paz ao meu lado. O seu éter repousava dentro do calabouço de carne. Nem sempre nossas almas deixam o corpo. Não sei explicar esses fenômenos. Apenas testemunho que, desde a infância, eu domino esta faculdade.
Conseguia sair do meu corpo com facilidade e testemunhar todos os eventos que ocorriam em nossa casa durante a hora do repouso. Guardava o segredo de meu pai que saía, sorrateiramente, e se deitava com as inúmeras serviçais. Tanto em carne como em éter. Minha mãe, ao contrário, ou permanecia enclausurada em seu vaso físico, ou se dirigia à capela. Outras vezes nos visitava em nosso quartos, velando por cada filho. Ela era um anjo, assim como Camila.
E isso, meu amigo, consiste em uma das minhas maiores desventuras. Sei que Camila me é fiel. Sei que me ama. Sei que é uma pessoa na qual posso confiar com todas as forças e entranhas do meu ser, mas quem é aquele que comanda as energias do coração? Como escolher a quem devemos amar? O coração, meu amigo, esse órgão falível e tolo, que nos põe a perder é também o que nos mantém vivos ou que nos conduz à morte, evento este que comigo agora sucede.
Peço-lhe ainda mais, já abusando de vossa amizade e sinceridade, solicito que, ao término do período de luto, que despose a doce Camila. Não se mostre constrangido. Sei há muito da afeição sincera que guarda por ela, mesmo antes do nosso enlace matrimonial. Também conheço que seu afastamento de nosso convívio, nestes últimos tempos, deu-se por não saber conciliar os dois sentimentos: o amor por ela e a amizade por minha pessoa. Foste fiel, eu o sei graças à minha estranha faculdade e por isso confio em ti.
Em uma noite de inverno, fria como esta, eu andava pelo quarto e apreciava o meu corpo dormindo ao lado de Camila. A beleza interior e física de Camila vos é conhecida, não preciso esmiuçar-me em detalhes. Fomos felizes até aquela noite, e talvez o fôssemos ainda hoje, se eu o quisesse. Senti, naquele momento, que éramos observados. Afastei-me do ponto em que estava quase encostado à parede diante da cama e me virei. Que susto eu tive. Por mais que me esforce não sei se conseguirei narrar a augusta beleza daquela figura.
Aos fundos, sentada no espaço, trajando um leve vestido, quase uma túnica, com franjas sobre a testa e um penteado que nenhuma das mulheres de nossa sociedade jamais conseguirá imitar, eu vi uma criatura translúcida. Era uma mulher com os mais finos, belos e impressionantes traços que eu jamais vira. Naquele instante eu só conseguia admirá-la. Ela não sorria, não manifestava, aparentemente, qualquer emoção, apenas me olhava. Eu senti o mais profundo amor, a mais intensa atração por aquela figura espectral.
Sua beleza era angelical, transcendendo a de qualquer outra mulher que pise sobre a terra. Seus olhos e cabelos e pele não tinham cor. Dentro do meu coração imaginei os cabelos loiros, olhos azuis e uma tez branca, alva, macia e quente. Aquela visão representou o fim do meu enlace matrimonial e do meu desejo por continuar esta existência. Se for verdade que muitas naus chocaram-se contra rochedos graças ao canto das sereias - que tantos homens fez perder, verdade maior é que minha musa supera a todas; pois sem abrir sequer a boca encantou-me perdidamente.
Passei a noite toda admirando aquela figura que nada me dizia, que não se movia, mas que sei que era viva, assim como você e eu.
Despertei querendo voltar a dormir e novamente encontrar-me com ela. Adentrei em um mutismo sem precedentes. Imediatamente, como se atingido por uma doença fatal, perdi toda a vontade de alimentar-me, de beber, ou de executar as minhas atividades cotidianas e triviais.
Sinto, sinto muitíssimo, devido à paixão intensa que descobri naquela figura, ter cravado uma decepção tão profunda no seio de Camila. Ela não conseguia entender a minha súbita transformação. Não havia minuto sequer em que eu não parasse de pensar naquela mulher. Seus olhos, nariz, boca, sobrancelhas, tudo perfeito, absolutamente irretocáveis. Sei que ela era minha, somente minha, mas que para tê-la devia mudar de plano, deixando de existir para este planeta.
Minha resolução foi rápida. No primeiro dia não consegui falar com Camila e nem com ninguém. Passei o dia sem tocar o dedo em qualquer líquido ou refeição. Por duas vezes quase tombei nas escadas. Ao alvorecer deitei-me ansioso, tendo ao meu lado a luminosa e radiante presença de minha adorável esposa, que debulhava-se em lágrimas, querendo saber se era sua a culpa por minha inexplicável tristeza.
Camila, meiga Camila. Se pudesse dizer-te naquele momento a verdade. Por certo tomar-me-ia por um louco e sairia em busca de auxílio profissional. Ela, nem ninguém, poderia compreender a natureza dos meus íntimos sentimentos.
Chorosa, deitou-se ao meu lado. Pedi, inconscientemente, dentro do foro íntimo no qual abrigava-me para que a sombra daquele sonho desaparecesse. Adormeci. Quando despertei em meu éter eis que lá estava ela, radiante, bela, fulgurante. Caí de joelhos aos seus pés. Implorei para que me dissesse o seu nome. Declamei todos os poemas conhecidos e criei tantos outros. Uma chuva de pétalas desabou sobre nós.
Ao voltar ao mundo de sombras e dores, no raiar do dia seguinte, aumentou minha decisão em abandonar as vestes duras deste mundo. Camila desesperou-se. Mandou chamar o médico, os familiares. Minha fraqueza acentuou-se. Já não podia levantar da cama e aí, a santa recompensa: podia ver a minha musa mesmo acordado. Ela, altiva, como se sentada no espaço a balançar em um balanço invisível, com as pernas cruzadas na altura do tornozelo, pairava diante dos meus olhos. Vejam, vejam, dizia eu. Ninguém a via.
Camila caiu em choros convulsivos. Criou-se uma romaria em casa. A todos eu comecei a escorraçar, pois queriam que eu voltasse à vida, à razão. Pedi um momento de solidão com Camila e abri o meu coração. Agradeci pela boa companhia, pela fidelidade e pelo amor, ela quase desfaleceu ao saber que meu coração não mais lhe pertencia. Eu amava outra, de modo inexplicável, não podia mais viver sem ela e assim deveria partir ao seu encontro.
Minha esposa sofreu. Eu sabia disso. Mas o amigo precisa entender a força colossal desse grande amor. Definhei rapidamente, como bem o sabe. Tenho agora poucas horas, ou minutos, talvez segundos. Ela está aqui, meu amigo. Veja como é linda, balançando, balançando...
Não desejava eu que fossem as palavras de um moribundo, entretanto, quis o destino que atingisse minha vida este ponto, nestas esquálidas e sofríveis condições. Não devo perder muito tempo em preâmbulos visto não saber quanto tempo ainda me sobra. Percebo pela sua fisionomia, como pela de todos que me visitaram nestes últimos dias, que meu aspecto não é dos melhores, antes assim, pois passarão todos a lutar e a torcer pelo meu desenlace do corpo, ao invés de empreitarem tentativas inúteis para manter-me vivo; preso a uma existência que não mais quero.
Tenho consciência do quanto fiz sofrer os que me cercam e amam, mas em minha defesa vos pergunto: se que me importa a colossal herança familiar, o casamento que esfacelei, a juventude que voluntariamente permiti gangrenar? Deveria em prol da felicidade de terceiros negar a minha própria? Pareço egoísta, mas ao mesmo tempo em que me liberto, também os estou auxiliando. Não precisarão preocupar-se comigo e nem viver atados a uma criatura fria e amargurada. Acredito, meu caro confidente, que me espera e aguarda, na curva que tantos temem dobrar, uma felicidade sem conta, sem limite, sem pudor. Anseio a cada dia pela minha partida deste mundo frio, de dores, prantos e ranger de dentes.
Não derrame lágrimas em seus olhos, a minha ventura futura proíbe e contrasta com tal tristeza. Sou feliz por saber que poucos padecimentos me restam nesta vida e que um prêmio de beleza inimaginável me aguarda no plano em que os anjos trafegam livremente, desprendidos das amarras cruas e gélidas do corpo carnal.
Quando eu a vi pela primeira vez, a minha musa, fiquei literalmente sem fala, sem movimento, sem ação. Meu coração estancou, como se uma fria estaca me fosse transpassada em apenas um segundo. Minha esposa com seu corpo lindo e quente aquecia-se sob as cobertas ao meu lado. Acreditava ser naquele tempo um dos mais felizes dos mortais; e talvez o fosse, tendo como ponto de partida a ótica limitada em que habita a vasta maioria dos meus infelizes pares humanos.
Dormia um sono profundo, digno das consciências santas. Criado dentro das vastas regalias da corte, não encontrei obstáculos na jornada terrena. Dediquei-me muito aos estudos, tendo a filosofia sendo o meu campo preferido de aplicação. As questões de finanças passaram ao largo, como sempre faziam os de minha ascendência, entregando a administração a notáveis e corretos senhores que por gerações contam de engordar e enriquecer os já faustosos cofres de minha família.
O amigo bem sabe disso tudo. Sabe também do meu enlace com Camila, a divina herdeira da boa família dos Antônio de Meneses. Tão ricos quanto o nosso pouco modesto clã. Nossas bodas duraram 7 dias, sendo comentadas por todos os recantos da Europa e até mesmo nas distantes colônias de Além Mar. Contei que O Rei quase me nomeou Governador de uma das Províncias do Brasil?
Gostaria de narrar essa história, como muitas outras, mas o tempo escorre pela ampulheta da vida e a vida, na outra vida, se aproxima a cada grão de areia que cai. Camila abandonou-me. Os criados abandonaram-me; ou fui eu que os expulsei? Sim, eu os expulsei. Somente não consegui por para fora esse velho teimoso do Lobato. Maldito, maldito! Se não fosse por ele e pelo seus bons tratos eu já teria morrido há muito tempo.
E por que, meu amigo, devo adiar a minha felicidade? Diga-me, há algum motivo aparente? Sei que minha tosse o preocupa. Estou bem, recuperei o fôlego. Sem água, sem água, por favor. Quero abreviar os meus últimos momentos.
Como lhe dizia, eu a vi primeiramente em um sonho. Peço-lhe que registre minha história. Você promete como meu último pedido, me bom e fiel amigo? Sei que é difícil olhar para o meu rosto assim cadavérico, se quiser não precisa...
Eu dormia quando me desprendi do físico e deslizei pelo quarto; pois este é o mover propício quando nossa alma se desloca pelo espaço. Camila dormia em paz ao meu lado. O seu éter repousava dentro do calabouço de carne. Nem sempre nossas almas deixam o corpo. Não sei explicar esses fenômenos. Apenas testemunho que, desde a infância, eu domino esta faculdade.
Conseguia sair do meu corpo com facilidade e testemunhar todos os eventos que ocorriam em nossa casa durante a hora do repouso. Guardava o segredo de meu pai que saía, sorrateiramente, e se deitava com as inúmeras serviçais. Tanto em carne como em éter. Minha mãe, ao contrário, ou permanecia enclausurada em seu vaso físico, ou se dirigia à capela. Outras vezes nos visitava em nosso quartos, velando por cada filho. Ela era um anjo, assim como Camila.
E isso, meu amigo, consiste em uma das minhas maiores desventuras. Sei que Camila me é fiel. Sei que me ama. Sei que é uma pessoa na qual posso confiar com todas as forças e entranhas do meu ser, mas quem é aquele que comanda as energias do coração? Como escolher a quem devemos amar? O coração, meu amigo, esse órgão falível e tolo, que nos põe a perder é também o que nos mantém vivos ou que nos conduz à morte, evento este que comigo agora sucede.
Peço-lhe ainda mais, já abusando de vossa amizade e sinceridade, solicito que, ao término do período de luto, que despose a doce Camila. Não se mostre constrangido. Sei há muito da afeição sincera que guarda por ela, mesmo antes do nosso enlace matrimonial. Também conheço que seu afastamento de nosso convívio, nestes últimos tempos, deu-se por não saber conciliar os dois sentimentos: o amor por ela e a amizade por minha pessoa. Foste fiel, eu o sei graças à minha estranha faculdade e por isso confio em ti.
Em uma noite de inverno, fria como esta, eu andava pelo quarto e apreciava o meu corpo dormindo ao lado de Camila. A beleza interior e física de Camila vos é conhecida, não preciso esmiuçar-me em detalhes. Fomos felizes até aquela noite, e talvez o fôssemos ainda hoje, se eu o quisesse. Senti, naquele momento, que éramos observados. Afastei-me do ponto em que estava quase encostado à parede diante da cama e me virei. Que susto eu tive. Por mais que me esforce não sei se conseguirei narrar a augusta beleza daquela figura.
Aos fundos, sentada no espaço, trajando um leve vestido, quase uma túnica, com franjas sobre a testa e um penteado que nenhuma das mulheres de nossa sociedade jamais conseguirá imitar, eu vi uma criatura translúcida. Era uma mulher com os mais finos, belos e impressionantes traços que eu jamais vira. Naquele instante eu só conseguia admirá-la. Ela não sorria, não manifestava, aparentemente, qualquer emoção, apenas me olhava. Eu senti o mais profundo amor, a mais intensa atração por aquela figura espectral.
Sua beleza era angelical, transcendendo a de qualquer outra mulher que pise sobre a terra. Seus olhos e cabelos e pele não tinham cor. Dentro do meu coração imaginei os cabelos loiros, olhos azuis e uma tez branca, alva, macia e quente. Aquela visão representou o fim do meu enlace matrimonial e do meu desejo por continuar esta existência. Se for verdade que muitas naus chocaram-se contra rochedos graças ao canto das sereias - que tantos homens fez perder, verdade maior é que minha musa supera a todas; pois sem abrir sequer a boca encantou-me perdidamente.
Passei a noite toda admirando aquela figura que nada me dizia, que não se movia, mas que sei que era viva, assim como você e eu.
Despertei querendo voltar a dormir e novamente encontrar-me com ela. Adentrei em um mutismo sem precedentes. Imediatamente, como se atingido por uma doença fatal, perdi toda a vontade de alimentar-me, de beber, ou de executar as minhas atividades cotidianas e triviais.
Sinto, sinto muitíssimo, devido à paixão intensa que descobri naquela figura, ter cravado uma decepção tão profunda no seio de Camila. Ela não conseguia entender a minha súbita transformação. Não havia minuto sequer em que eu não parasse de pensar naquela mulher. Seus olhos, nariz, boca, sobrancelhas, tudo perfeito, absolutamente irretocáveis. Sei que ela era minha, somente minha, mas que para tê-la devia mudar de plano, deixando de existir para este planeta.
Minha resolução foi rápida. No primeiro dia não consegui falar com Camila e nem com ninguém. Passei o dia sem tocar o dedo em qualquer líquido ou refeição. Por duas vezes quase tombei nas escadas. Ao alvorecer deitei-me ansioso, tendo ao meu lado a luminosa e radiante presença de minha adorável esposa, que debulhava-se em lágrimas, querendo saber se era sua a culpa por minha inexplicável tristeza.
Camila, meiga Camila. Se pudesse dizer-te naquele momento a verdade. Por certo tomar-me-ia por um louco e sairia em busca de auxílio profissional. Ela, nem ninguém, poderia compreender a natureza dos meus íntimos sentimentos.
Chorosa, deitou-se ao meu lado. Pedi, inconscientemente, dentro do foro íntimo no qual abrigava-me para que a sombra daquele sonho desaparecesse. Adormeci. Quando despertei em meu éter eis que lá estava ela, radiante, bela, fulgurante. Caí de joelhos aos seus pés. Implorei para que me dissesse o seu nome. Declamei todos os poemas conhecidos e criei tantos outros. Uma chuva de pétalas desabou sobre nós.
Ao voltar ao mundo de sombras e dores, no raiar do dia seguinte, aumentou minha decisão em abandonar as vestes duras deste mundo. Camila desesperou-se. Mandou chamar o médico, os familiares. Minha fraqueza acentuou-se. Já não podia levantar da cama e aí, a santa recompensa: podia ver a minha musa mesmo acordado. Ela, altiva, como se sentada no espaço a balançar em um balanço invisível, com as pernas cruzadas na altura do tornozelo, pairava diante dos meus olhos. Vejam, vejam, dizia eu. Ninguém a via.
Camila caiu em choros convulsivos. Criou-se uma romaria em casa. A todos eu comecei a escorraçar, pois queriam que eu voltasse à vida, à razão. Pedi um momento de solidão com Camila e abri o meu coração. Agradeci pela boa companhia, pela fidelidade e pelo amor, ela quase desfaleceu ao saber que meu coração não mais lhe pertencia. Eu amava outra, de modo inexplicável, não podia mais viver sem ela e assim deveria partir ao seu encontro.
Minha esposa sofreu. Eu sabia disso. Mas o amigo precisa entender a força colossal desse grande amor. Definhei rapidamente, como bem o sabe. Tenho agora poucas horas, ou minutos, talvez segundos. Ela está aqui, meu amigo. Veja como é linda, balançando, balançando...