608-PAVOR NA RODOVIA NA NOITE DE NATAL-

Tinha de viajar seiscentos quilômetros em meu carro para estar com minha família na Noite de Natal. Era a primeira vez que estava longe da família no final de ano, devido a circunstâncias ligadas ao meu trabalho. A data, guardo na lembrança devido ao extraordinário fato que... bem, que os leitores saberão até o final desta narrativa: 24 de dezembro de 1968.

Trabalhei naquela véspera de Natal até as duas da tarde, visitando diversos clientes e ainda demorei-me algum tempo nas lojas da pequena cidade a fim de comprar presentes (de última hora) para minha esposa e os cinco filhos.

O relógio do painel do carro indicava exatamente quatro e trinta e cinco quando saí do posto de gasolina, tanque cheio para a viagem. Felizmente meu carro, uma Vemaguete de quatro anos atrás, tinha boa autonomia de viagem e não precisaria nem parar para reabastecer, antes de chegar ao meu destino. .

A rodovia era boa, asfaltada em todo o percurso e sem exceder a velocidade — o que não faço, em hipótese alguma — chegaria em casa lá pelas dez da noite. Em tempo para tomar um bom banho, assistir a missa do galo e depois, participar da ceia com a família e muitos parentes, reunidos todos na casa de meu sogro, que fazia questão de patrocinar a reunião familiar.

A noite caiu e eu seguia firme, dirigindo com a calma que me é peculiar. Atento a todos os sinais, aos limites de velocidade e a que quer que pudesse observar na rodovia. Um pequeno animal — um gambá? — passou saltando na frente do carro, sob a luz dos faróis. A uma distância que lhe permitiu pular sem ser atropelado.

De repente, os faróis diminuíram de intensidade e foram se apagando. Com a luz bruxuleante tive condições de levar o carro para o acostamento. Todas as luzes do painel também se apagaram. O motor morreu e fiquei completamente no escuro, parado. Um silêncio sepulcral desceu sobre tudo. Tentei dar na partida mas não houve resposta.

— Raios! Que será que aconteceu? — Falei comigo mesmo.

Com certa raiva, abri o porta-luvas, peguei a lanterna e acendi. Puxei a pequena alavanca manual para destravar o capô do motor e saí do carro. Fui para frente do carro, abri o capô, ajustei o suporte e com a lanterna, varri o espaço.

Na realidade, estava apavorado, pois nada entendia de carros, mas pensei que algum cabo desligado poderia ser facilmente re-conectado. Nada vi de anormal.

— Puta merda! Tinha que ser aqui, tinha que ser nesta hora! — Não sei se pensava ou falava em voz baixa.

Quando levantei a lanterna do motor, levei um susto danado: a luz bateu num vulto que se aproximara sem que eu tivesse visto.

Há momentos em que um mundo de impressões, lembranças, sentimentos e sensações nos afogam, tudo advindo ao mesmo tempo. Pensei em ladrão, em assaltos em rodovias desertas, tive medo, a vontade de sair correndo. Mas fiquei ali, petrificado pelo terror. Pensei em tudo aquilo que a minha lembrança e a minha imaginação geraram naquele instante. Só não meio veio à cabeça (felizmente) que poderia ser um fantasma.

— O senhor...? Quem é...? Que...?

— Calma, amigo, vim lhe ajudar.

A voz era tranqüila, inspirou-me calma e, de certa forma, o medo se esvaiu. Só então olhei com cuidado para o homem que estava do outro lado do carro.

Alto, muito magro e de chapéu. O rosto, ainda que não muito visível, era moreno e mostrava uma barba de alguns dias, negra e espessa. Olhos encovados e fundos, o branco se destacava e quase não se percebia a retina. A vestimenta — estava vestido num antigo terno jaquetão — pendia-lhe sobre o corpo, como se estivesse num cabide ou (pensei, horrorizado) como se ali dentro só tivesse ossos.

Para dizer a verdade, era uma figura... cadavérica. Senti um arrepio gelado.

— O senhor é... mecânico? Como soube que eu estava aqui.

— Não, não sou mecânico. Mas posso lhe ajudar.

Aos poucos fui voltando ao normal. Bem... pelo menos até onde se pode chegar à normalidade, com um carro enguiçado numa noite escura, em local completamente deserto e um estranho de aspecto estranho ao lado.

— Não sei o que aconteceu. Os faróis se apagaram quase que de repente e não consigo dar na partida.

— Tá isolado. O sistema elétrico não funciona. — Falou o estranho.

— Então, não tenho como sair daqui. — Eu falei, constatando uma realidade.

— Já lhe disse, posso ajudá-lo. Só lhe peço um favor em troca.

— Sim, por favor, me diga como vou sair daqui... e que favor é este?

— Sei que o senhor está indo para Jandaiana. Quando chegar lá, peço entregar este envelope no endereço que está escrito.

— Como é que o senhor sabe que vou para... — comecei a pergunta.

Mas o homem não deixou nem eu completar a pergunta, me interrompeu:

— Não interessa. Ajudo o senhor e o senhor me ajuda.

O pavor voltou. Ele sabia para onde eu ia!

— Mas... como vai me ajudar?

— Fica frio. Tome, pegue o envelope e entregue no endereço. É lá mesmo em Jandaiana.

Peguei o envelope. Senti que dentro havia algo sólido, uma chapinha, um pedaço de metal... uma chave? Coloquei o envelope no bolso da camisa.

— Bem, e agora? — voltei para encará-lo, mas ele já estava no meio da estrada. Agitando os braços Faróis potentes se aproximavam rapidamente.

— Sai daí! Quer morrer? — gritei.

Ele me olhou com aqueles olhos cavos, enquanto as luzes foram se aproximando.

Num momento, ele estava lá. No momento seguinte, já não estava mais.

As luzes se aproximaram e notei que o veículo diminuía de velocidade. Encostou-se à faixa lateral da estrada, logo atrás da minha Vemaguete. Embora ofuscado, vi que era um caminhão. Dois homens saltaram da cabina.

Então, não sabia se sentia alivio ou medo. O vulto desaparecera misteriosamente e na minha direção vinham dois homens. Novamente aqueles pensamentos atravessaram minha mente: assalto, crime, morte, tudo o de ruim que podia pensar, pensei.

— Hei! Que aconteceu? — gritou um dos dois, que se aproximou em passos largos.

Automaticamente, respondi:

— Sei lá. Acabou a energia elétrica.

O homem, um gigante de quase dois metros e gordo demais, não sei como conseguiu entrar no carro e, iluminado por minha lanterna, deu uma olhada no painel. Claro que nada viu, pensei.

— Pombas! — Exclamou o outro, que parecia irmão gêmeo do primeiro. — Logo aqui nesta curva.

— Que é que tem esta curva? — Perguntei.

— O doutor não sabe? É a Curva da Morte. Aqui acontece muito desastre.

— Conheço esses carrinhos. São danados pra ter falha elétrica. — Falou o homenzarrão, de dentro do carro.

O outro acrescentou:

— Deve ser as buchinhas do gerador.

Começaram uma conversa técnica entre eles, que me ignoraram completamente. E eu nada entendia do que estavam falando.

— Olha, doutor, o jeito é o senhor ir na nossa frente.

— Como?

— Seguinte: na bateria tem ainda energia para uma partida ou duas. O senhor põe o carro pra funcionar, leva ele pra rodovia e vai na nossa frente. Vamos iluminando com farol alto e o senhor vai dirigindo.

— Dá certo?

Meu medo agora era da proposta dos dois caras do caminhão.

— Claro, a gente vai mais devagar. Estamos a uns 50 quilômetros de Cuiabá, e lá eu conheço um mecânico que vai consertar o seu carro.

— Na noite de Natal...?

— É, eu conheço o Inacinho, o homem num fecha nunca sua oficina.

Fiz o que o homem mandou. Girei a chave e o motor pegou. Engatei a primeira e levei o carro para o asfalto da rodovia, iluminado pelos potentes faróis do caminhão. Fui dirigindo devagar, a principio, e em seguida vi a luz dos faróis do caminhão se aproximando por trás da Vemaguete. Acelerei e imprimi maior velocidade.

A coisa funcionava, sim. Com os faróis altos, a luz varria o asfalto a uma distância bem grande, que me permitia dirigir com boa visibilidade.

O caminhão chegou perto e piscou duas vezes. Na linguagem dos caminhoneiros, pedia (ou mandava?) que eu imprimisse mais velocidade.

Acelerei. O carro funcionava perfeitamente, respondia à aceleração. Só não sabia a quantos quilômetros ia, pois no painel não havia luz para indicar a velocidade.

Quanto mais eu acelerava, mais o caminhão respondia, aproximando-se. Acho que atingi uns 100 quilômetros. A rodovia era reta e plana e permitia uma boa velocidade.

Sorte não ter guarda rodoviário a esta hora da noite, senão eu estaria ferrado — e os homens que estão aí atrás também. — Pensei.

Quanto mais eu acelerava, mais o caminhão me acompanhava. Agora, meu pavor era outro: se eu tiver que dar uma freada, vou ser atropelado pelo caminhão. E já pensava se esses dois não seriam comparsas do outro, o que sumira, e estavam mancomunados pra me matarem.

Confesso que nunca senti tanto medo. Qualquer descuido da minha parte, eles passariam por cima de mim. Pensei em ir para o acostamento, mas não podia, pois ia à alta velocidade e nem divisava onde começava a pista lateral.

Passei a mão no meu bolso da camisa e senti o envelope com o pequeno objeto duro.

Que coisa mais estranha. O cara sabia que eu vou pra Jandaiana. E sumiu de repente!

O caminhão à velocidade máxima, me empurrava literalmente pela estrada.

Suspirei aliviado quando vi as primeiras luzes de Cuiabá. Os faróis do caminhão piscaram três vezes. Entendi que era para eu encostar, o que fiz, sem desligar o motor da Vemaguete.

O caminhão parou na frente. O motorista desceu e, chegando perto de mim, que permanecia sentado dentro do carro, disse:

— Doutor, a oficina do Inacinho é no próximo quarteirão. Tenho certeza que ele ainda ta lá. Se não tiver, ele mora em cima da oficina. É só chamar que ele atende o senhor.

— Muito obrigado. Fico-lhe muito agradecido pela ajuda.

— Num tem de quê, doutor. Boa Viagem.

O caminhão partiu.

Fui dirigindo devagar, pois já estava entrando na cidade, e procurando a oficina do Inacinho.

Estava aberta. Olhei para o relógio: dez horas. Parei na porta da oficina. E logo veio um mecânico:

— ‘Noite, moço. Argum probrema?

— Tou sem energia, nem posso desligar o motor.

— Deixa comigo. Pode descer que manobro o carro aí pra dentro da oficina.

Desci do carro. Ele o colocou dentro da oficina, iluminada por luzes muito claras.

Parecia que ele estava me esperando...

Abriu o capô e examinou. Sua cara não denotou nada que eu pudesse interpretar.

— Vai demorar o conserto? — Perguntei, já contando que a Noite de Natal para mim, já era.

— Nada. É coisa simples.

E foi: em vinte minutos ele trocou umas pecinhas que nem sei o nome, que estavam gastas, e que faziam funcionar o gerador.

O preço também foi uma tutaméia. Paguei feliz e coloquei a Vemaguete na rua, prossegui viagem e cheguei uma hora depois à casa do meu sogro. Em tempo de tomar um banho e participar de toda a festa de Natal.

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Quando tirei o paletó, o envelope que me fora entregue saiu do bolso, caindo no chão. Quando agachei-me para apanha-lo, vi que estava aberto e deixei escorregar sobre minha mão o conteúdo: uma pequena chave dourada, cujo cabo era na forma de uma cruz.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 29 de maio de 2010.

Conto # 608 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Continuação: Conto 609 – A Chave que veio do Além.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/12/2014
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