PARTEIROS DE DEUSES (DOIS RIOS DISTANTES E UM SAGRADO JURAMENTO)
PARTEIROS DE DEUSES (DOIS RIOS DISTANTES E UM SAGRADO JURAMENTO)
Alguém já disse que a mais nobre forma de elogio e admiração é a dos poetas. Faz sentido. Para os antigos gregos — tanto nos tempos de Pitágoras, quanto nos de Platão — os poetas estavam entre as mais altas formas de encarnação. Abaixo, mesmo, só dos filósofos. SPoemas, portanto, estão entre as mais nobres formas de arte e, assim sendo, não são feitos para qualquer um. Só se escreve poesia para as musas, as amadas. Só se escreve poesia para os heróis, os deuses, os grandes feitos históricos. Fico então pensando... Por que ganhamos poemas, nós todos — meus colegas e eu, formandos em medicina da Universidade do Porto? Não houve festa de formatura — estávamos nos tempos revolucionários da Revolução dos Cravos, e não havia clima para isso. Mas que festa maior do que a celebração da amizade pela poesia? Talvez se refletirmos um pouco sobre Hipócrates — cognominado Pai da Medicina, e a quem é atribuído o juramento que fazemos ao final do curso — possamos entender porque merecemos essa honraria de homenagem poética em lugar da festa de formatura.
Nos tempos hipocráticos, ou nos que os antecederam imediatamente, a medicina tinha uma base espiritual. Cuidava-se da mente e do corpo do paciente, a fim de se prepará-lo para as iniciações. Episódios importantíssimos na vida grega, as iniciações eram momentos em que os recipiendários igualavam-se temporariamente aos deuses. Naqueles tempos, como hoje, tanto havia os materialistas — que acreditavam que tudo terminava com a morte, e que a alma era um produto do corpo, extinguindo-se com a extinção deste — como havia os espiritualistas, que tinham por crença a sobrevivência da alma, a qual precederia o corpo e continuaria depois que ele morresse e se desfizesse.
No entanto, em muito do pensamento grego antigo, a imortalidade da alma não era automática, como acredita a maioria dos espiritualistas de hoje. Segundo certas crenças da época, a imortalidade precisava ser conquistada. E de acordo com o que se acreditava no período, essa outorga só poderia ser realizada pelos deuses. E como, por sua vez, os deuses não viam os humanos com bons olhos, a iniciação tornava-se, dentre outras coisas, uma atividade em que, por seu esforço, os humanos igualavam-se aos deuses. E estes, reconhecendo-os, admiravam seu esforço e concediam a imortalidade.
As origens da medicina ocidental, portanto, baseiam-se no poder do médico e do sacerdote (na época os dois eram uma coisa só) de prepararem o aspirante para o encontro com os deuses (a iniciação), e a cura das doenças era uma forma de tornar cada um, digamos, mais apresentável às divindades, para que não se mostrassem a elas com o corpo e a mente trazendo o que consideravam a indignidade da doença. Um pouco como se fôssemos realmente deuses, apenas deuses caídos, e as cerimônias iniciáticas nos alçassem temporariamente a esse status, para que jamais nos esquecêssemos de nossa verdadeira natureza. Talvez por isto a pensadora russa Helena Petrovna Blavatsky tenha escrito que somos deuses e nos esquecemos disto...
Quando eu me formei em Medicina na Universidade do Porto, em Portugal, vivi um momento de grande realização, pois havia chegado, aos 19 anos de idade — proveniente da minha cidade natal, Volta Redonda — diretamente para a cidade do Porto, Era, então, novembro de 1969. E agora, aos 30 de julho de 1975, comunicavam-me que eu deveria passar na Secretaria da Faculdade de Medicina, a fim de assinar o meu diploma. Mas pouco mais de um ano antes, no dia 25 de Abril de 1974, com o soar da musica de Zeca Afonso, Grândola Vila Morena, anunciara-se aos quatro ventos o fim da ditadura salazarista que oprimiu o povo português com mão de ferro, por quarenta anos. Era a Revolução dos Cravos, a grande e histórica mudança no cenário político e social em Portugal. Muito bom, mas... Poxa, logo agora que, um ano depois, eu me formaria em medicina, após seis anos de longos e duros estudos... Mas, que problema poderia representar a Revolução? O inconveniente seria que, com a nova era que se espraiava sobre as terras lusas , algumas coisas seriam modificadas. As festas de formatura, por exemplo. Não haveria as tradicionais festas de formatura. Nem as cerimônias inerentes ao término do curso, também tradicionais, não só para a medicina mas para todos os cursos da Universidade do Porto. Haveria, sim, a tradicional queima das fitas, que no caso da medicina era de cor amarela, bem como a benção dos anéis de pedra de mesma cor. Cada um dos formandos seria homenageado com um poema. O meu já estava pronto: fora feito pelo meu colega Oliveira, e tinha por título Dois Rios Extremos. Uma alusão e uma homenagem ao fato de sermos originários, cada um dos dois, de localidades que levavam nomes de rios. Eu, do Estado do Rio de Janeiro; ele, do Estado do Rio Grande do Norte. Dois lugares distantes — extremos em sua distância, no imenso país que é o Brasil. Guardo comigo esse poema até hoje:
Dois Rios Extremos
Ao Paulão, de Volta Redonda
Nasci nas pastagens agrestes
Lá, nas profundezas do Jó
Sou mestiço audaz do Norte
Sou o poeta da sorte
Do Vale do Piancó
Misto da Tabajara
E do guerreiro Poty
Sou do país do café
Conheço muitas paragens
De Natal a Istambul
Foi na terra de Beethoven
Que trabalhei com o nobre
Tchê do Rio Grande do Sul
Dois Rios Grandes extremos
De um Brasil grandão
Que já assombra
Ligados por abraços fortes
A cuja força não me iludo
É o faixa preta do judô
Paulão de Volta Redonda
Dentre os amigos
Que tenho, formiguinha
È um dos primeiros
Aceite um abraço ardente
Do crioulo doido e valente
Que em você, exaltação
Sente do bom torrão brasileiro “Olé”
O desporto educação
Encontrou no faixa preta Paulão
Representante sem igual
E a medicina altaneira
Terá no ar Paulo Silveira
O maior dos seus discípulos
Que se formou em Portugal.
“O Crioulo" Francisco Oliveira, aluno de medicina da Universidade do Porto, que escreveu este poema, trabalhou comigo na Thibo, em Hamburgo, na Alemanha, nos idos de junho a novembro de 1972 e 1973.
E sobre esses versos vinha uma caricatura, que também já estava preparada, e me foi oferecida pela turma do Laboratório de Clínicas do Dr Nelson Junqueira, médico amigo, que nas férias me deixava estagiar no seu plantão das quartas-feiras, no Sandum do Conforto. O desenho me caricaturava de quimono, com a minha inseparável faixa preta, dando um pontapé frontal ( mae gueri), e vinha com uma placa que dizia PORTO. Da minha boca, no desenho, saía a palavra TCHÜSS (adeus, em alemão). Como falou o Chico Buarque, foi porreiro a festa, pá! É, mas a minha não houve. Ficou somente na vontade. Mas uma coisa eu fiz. Após assinar o meu diploma, dirigi-me à capela da Faculdade de Medicina, ajoelhei-me em contrição e, perante Deus, e tendo em mente os meus pais e irmãos, fiz o Juramento de Hipócrates. Vale a pena reproduzi-lo aqui:
“Eu, solenemente, juro consagrar minha vida a serviço da Humanidade.
Darei, como reconhecimento a meus mestres, meu respeito e minha gratidão.
Praticarei a minha profissão com consciência e dignidade.
A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação.
Respeitarei os segredos a mim confiados.
Manterei, a todo custo, no máximo possível, a honra e a tradição da profissão médica.
Meus colegas serão meus irmãos.
Não permitirei que concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais intervenham entre meu dever e meus pacientes.
Manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção. Mesmo sob ameaça, não usarei meu conhecimento médico em princípios contrários às leis da natureza.
Faço estas promessas, solene e livremente, pela minha própria honra."
E assim, em 30 de junho de 1975, terminei o curso de Medicina e Cirurgia na Universidade do Porto, em Portugal. Outros colegas, de outros cursos, tiveram suas formaturas normalmente. Mas não nós, da medicina. No entanto, para nós, a própria natureza da profissão que abraçaríamos dali em diante já era solenidade suficiente. Simbolicamente, segundo os antecessores e contemporâneos de Hipócrates, nós estávamos prontos para preparar os humanos a fim de que se encontrassem com os deuses. E se tornassem temporariamente, também eles, deuses, os mesmos deuses que efetivamente eram, mas que haviam se esquecido de ser. O próprio juramento de Hipócrates tem um estilo iniciático e, de certa forma, uma vez que estávamos prontos para preparar os humanos para se apresentarem aos deuses, e transformarem-se eles próprios em deuses, pelo juramento de Hipócrates, de certo modo, estávamos sendo iniciados à sagrada função de parteiros de deuses.
Assim, aprendi também que, além dos heróis, das amadas, dos grandes momentos históricos, se escreve também poemas para os amigos, os verdadeiros amigos. E naquela inesquecível data de 30 de junho de 1975 — e o poema que a amizade me dedicou o atesta — o sagrado juramento, eu o fiz sozinho. Cumpro-o todos os dias da minha vida!