Inexplicável
Sempre me interessei por assuntos que envolvam mistérios e sobrenatural. Gosto de meditar nas coisas que aparentemente não tem explicação. Por isso resolvi contar aqui histórias que acredito serem reais. Quer seja porque aconteceram comigo, quer seja porque aconteceram com pessoas que confio que não mentiriam para mim.
Nem todas são histórias verdadeiras, algumas são sonhadas. Mas por serem tão absurdas e vívidas me intrigam da mesma forma.
Não florearei e nem acrescentarei nada, apenas transcreverei os fatos como me foram narrados, ou como ocorreram. Desculpem se ficar sem sentido, ou se acabar sem explicações. Eu não as possuo. Não saberia explicar mesmo que quisesse. Deixo aos leitores as conclusões e explicações. Se alguém que me lê tiver como explicar ficaria muito agradecida.
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Outra dimensão?
Quando eu era criança morava numa vila pobre com casas de madeira em terrenos sem muros. Tínhamos vários vizinhos que eram amigos e brincávamos juntos sempre. As vezes nos reuníamos na casa de um deles para ouvir histórias ou simplesmente para conversar a beira do fogo nas tardes e noites frias do inverno. Uma dessas noites, quando eu tinha em torno de dez ou onze anos, não me lembro na verdade a idade, mas a a julgar pela época e pelo tempo que vivi ali estimo que seja em torno disso, talvez um pouco mais. Enfim eu era uma criança, mas com idade bastante para entender que o que se passou comigo não foi algo natural ou que as pessoas a minha volta entenderiam. Estava na casa de um de nossos vizinhos. Era a casa de uma família de negros. Moravam ali várias gerações, e pelo que me lembro não tinha um pai, apenas as mulheres sofridas e lutadoras que criavam seus filhos sobrinhos e netos todos juntos. A casa era grande, e a família numerosa. A mais velha era dona Emília. Eu amava comer a comida dela, ouvir-lhe contar histórias... vivera no tempo da escravidão, nasceu livre, mas de pais escravos. Ela usava saias rodadas e estampadas sobrepostas e tinha sempre um lenço colorido na cabeça de cabelos bastos e rebeldes. Sua cozinha possuía um fogão a lenha, onde lavava a louça nos dias frios, ela colocava uma bacia de alumínio em cima da chapa do fogão e lavava a louça na água quente. As vezes adormecia em pé com as mãos dentro da panela, embalada pelo aconchego do calor do fogo. O frio era severo nessa época e dona Emília costumava colocar uma lata com brasas no centro da cozinha de terra batida. Nós nos sentamos em redor dessa lata de brasas para ouvir as histórias que os adultos contariam.
Eu estava sentada no chão, com várias pessoas ao meu lado. Formávamos um círculo misto de crianças e adultos. A casa estava em penumbra, iluminada parcamente pela chama das brasas e pelas lamparinas a querosene, espalhadas pela cozinha. Eles não tinham luz elétrica. As lamparinas formavam sombras tremeluzentes que faziam as coisas parecer dançar ao ritmo das chamas. Estávamos aguardando dona Emília se sentar na cadeira que lhe era destinada e enquanto isso, uma pequena e respeitosa algazarra de vozes misturadas se fazia ouvir. Eu em geral ficava em silêncio apenas observando tudo e ouvindo. Sempre fui mais de ouvir que de falar.
O que me aconteceu aquela noite marcou minha memória fortemente, como se meu cérebro tivesse fotografado a cena. Com certeza se deve ao fato tão inusitado quanto estranho, mesmo para uma criança.
Vi materializar-se atrás de mim um pé negro e áspero, descalço, e com as solas grossas e esbranquiçadas. O pé era enorme, como pertencendo a um negro grande e forte. Apareceu apenas o pé e uma parte da perna, logo acima da canela. Foi apenas uma pisada. Uma pisada forte e decidida, que, com certeza estava sendo dada do lado de lá. De uma outra dimensão ou espaço tempo. Não estava nos planos aparecer ali e nem eu tinha permissão de ver. Talvez o dono daquele pé nem mesmo teve a consciência de que fora visto por uma menininha branca que por acaso estava ali sentada naquela noite fria num antigo casarão. Eu percebi na hora que era uma coisa sobrenatural, que não acreditariam em mim, mas o espanto foi tanto que exclamei:
_ Vi um pé, um pé preto aqui atrás de mim!
As pessoas riram.
-Claro que você viu um pé preto, está cercada de gente preta.
Nunca me esqueci da cena nem do pé. Talvez um dia seja esclarecido para mim o que ocorreu. Não creio que fosse um fantasma. Acredito mais que foi um cruzamento de dimensões que coexistem lado a lado.
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O duende da lâmpada
Eu morava em uma casa grande, velha com vários quartos, e assoalho elevado. As paredes rangiam, talvez querendo me contar seus segredos. Vi algumas coisas sinistras naquela velha casa. Incrivelmente não me assustavam. Uma vez estava balançando as pernas dependuradas sobre o assoalho e senti o toque macio e quente de uma mão invisível nas minhas pernas. Procurei a pessoa que fizera aquilo, mas não vi ninguém.
Em outra ocasião, estava deitada de costas na cama, olhando o telhado sem forro. As telhas tinham as inscrições da fabriqueta que as fizeram. Eu gostava de ficar fitando o telhado, e os caibros de madeira que as seguravam. Tinha uma brincadeira que eu criara: olhava para a lâmpada acesa no teto por alguns segundos e depois focava em algum outro ponto para ver a mancha colorida que formava. Gostava de ir para a cama antes dos demais para ficar um tempo com a luz acesa, a fim de brincar de levar a mancha colorida para o ponto mais alto do telhado. Em minha imaginação eu voava com a mancha para onde olhasse. Era divertido.
Nessa noite recebíamos a visita do noivo de minha irmã mais velha, que viera de São Paulo para passar uns dias em nossa casa. Fui para o quarto de minha mãe e me deitei na cama, olhando o teto e escutando as conversas animadas na sala de visitas.
Como já disse, nossa velha casa era de madeira e os cômodos não possuíam portas. Então conseguia ouvir a conversa nitidamente. Eu estava bem acordada. Me lembro bem da cena.
Eu estava deitada de costas e olhava para a luz pendurada no teto; de repente saiu da luz uma criaturinha colorida, com as mesmas cores e texturas da mancha que ficava em meus olhos. A diferença era que essa tinha a forma de um duende e eu não conseguia controla-lo. Ele caminhou com suas perninhas até a borda do telhado e sumiu no beiral das telhas. Na época eu nunca havia ouvido falar em duendes, então associei a imagem a um Papai Noel. Passei a me referir a ele como o “Papainoelzinho da Lâmpada”. Embora não fosse parecido com um papai Noel era minha única e mais próxima referência.
Ele era pequeno, com uns 20 centímetros mais ou menos. Carregava um saco verde nas costas. Sua roupa era vermelha e laranja. Tinha uma bota marrom. Era translúcido, e caminhava devagar, sem medo de ser visto por mim.
Fiquei parada olhando fixo, temendo perde-lo de vista, não emiti nenhum som, prendi a respiração. Queria gritar para que os outros que estavam na sala ao lado também pudessem vê-lo. Mas não me atrevia a me mover. Sabia que estava diante de algo fantástico e inacreditável. Assim que ele sumiu de vista, corri para a sala e disse: -Vi um papai Noel no telhado, que saiu da lâmpada!
As pessoas na sala riram. Mas eu continuei firme, pois sabia o que eu tinha visto. Meu pai confiava que eu não mentia, mas tentou me consolar, dizendo que se tratara de um sonho. Eu sabia que estava acordada.
Minha frustração foi não ter podido provar que eu realmente vira algo que não tinha explicação.
Hoje me refiro a ele como o Duende da Lâmpada. Sei agora que ele era bem parecido com os duendes dos desenhos animados.
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A moça do retrato
Meu pai é filho de um casal de italianos. Meus avós vieram ao Brasil ainda crianças e moravam no interior de São Paulo, trabalhando em fazendas de café.
Naquela época os casais tinham vários filhos e meu pai possuía muitos irmãos e irmãs.
O irmão caçula de meu pai era uma pessoinha bem simples e pouco inteligente. Ele não gostava de banhos, e então os irmãos mais velhos jogavam-no no rio no final do dia para que se banhasse.
Uma ocasião enquanto almoçavam a mesa, com visitas, achou uma pequena lagarta na salada e imediatamente e sem nenhum cuidado anunciou o bichinho na frente de todos. Minha avó envergonhada deu-lhe uma bronca e disse-lhe que não era bonito falar para as pessoas a mesa sobre coisas nojentas. Que ele deveria ter guardado para si. Chateado e cabisbaixo saiu se desculpando e dizendo que não faria mais isso.
Dias depois meu avô constatou tristemente que as carnes deixadas ao sol para secarem tinham sido contaminadas por moscas. Elas botaram seus ovos na carne e esses viraram larvas que a devoraram , pondo tudo a perder.
Meu avô com as mãos na cabeça lamentava o fato de ninguém ter percebido a tempo de salvar pelo menos parte da carne de sol.
Meu tio que ia passando por perto parou, botou as mãozinhas na cintura e disse calmamente:
_ Eu vi as larvas, mas mamãe disse que não deveria falar para ninguém quando visse bichos na comida!
Em outra ocasião meu avô comprou um arado novo para a lavoura. Era de madeira e custara caro para eles na época, sendo motivo de orgulho da família. Em uma manhã o arado apareceu todo cortado a machado.
A preciosa ferramenta jazia imprestável no chão.
Estavam todos da família em redor do arado moribundo, conjecturando em quem poderia ter cometido tamanha atrocidade. Meu tio se aproximou do grupo e disse orgulhoso de si mesmo:
_Fui eu que cortei.
_Porque??!! Exclamaram todos ao mesmo tempo.
_Para ver de que madeira era. Respondeu simplesmente...
Quando meu pai e meus tios chegaram a juventude, meu avô montou para eles uma pequena loja de emoldurar retratos. Eles mesmo faziam as molduras de madeira para os espelhos e fotos pintadas, que era moda na época. Uma de suas clientes, trouxe um retrato dela para ser emoldurado e fez questão de deixar a moldura paga. Quando a moldura ficou pronta ela havia se mudado para a capital paulista e não lhes foi possível realizar a entrega. O quadro com a foto da moça ficava como a espreita-los e eles se sentiam culpados por terem recebido por algo que a cliente não pudera receber. O quadro ficou anos lá exposto a espera de que sua dona voltasse para busca-lo. Um dia tiveram que ir até São Paulo, e com as passagens de ônibus compradas puseram-se a arrumar a mala. Meu tio foi até a loja, pegou o retrato da moça, e se empenhou em tirar a poeira. Os irmãos lhe indagaram? O que você vai fazer com o retrato da moça? Ele respondeu sem tirar os olhos da foto. Vou levar na mala, quem sabe não a encontramos por lá. Meus tios riram dele, pois todos sabiam que a capital era uma grande e populosa cidade e que a chance de encontrarem-se com a dona do retrato era remota. Muito remota mesmo. Mas ele irredutível e teimoso como era, colocou o retrato na mala, e levou-o com ele,não sem ouvir a viajem inteira o quanto estava sendo estúpido.
Quando chegaram na rodoviária, pegaram suas bagagens e se dirigiram ao hotel onde se hospedariam. Iam caminhando lado a lado cada qual segurando sua malinha de viagem quando ao dobrar a primeira esquina, eis que dão de cara com a moça do retrato. Meu tio abriu sua mala ali mesmo e foi logo dizendo: _ Não disse que encontraríamos com ela?
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Um carona fantasma?
Meu pai era um homem honesto. Dessas honestidades raras e admiráveis. Sempre que contava uma história tomava o cuidado de não ser tendencioso ou forçar o ouvinte a acreditar usando de artifícios corriqueiramente usados por narradores hiperbólicos.
Ele se limitava a narrar a história da forma como ocorrera, sem acrescer nada. Acreditassem se quisessem. Uma noite minha mãe pediu que nos contasse a história do carona fantasma. Ele rindo disse: _ Não sei se era um fantasma. Mas que foi esquisito foi.
Estava tarde da noite, e eu e meus companheiros jogávamos sinuca num bar. A cidade era pequena com ruas sem asfalto, e o bar era retirado do centro, afastado e escondido entre as matas da estrada principal, nos arredores da cidade...
Meu pai possuía uma moto pequena e não estava preocupado em voltar sozinho pela estrada escura e solitária.
Continuou ele contando: Fiquei por último, conversando com o dono do bar e tomando mais uma dose de conhaque. Quando percebi que estava tarde e que todos já haviam ido, peguei meu chapéu e me dirigi para a moto estacionada na beira da estrada. Estava virando a chave da moto, e me preparando para sair. A rua em plena escuridão. Vi aproximar-se um camarada que me chamou pelo nome. Mas que eu não reconheci. Ele se aproximou devagar e disse-me:
_ Boa noite Frederico. Pode me dar uma carona até a cidade?
_Sim claro, pode subir. Disse-lhe eu, sem pensar muito...
O homem subiu e sem dizer mais nada foi com meu pai na moto até a entrada da cidade, numa bifurcação da estrada onde um dos caminhos dava para o pequeno e antigo cemitério local e o outro caminho levava a cidade. Me lembro bem desse cemitério. Muitos de meus parentes estão enterrados lá. Sempre ia visitar os túmulos na época de finados com meu pai e minha mãe. Me lembro inclusive da placa sobre o enorme portão de ferro onde está escrito a enigmática frase: “Ontem éramos um de vós, amanhã serás um de nós”. Essa frase sempre me provocava calafrios, quando íamos até lá.
Mas voltando a história de meu pai, o homem desceu da moto, colocou o chapéu na cabeça e disse apenas:
_É aqui que eu fico Frederico.
Meu pai continuou seu caminho, e só depois se deu conta que por ali não haviam casas. E que aquela pequena estrada subia a colina e dava de frente ao cemitério.
_ Será que era uma pessoa morta? Perguntava assustada.
Meu pai dizia apenas:
_ Não sei se era, mas eu nunca tinha visto aquele homem e nunca mais vi. Mas ele sabia meu nome.
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A coroa de flores roxas.
Minha mãe tinha vários irmãos, sobrinhos e sobrinhas.
Um desses sobrinhos era sem dúvidas especial, tanto para ela, quanto para minha avó e tia. Ele era filho da irmã mais velha de mamãe e morava na cidade vizinha, distante apenas uns 50 km de onde nós morávamos. Em datas especiais minha tia vinha com seus muitos filhos se hospedar na casa da mãe dela, minha avó. Me lembro que minha tia, e minha avó disputavam entre si a hospedagem da família. Minha tia claro preferia ficar na mãe dela. Mas meu primo assim que se desfazia das conveniências sociais, corria para casa de mamãe. Minha mãe tinha a vantagem de ter filhas da idade dele, que por consequência tinham amigas também da idade dele. Minha mãe, toda feliz já ia arrumando um lugarzinho para ele dormir na sala. Tarde da noite éramos acordadas por minha avó e minha tia (mãe dele) que chegavam bravas se dizendo preocupadas por ele não ter voltado. Claro que no fundo sabiam que ele estava em nossa casa. Mas minha avó ciumenta queria que ele fosse dormir na casa dela.
Talvez sentissem que não o teriam por muito tempo.
Meu primo adoeceu de uma grave doença: leucemia. Se hoje em dia a cura é complicada, naquela época era quase impossível e ainda mais numa pequena cidade do interior do Paraná, mais de quarenta anos atrás.
Ele logo começou a ficar bastante tempo nos hospitais. Na verdade seus últimos dias de vida foram em um hospital. Minha mãe o visitava com frequência. E ela sempre nos conta como foi difícil vê-lo daquela forma. Seu corpo suava, sob efeito dos medicamentos, que serviam apenas para amenizar o sofrimento. Seu suor era como melado de açúcar, dizia. Em uma dessas visitas ele lhe perguntou:
_Tia, a senhora veio me trazer uma coroa de flor roxa?
_Claro que não, porque eu lhe traria uma coroa assim?
_Há... tia, hoje eu recebi a visita do (não me lembro o nome do senhor) e ele estava usando uma coroa dessas. E eu achei muito linda...
Claro que ele estava delirando, sua doença era terminal, ele morreria logo depois. Mas o que impressionara minha mãe era que o senhor que ele dissera que o visitara havia falecido naqueles dias, e sobre seu caixão haviam colocado uma coroa de flores roxas. Meu primo não sabia da morte do homem porque obviamente não levavam para ele as más notícias de fora.
Meu tio e minha tia jamais se recuperaram dessa perda, financeiramente ou psicologicamente. Nem o resto da família.
Eu era criança na época, não entendia o que acontecia. Mas me lembro de todas as histórias estranhas que envolviam essa tragédia familiar.
Meu tio teve que vender todas as suas coisas na tentativa de salvar meu primo. O tratamento era caro e ineficaz, mas ele nunca deixou faltar o que a medicina poderia fazer, por falta de dinheiro. Quando ele morreu meu tio já não tinha mais nada.
E estava preocupado com o funeral. Estava devendo o caixão e tudo que envolve o processo doloroso de enterrar um filho jovem. Foi quando uma senhora, dona do posto de gasolina da cidadezinha que moravam lhe procurou impressionada.
_Seu Francisco, quero pagar pelo funeral de seu filho.
_Não, não posso aceitar isso. Eu agradeço, mas não.
_Me deixe pagar seu Francisco, essa noite tive um sonho, e no sonho me era pedido que eu pagasse pelo funeral de seu filho, caso contrário eu pagaria pelo funeral do meu filho.
Devido a insistência dela, meu tio concordou.
Dias depois um carro em alta velocidade, se desgovernou e bateu numa bomba de combustível, que se incendiou. O filho da mulher estava ao lado da bomba. E se salvou da morte por centímetros.
Quem poderia explicar tantas “coincidências”?
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Vidas passadas?
Eu tenho cinco irmãs, ou seja somos em seis. Ou três pares. Crescemos aos pares. Minha irmã número um é um ano mais velha que minha irmã número dois, e minha irmã número três é um ano mais velha que a minha irmã número quatro. Sendo assim nos aproximamos duas a duas. Eu e minha irmã caçula temos uma diferença de dois anos. Então nós éramos inseparáveis.
Ela tinha uns cinco anos na época. E eu, ela e meu pai estávamos indo para uma cidade vizinha. Não me lembro fazer o que, pois isso foi a muitos anos. Ao passarmos por uma placa na estrada minha irmãzinha leu a placa. O detalhe era que ela não sabia ler. Eu logo pensei que ela havia inventado qualquer coisa para dizer. E revirei os olhos, e ri.
Minha irmã enquadrou a placa com as mãozinhas como se a emoldurasse com os dedinhos magros e disse:
_ Olha papai! Ali está escrito: “Jacarezinho, comunismo de Cuba.”
Eu já sabia ler, sabia que realmente estava escrito: “Bem vindos a Jacarezinho”. Mas, não fazia a menor ideia do seria Cuba ou comunismo.
Meu pai ficou mais impressionado, por que sabia que nessa pequena cidade, grupos de defensores do comunismo se reuniam escondidos, na época em que eram perseguidos pelo regime militar.
Minha irmã, claro, não tinha a menor ideia disso. Nem o que era comunismo e muito menos da existência de Cuba.
A pergunta que não saia da cabeça de meu pai era:
De onde ela tirou isso?
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Drogas ou demônios
Quando eu era adolescente, ali entre os quinze e dezesseis anos, conheci um rapaz, filho de uma vizinha crente, que morara em Curitiba, e estava de volta em casa. Ele devia ter uns 18 ou 19 anos. Logo nos conhecemos e ficamos amigos.
Ele era diferente dos outros rapazes que eu conhecia, era mais velho, já havia morado fora e tinha um belo sorriso. Além disso era seguro de si e muito confiante. Eu não sabia, mas contou-me que entre os rapazes da vizinhança havia uma disputa para saber quem conseguiria me beijar primeiro. Na verdade não sei se era verdade dele, ou uma técnica nova de conquista. Mas me disse que pretendia ganhar a disputa. Eu ri muito disso e nunca deixei que me beijasse. Embora ele fosse muito bonito, não conquistara a minha confiança, não sei se porque me disse isso, ou se porque eu já ficara sabendo que ele tinha graves problemas com drogas.
Sempre tive medo do efeito das drogas, lera vários livros sobre o assunto.
Ele não desistia, sempre me procurava, me buscava a escola, em dias de chuva ficava na calçada me esperando com um guarda-chuvas para me proteger. Eu gostava de conversar com ele. Era inteligente e atencioso.
Sua mãe na tentativa de tirá-lo do vício o levou para a igreja dela. Ele ficava realmente maravilhoso em seu terno de crente, com sua bíblia nas mãos.
As meninas da igreja logo o cercaram com atenções, afinal não era todo dia que um rapaz bonito entrava pra igreja rigorosa que frequentavam.
Eu me afastei dele nesse período, um pouco em respeito a nova realidade dele e um pouco porque me mudei para o outro lado da cidade.
Fiquei meses sem vê-lo, mas voltava sempre a meu antigo bairro para visitar minha amiga que ainda morara ali.
Numa dessas visitas, passei em frente a casa dele, e ele estava na porta. Apesar do sol escaldante e do calor insuportável, a casa estava com todas as janelas fechadas e a escuridão podia ser vista pela fresta da porta entreaberta. Ele estava segurando a porta com uma das mãos e com a outra fazia um sinal suspeito me chamando para entrar. Seus olhos estavam fechados, não sei se para evitar a claridade, mas ele parecia me ver assim mesmo.
Eu fiquei com muito medo dessa atitude dele, parecia estar tomado por algum espírito. Estava muito diferente do sorridente amigo que me esperava na porta da escola todos os dias.
Corri e tentei ignorar seus chamados sussurrantes para que eu fosse até sua casa. Minha indignação era maior porque eu sabia que ele estava sozinho lá.
Acho que minha moral me salvou, eu jamais entraria na casa de um rapaz estando ele sozinho ali. Explico porque digo que me salvou.
Morávamos em uma cidade onde havia bem no meio um enorme morro, cheio de mata nativa. Árvores enormes e capim alto.
Uma tarde foi dado a notícia que um garotinho havia sido encontrado assassinado na mata do morro. Seu pescoço havia sido cortado com faca.
Todos se perguntavam quem teria feito tamanha atrocidade com uma criança inocente.
O pai do menino era um conhecido e querido mecânico e não tinha inimigos ou alguém que pudesse querer feri-lo.
O menino havia saído para caçar passarinho na mata e não voltara, seu pai foi procura-lo e encontrou-o em uma poça de sangue com a garganta cortada.
A cidade ficou aflita, e todos pensávamos que alguém de fora havia feito aquilo. Afinal todos se conheciam e não passava pela cabeça de ninguém quem poderia ter feito aquilo. A polícia não tinha qualquer pista que pudesse levar ao assassino.
Em um apelo pelo rádio, pediram que se alguém se lembrasse de alguma coisa diferente que acontecera aquele dia, que era para procurá-los, pois mesmo que aparentemente não tivesse a ver com o caso poderia ser uma pista para eles.
Eu pensava comigo, que quer que fosse era doente. E acho que no fundo eu sentia pena do assassino. Algo em mim tinha compaixão por aquela pessoa. Acho que eu era a única.
Quando finalmente descobriram o assassino, me deram um jornal com a notícia.
_Rosa, quer ver o assassino do menino do morro?
Peguei o jornal curiosa e quase cai das pernas, quando vi estampado na capa do jornal a foto de meu amigo, com as duas mãos presas por uma algema, olhando para o chão.
Soltei um grito:
_Renato??!!
_Conhece ele? Perguntou-me meu colega de trabalho...
Imediatamente me lembrei da cena sombria na porta da casa dele.
Uma pessoa da igreja do Renato, lembrou-se que naquele dia, ele aparecera na casa dela, que ficava bem aos pés do morro, com as mãos e roupas sujas de sangue e pedira para lavar –se.
Ela o indagou sobre o sangue ele lhe dissera que havia matado um coelho na mata.
A polícia foi até a casa dele e encontrou a arma do crime e as roupas sujas de sangue que ele usara, enterrados no quintal.
Ao ser preso, foi –lhe perguntado se tinha alguma coisa contra o menino ou o pai dele.
Renato respondeu simplesmente que não. Apenas precisava matar alguém a pedido de Deus. Deus lhe pedira um sacrifício. Disse que tentou sacrificar várias pessoas, mas havia conseguido. Um dia antes estivera na mata do morro a espreita para matar, mas apareceu dois meninos e ele não poderia pegar os dois ao mesmo tempo.
No dia seguinte voltara lá e o menino aparecera só e então ele o matou. Simples assim.
Acredito que ainda esteja preso, anos depois vi uma foto dele no jornal. Estava com as unhas, cabelos e barba compridos. Suas unhas pareciam com garras. E sua aparência nada tinha a ver com o garoto sorridente e descontraído que eu conhecera.