Sobras do Jantar

Aquele de terno e gravata que parecia ser um homem sério e respeitável, morava num dos prédios do centro da cidade. Eu o observava, quando as circunstâncias eram favoráveis.

Naquela manhã ele havia saído, de vestes respeitáveis e cabelo intacto. Lembro-me de ter passado duas ou três horas fora, mas parecia ter sido menos. Quando retornou, se deu conta de que um velho, dos cabelos brancos, pele escura e vestido em farrapos, barrava sua passagem na entrada do prédio.

- Não quero incomodar, meu senhor - disse o velho - mas o senhor, por um acaso, não tem um pão, pode ser velho, tanto faz... Não tem algo para eu pôr na boca?

O homem o olhava sem dizer nada. A postura respeitável deu lugar à uma imagem cautelosa. O homem estudava a situação.

- Perdão! Não queria lhe incomodar, meu senhor! Tenha um bom dia!

- Não... Espere! Tenho algo para você. Gostaria de entrar?

- Oh, não, meu senhor! De jeito algum! Não quero importunar ou sujar a sua residência. Eu... eu vou embora! - disse o velho desconcertado.

- Por favor, entre! Tenho sobras do jantar. Você precisa se alimentar. Venha! - disse o homem em um gesto convidativo.

Eu os via da janela, mas assim que entraram, corri, com dificuldades, para o lugar onde eu fora destinado e só conseguia ouvi-los. Percebi pela voz trêmula que o velho se sentia incomodado, talvez desejasse passar fome a incomodar. Ali tudo era limpo e cheirava bem, tudo valia muito mais que aquele velho jamais sonhara em conquistar um dia.

O homem pediu ao velho que sentasse à mesa e espessasse, pois iria buscar as sobras do jantar. O velho murmurou estranhando que não havia uma mulher em casa, nem mesmo uma empregada, mas não deu muita atenção a isso, a fome lhe apertava demais o estômago, não lhe permitia pensar muito. Logo o homem veio e forrou a mesa com comida. O velho não acreditava que estava sendo servido por um rico engravatado, mas comeu e agradeceu como nunca havia feito antes. A comida era farta como há muitos anos não via. O homem pôs-se de pé, analisando o velho comer com fúria, talvez sentia orgulho por este feito. Talvez.

Ao fim da refeição o velho ajoelhou-se em frente ao homem, beijando seus pés e desejando-lhe bênçãos divina. Mal poderia acreditar que alguém pudesse ter sido tão bom com um pobre velho de rua. O homem sorrindo pegou-o pelo braço, ergueu-o e disse-lhe:

- Meu senhor, levante-se! Não deve me agradecer, eu só fiz o que todos os homens deveriam fazer: compartilhar; ajudar àqueles que sentem sede e fome.

O velho levantou-se com os olhos cheios d'água, caminhou rumo à porta de saída, pegou suas sacolas que havia deixado em um canto da sala, virou-se para o homem e mais uma vez o agradeceu. Estava pronto para vagar por mais um ou dois dias, até que a fome lhe apertasse novamente.

Antes que pudesse ouvir o barulho da porta, ouvi um grande estrondo no chão. Eu sabia que havia sido mais um.

O velho foi golpeado por trás e arrastado pela casa até ao cômodo escondido na parte superior do prédio, onde eu estava. Naquela hora eu soube que nós dividiríamos as dores. Claro, se ele suportasse tanto quanto eu, durante todo o tempo que ali estive.

- Por alguns dias você será poupado, caro Alex - disse o homem, olhando fixamente em meus olhos, enquanto pisava sobre aquele corpo. Agradeça à mim, que encontrei isso aqui para novas experiências. As experiências de um...

- ... Dos maiores médicos deste país... Injustamente não reconhecido - completei.

- Você é inteligente, Alex. Aprende rápido. Então... Hm... Escolha uma parte desse corpo, qualquer uma! O colocarei sobre a maca e você faça o que quiser! Quem disse que você pode vivenciar apenas um lado? Quero que saiba como me sinto, Alex. A grandeza de poder tirar e trazer a vida. A grandeza de um deus! Sinta-a! - gritou o homem, rindo, com um olhar doentio.

- Obrigado pela gratidão, meu senhor!

E ali eu sabia que toda a dor física que eu já havia sentido não poderia ser comparada com o que estava prestes a sentir. A dor de vivenciar o outro lado.