UMA ESTRANHA EPISTAXE
UMA ESTRANHA EPISTAXE
Estava A Drª Zélia, minha mulher, de plantão no Hospital Municipal Souza Aguiar, como médica clinica geral do staff da equipe Dr Cata Preta, que trabalhava em três horários diferentes, durante a semana – de manhã, em um dia, à tarde em outro e à noite, ainda em outro – o que,embora assim à primeira vista não pareça, desorganiza qualquer um. Para piorar o fato, estava lotada no pronto socorro, e como clínica socorrista, integrando a escala de rodizio do grupo responsável pela triagem, ou seja, por peneirar os pacientes, separando os que realmente eram casos de emergência, dos que não eram, sendo estes últimos encaminhados ao serviço de ambulatório. Estava ela assim, jogada às feras, por assim dizer, porque além do excesso do trabalho em si, não era muito fácil lidar com os pacientes, até mesmo porque muitos deles, que eram diagnosticados como casos para ambulatório, e não casos de emergência, não aceitavam aquilo. Na época, o Souza Aguiar tinha aquele que era considerado o maior e melhor serviço de emergência da América do Sul, e os pacientes sabiam disto, ou pelo menos pressentiam esse status. Chegar lá, certo de que o seu caso era de emergência, e ser enviado para o ambulatório, nem sempre era aceito pelas pessoas, por mais que os médicos estivessem bem fundamentos para resolver aquilo. E qual era a solução para se proteger o infeliz socorrista de plantão que caísse na “imprudência” de contrariar o equivocado paciente? Seguranças, que às vezes tinham de pedir reforço à Polícia Militar, porque não era incomum a coisa ficar preta, e os pacientes ficarem agressivos, porque cismavam de que eram autênticos casos de emergência, enquanto o socorrista, com perfeito conhecimento de causa, dizia o contrário.
Num desses dias de sua rotina de trabalho, Zélia recebeu um cidadão que, alarmado, reclamava de um sangramento no nariz, e exigia ser atendido na emergência, por um médico otorrino – especialista, especialista em nariz, ouvido e garganta – e internado. Como era de sua prática, ela realizou um exame bastante detalhado, mas não constatou nenhuma anormalidade. Em outra palavras, o cidadão não apresentava, naquele momento, nenhum sangramento pelo nariz. Aparentemente, tratava-se de uma epistaxe, ou seja, um sangramento nasal, comum, nada grave, em geral decorrente da ruptura de pequenos capilares, e que se origina, portanto, nas próprias fossas nasais. E não uma hemorragia nasal, que é o sangramento que se exterioriza pelas nasais, independentemente da origem, da causa inicial. Este sim, poderia ser grave. Decidiu encaminhá-lo ao atendimento em ambulatório, para averiguação e, conforme o caso, tratamento. Ele ficou muito contrariado, e insistiu que deveria ir para a emergência
— Mas meu senhor — explicou a Dra. Zélia — acabei de examiná-lo e não vejo nenhum sangramento no seu nariz. Não é um caso para a emergência, fique tranquilo.
— Olha doutora — respondeu o paciente, já alterado — toda a vez que eu vou evacuar, ao sentar no vaso e fazer esforço, a minha narina esquerda sangra abundantemente.
— Nesse momento nenhuma das duas narinas está sangrando, senhor, nem a direita, nem a esquerda. Quando aconteceu esse sangramento?
— Pois é doutora, este é o problema. Eu só sangro pela narina esquerda, e somente quando estou sentado no vaso e faço esforço. E é um sangramento abundante! Isso está se repetindo há um certo tempo...
Zélia, então, com toda a paciência que pôde reunir, perguntou-lhe havia quanto tempo que aquilo estava acontecendo.
— Sei lá, há uns dois ou três meses — calculou ele — desde que minha mulher faleceu, de câncer, isso não me larga. Eu não aguento mais! Já me disserem que isto é psicológico, mas como não sou maluco, eu sei que preciso mesmo é de ser atendido pelo médico de nariz, de plantão neste hospital.
Zélia apenas suspirou, como que para reunir mais forças e paciência e tentou explicar novamente:
— Olha senhor, nós só estamos permitindo que subam para a emergência os pacientes que realmente estejam precisando desse tipo de atendimento, o que não é o seu caso. Neste momento, o senhor está perfeitamente bem, sem sangramento algum. Portanto, o seu caso realmente não é de emergência.
Percebendo que não conseguiria mesmo ser atendido na emergência, o paciente foi tomado de fúria e partiu para cima dela, aos berros:
— Cumequié, cumequié? — gritava, transtornado — como ousa impedir que eu seja atendido por um médico da emergência? Eu pago meus impostos, pago seu salário. Quero ser atendido na emergência agora mesmo! Não arredo o pé daqui até ser atendido!
Apesar daqueles gritos, que ecoavam por todo hospital, ela ainda tentou convencê-lo, com a maior calma que pôde improvisar. Explicou que o médico responsável pela equipe havia dado ordens expressas, no sentido de só deixar subir pacientes graves — baleados, acidentados de qualquer tipo, enfartados, ou vítimas de edema agudo no pulmão, etc.
— O senhor me desculpe — continuou, pacientemente — mas eu já o examinei detalhadamente, cuidadosamente, e nesse momento o senhor não esta tendo sangramento por de nenhuma das narinas. Seu coração está em ritmo normal, seus pulmões também, sua pressão arterial é 120 x 80, portanto, normal. O seu caso pode ser atendido tranquilamente no ambulatório do otorrino. Basta marcar com antecedência pelo telefone — e indicou o número, que ficava em um cartaz bastante visível, afixado à parede.
O paciente entrou em uma crise de agressividade de botar medo, mas a essas alturas, o segurança José (conhecido como Zé Chulapa, só para se ter uma ideia da altura e da largura do vivente), preparou-se para agir, apenas aguardando o desenrolar do conflito ou uma simples ordem da socorrista. Embora fora de si, o cidadão guardava ainda uma pequena reserva de juízo, e ao perceber aquele armário humano, e convencer-se da irredutibilidade da Dra. Zélia, esbravejou um pouco mais e recuou. Mas nesse gesto, tentou arrancar o crachá de identificação funcional, onde estava escrito o nome da médica socorrista. Apesar de surpreendida, ela não deixou que ele tocasse o crachá:
— Se o senhor quiser anotar os meus dados, tudo bem, é o seu direito. Mas não tente mais arrancar de mim o meu crachá. O senhor pode ler tudo e anotar, se quiser.
Ele sorriu com alguma malícia e pediu que ela apenas ditasse os dados para ele. Tirou do bolso um lápis (Zélia notou que ele tinha também uma caneta, mas fez questão de utilizar o lápis), e anotou os dados todos, à medida em que ela os ditava. Mas não anotou o número do telefone. Já saindo dali, vociferou, em alto e bom som, para quem quisesse ouvir:
— A senhora vai se arrepender, doutora, não sabe com quem está falando, vai se arrepender!
Zélia apenas olhou para Zé Chulapa, o qual esperava ver em atitude pronta para expulsar do hospital o desaforado, mas surpreendeu-se com o que viu. O segurança estava assustado, encolhido num canto, como se fosse ele, Chulapa, o homem a ser expulso, e aquele o segurança, o grandalhão. Uma vez o homenzinho fora do hospital, tudo continuou a fluir normalmente e as coisas voltaram à sua movimentada rotina.
Terminado o plantão, Zélia voltou a casa normalmente. Ao chegar, precisou utilizar o vaso, antes do banho, e ao fazê-lo notou que alguma coisa escorria de seu nariz.
— Paulo, dê um pulinho aqui — chamou-me ela — abrindo ligeiramente a porta, enquanto me aguardava.
Ao chegar à porta do banheiro, constatei que ela sangrava abundantemente por uma das narinas. Justamente a narina esquerda! Minha esposa narrou-me rapidamente o que acontecera durante o plantão, dizendo-se estarrecida com a coincidência.
— Eu nunca, jamais sangrei pelo nariz em toda minha vida! — exclamou.
Realmente, era estranho. Mas eu aventei a possibilidade de uma sugestão muito bem plantada, mesmo sem querer, por aquele desagradável paciente, aliada ao estresse daquele dia a dia puxado, que era a sua rotina. Ela concordou com a cabeça, mas mantinha um semblante de dúvida e preocupação, que se desfez aos poucos, enquanto jantávamos e fomos ver um pouco de TV.
Aquilo durou por uma semana. Toda vez em que ela precisava ir ao vaso sanitário, e ao mínimo esforço, sangrava pela narina esquerda.
Até que, no sétimo dia, ela precisou usar o vaso no hospital mesmo, o que era raro ela fazer, já que só ia ao banheiro na intimidade de casa. Ao sair do banheiro, e voltar a seus afazeres, notou que, mais uma vez, sangrava pela narina esquerda. Zé Chulapa, que entrara na sala pra falar qualquer coisa com ela, viu aquilo e ficou apavorado, como ficara, no dia do incidente com o raivoso cidadão que sangrava pelo nariz. Como já o conhecia havia muito anos, a Dra Zélia falou-lhe dos sangramentos nos últimos dias, e Zé Chulapa ficou ainda mais assustado.
— A senhora não podia ter ditado o seu nome e número para aquele maluco, doutora, muito menos deixar que ele anotasse tudo com lápis.
Minha esposa sabia que Chulapa era metido nos candomblés, umbandas e catimbós da vida, e perguntou-lhe o que aquilo significava para ele e sua religiosidade.
— Ao ditar tudo pra ele, doutora, a senhora deu, pela própria voz e pelo próprio alento, um pouco de sua alma, para ele dominar e utilizar contra a senhora mesma. E anotando com o lápis, ele usou a forma correta para se escrever um feitiço.
Ato contínuo, Chulapa pediu para sair, durante uma meia-hora, ao cabo da qual voltou dizendo que foi até a igreja mais próxima “fazer minhas rezas”, e na volta trouxe uma vela de sete dias, recomendando que Zélia a acendesse em casa, num lugar seguro, e todos os dias orasse ao seu anjo da guarda, pedindo proteção, antes mesmo de ir para o hospital.
Já naquele dia, ela não sangrou mais pelo nariz, ao utilizar o vaso. E de lá pra cá, nunca mais teve nenhum episódio de sangramento nasal. Procurou ficar atenta a certas vulnerabilidades psicológicas que podem agir sobre nós, por ação voluntária ou involuntária de um sugestionador, principalmente se estamos esgotados mentalmente, o que pode nos tornar mais vulneráveis. Mas, por via das dúvidas, deixou queimar, por sete dias inteiros, a vela que ganhou de presente de Zé Chulapa, e nunca mais saiu de casa sem uma breve oração ao seu anjo da guarda.
Falei-lhe que aquilo dependia mais das convicções de cada um, e menos de sermos profissionais orientados por um pensamento científico, e que se aquilo lhe fazia bem, eu não via porque não praticar. Como se diz, se mal não faz...
Ela sorriu tranquila e respondeu-me citando um velho adágio espanhol, popularizado pela voz do personagem Sancho Pança, no memorável romance Dom Quixote de La Mancha, do grande Miguel de Cervantes:
— Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay...
Perfeito, melhor impossível! Eu mesmo não saberia concluir tão sabiamente essa história de uma estranha epistaxe...