A Vida Não Acaba Aqui

São 7:30 da manhã, Carlos está internado no hospital desde ontem. Deu entrada com várias fracturas no corpo e um traumatismo craniano de nível grave. Está entre a vida e a morte. Repousa inconsciente na cama. O pai é a única pessoa no quarto, repousa a cabeça junto à de Carlos, morre de cansaço. Na mesa-de-cabeceira, junto à cama, está o grande herói da vida de Carlos – o Super Mario. Nunca disse porquê mas passa horas em frente à consola fechado no mundo que mais gosta, e, provavelmente, o único.

O único, sim. O mundo real ele odiava. Não tem amigos. Um miúdo de 18 anos que nunca foi convidado para brincar com os outros de sua idade e, quando se aproximava, era afastado. Até a este dia, ele nunca compreendeu o porquê de alguém, por ser diferente, teria de ser excluído.

Carlos nasceu rapaz, mas sempre teve maior atracção pelo sexo oposto. Disse à sua professora que se sentia uma rapariga num corpo de um rapaz.

Aos dezoito anos, Carlos teria a liberdade de mudar de sexo mas, como é compreensível, uma operação destas custaria demasiado dinheiro para ele conseguir arcar com as despesas. Então, pediu ao pai. Mas ele sabia que o que iria ouvir seria um riso sarcástico seguido de um sermão sobre a vergonha de um pai ter um filho assim:

-- Que maricas que me saíste. Devias por os olhos no teu colega, o Miguel. Sempre bem vestido, sempre cheiroso, qualquer miúda cai aos pés dele. Agora tu, que merda! No meu tempo um gajo era um gajo e uma gaja era uma gaja. E assim é que está bem. Que merda! -- foi isto que Carlos ouviu da boca de seu pai.

Carlos chegou à escola, o último dia da semana. Por dois dias estaria livre daquele inferno. Pensava em chegar a casa, ouvir música e jogar consola, para ele isso o fazia continuar. Ia passando pelos corredores, ouvindo música com auscultadores. Assim não teria de ouvir aqueles idiotas e atrasados mentais a rirem-se pela maneira que se vestia. Toda a escola o conhecia, mas ninguém era amigo dele. Ninguém se aproximava. Limitavam-se a murmurar uns com os outros e a rirem-se e uma forma hipócrita e infantil.

Na sala de aula, Carlos sentava-se na última fila, sozinho. Fazia desenhos no caderno e não prestava a mínima atenção ao que o professor dizia. Tirava más notas. O suficiente para abandonar o ensino obrigatório no próximo ano. Pensava em mudar-se para trabalhar na grande cidade, onde não teria de dizer «olá» a ninguém.

Olhava pela janela da sala de aula e, enquanto a chuva caía, Carlos imaginava-se a si mesmo o Super Mario – um herói, num mundo de vilões que não são assim tão maus, e teria de salvar a bela Princesa Peach do seu arqui-inimigo, o Bowser. Seria uma vida muito mais interessante, pensava.

A campainha tocou, Carlos volta à realidade. Arruma a mochila e é o primeiro a sair. À saída do portão, avistou ao longe Eduardo. Toda a escola o troçava, mas Eduardo levava a sua homofobia até à violência. Carlos teria de passar por Eduardo e os amigos dele. Carlos acelera o passo na esperança de que Eduardo não o veja. Mas era inútil.

-- Ei, maricas, onde vais com tanta pressa? – Uma pergunta retórica e sem criatividade por parte de Eduardo que, como os que o acompanhava, levantaram-se do muro onde estavam sentados – Carlos não respondeu.

-- Ei, estou a falar contigo, ó maricas – intensificou a voz – Não me digas que é hoje que vais ter com a tua mãe, ó palhaço!

Carlos parou. Aquelas eram as mais ofensivas palavras que lhe tinham dito até hoje. Carlos congelou, não move um músculo. Eduardo sabia perfeitamente que sua mãe havia falecido num acidente de viação quando tinha 12 anos. Mas mais do que isso, foi a única pessoa que o amou de verdade, apoiando sempre as suas decisões, fosse o que fosse. E foi a única pessoa que Carlos algum vez amou e se importou.

O ódio invadiu a cabeça de Carlos. Ele não deveria ter dito aquelas palavras. Numa forma de ataque, Carlos foi com tudo para cima daqueles miseráveis, levou consigo a raiva, o ódio e a frustração.

Essa é a razão por que Carlos está agora deitado numa cama inconsciente, entre a vida e a morte. Era um temeroso silêncio naquele quarto. De vez em quando lá vinha a enfermeira ver se tudo se mantinha em condições. O pai dormitava, por isso, o único ruído que se podia ouvir era o da máquina à qual Carlos estava ligado.

Apesar de Carlos estar em coma, a sua mente continua intacta. E seria interessante ver aquilo que Carlos está a imaginar neste momento. Viajamos então até ao seu subconsciente.

Encontra-se num parque, onde existe árvores em abundância, as folhas dançando freneticamente pela acção do vento é o único barulho ou movimento que ali se sentia. Não há ali ninguém. Tudo era cinzento, branco e preto. Não havia nenhuma cor que alegrasse a alma. Carlos caminha, não vê ninguém. Carlos grita por ajuda, não ouve ninguém. Caminha amedrontado. Que sítio seria aquele? Ao fim de alguns minutos a caminhar, avista ao longe um velho sentado num banco de jardim. Carlos, desesperadamente, corre ao encontro do velho.

-- Senhor, desculpe-me, podia dizer-me que sítio é este? – Perguntou Carlos ao velho que vestia um longo sobretudo preto e tinha a pele enrugada de tão velho que era. Mas o velho não parecia muito interessado em falar e nem sequer parecia se ter apercebido da presença de Carlos. Então, sem mudar a direcção do olhar, disse:

-- Qual é a tua última lembrança, rapaz?

-- Bem, lembro-me de ficar inconsciente depois de uma luta – respondeu Carlos.

-- Rapaz, estás num hospital, em coma, entre a vida e a morte – aquelas foram as palavras mais directas possíveis para dizer aquilo.

-- Então, o quê, isto é o céu ou assim? – Perguntou Carlos, confuso.

-- Não – responde o velho – isto é a tua subconsciência.

-- Então tu não existes, hã? Mas porquê um velho? – uma pergunta que faz todo o sentido.

-- Bem, a tua vida é cinzenta, assim como os teus pensamentos e desejos.

-- E como eu faço para voltar à consciência? – Pergunta Carlos directamente.

-- É uma escolha tua, rapaz. Tu decides se vives ou se morres.

-- Bem, eu quero viver – respondeu imediatamente Carlos.

-- Porquê? Tens razão para continuar a viver?

-- Bem, não é preciso ter razão, ou é? – Indignou-se Carlos.

-- É, sim. Tens algo na tua vida que ainda valha a pena lutar?

-- Sinceramente, não.

-- Rapaz, a tua vida será de sofrimento daqui para a frente, assim como foi até agora. Acho que desistir às vezes não é fracassar. Passar à frente os anos negros da tua vida. Vida essa que não será bem vida. Será um inferno que terás de suportar e, mais cedo ou mais tarde, acabarás por ceder. Nunca serás feliz. Nunca mais.

Carlos respirou fundo. Nunca tinha pensado desta maneira. Nunca tinha visto a morte como uma saída ao seu sofrimento.

O velho continuou:

-- Tudo o que tens são memórias que nunca voltarão, nunca as reviverás. Memórias da tua mãe que nunca retornará. Nunca mais. E um boneco para crianças que carregaste contigo até hoje. Tu, rapaz, não tens nada. Nunca terás.

Carlos levantou-se em lágrimas, gritando para que o velho parasse com aquilo que estava a dizer. Fugiu dali o mais depressa que pode. Não voltou a olhar para trás. Corria desesperadamente. Avistou o velho mais à frente outra vez como se tratasse de um fantasma. Carlos correu na direcção contrária, mas lá estava outra vez o velho que repetia uma frase que lhe ecoava na cabeça:

-- Rapaz, não tens nada. Nunca terás.

-- Rapaz, não tens nada. Nunca terás.

-- Rapaz, não tens nada. Nunca terás.

-- Rapaz, não tens nada. Nunca terás.

Carlos lentamente ia perdendo o juízo. Chorava. Sabia que no fundo e por muito que doesse, o velho tinha razão.

Uma voz ecoou por entre as árvores. Uma voz que era familiar para Carlos. Uma voz de ternura e de suavidade. Era a voz de sua mãe. Então ele correu o máximo que conseguia em direcção à origem do som.

Era uma ponte. Uma ponte que estava suspensa sob nuvens. Não de água. De nuvens. Nuvens essas de onde vinha a voz de sua mãe. Ela chamava por ele. Assim como Carlos se recordava dela. Então ele sabia que aquele era o momento. Lembrava-se dela em vida. Lembrava-se das canções para adormecer, das histórias que contava. Do aroma do seu perfume. E tudo o que Carlos queria era voltar a vê-la, nem que fosse só por uns momentos. Ela era a única coisa boa que tinha na memória. Aquilo que o mantinha vivo.

E então, entre lágrimas, pôs-se na ponta, olhou para baixo, fechou os olhos e deixou-se ir.

O tempo parou. Parou para ver um rapaz a ir para os braços de sua mãe, abraçá-la e nunca mais a largar. Para sempre. E nada os separará. Nada.

No hospital, a máquina à qual Carlos estava ligado dava o alerta da perda de batimento cardíaco do rapaz que ali já não estava. O pai, desesperadamente, gritava por ajuda. Mas os médicos já nada podiam fazer. Carlos já tinha falecido.

Sérgio Peixoto
Enviado por Sérgio Peixoto em 13/01/2015
Reeditado em 14/01/2015
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