590-A CONFISSÃO, A PENITENCIA E A RECOMPENSA-O garoto queria matar a avó
CONFISSÃO, PENITÊNCIA E RECOMPENSA.
Joãozinho ajoelhou-se no confessionário. Apertou suas mãozinhas abaixou a cabeça. Era tão pequeno que tinha de meio que levantar o corpo para chegar à altura da grade. Era quase impossível falar de cabeça baixa, por isso a levantou e olhou para cima, divisando o contorno do rosto do Padre Sinval, com o nariz adunco e a barba emaranhada fazendo a sombra contra a pouca claridade do cubículo.
O padre cochichou algo que o garoto não entendeu, mas foi o bastante para disparar a voz contrita:
= Padre, perdoa-me porque pequei.
= Um grande camaradinha como você certamente não tem pecados terríveis. = Disse o padre. = É a primeira vez que você confessa?
= Não, padre, confesso toda primeira quinta-feira do mês. Mamão disse que quem comunga toda primeira sexta-feira do mês, quando morrer vai direto pro céu.
= Sim, é verdade. É muito bom você continuar com esta prática.
Joãozinho sentiu-se encorajado e resolveu falar primeiro da idéia que vinha lhe atormentando a cabeças, e que de certo seria um grande pecado.
= Padre, ele disse com a voz meio embargada, eu estou pensando em matar a vovó.
Houve um momento de silêncio. Joãozinho não se atrevia a continuar e sentia os olhos do padre verrumando a escuridão, olhando para ele. A voz do padre, quando ele falou, também estava um tanto tremula e rouca, quando disse:
= A sua avô? Mas, o que isto significa? Por que você quer matar sua avó? Você tem certeza?
= Sim, Padre, eu quero matar minha avó.
= Ela mora com você?
= Sim, Padre. Ela e o vovô moram na nossa casa, com papai, mamãe, eu e minha irmão Soninha.
= E porque você quer matar sua avó?
= Ai, meu Deus! = Joãozinho estava se sentindo mais à vontade para desabafar. Continuou a confissão:
= Ela é uma velha horrível. A avó mais terrível que conheço.
= E porque ela é tão horrível assim?
Joãozinho parou para pensar. Ia ser difícil explicar e convencer o padre.
= É por causa do cheiro dela. Ela pita uns cigarros de palha fedorentos e deixa os tocos esparramados por toda a casa. Meu quarto está empestado. Um cheiro que me dá vontade de vomitar.
= Oh, mais o que lhe incomoda?
= Ela toma uns copinhos de cachaça. Escondido. Ninguém lá em casa sabe, mas eu vejo quando ela pega um copinho e vai ao armário, enche e toma. Cachaça pura. Também é um negócio que deixa um cheiro horrível.
= Nossa Senhora! = disse o padre.
= E também tem um chulé terrível.
= Meu Deus! = O padre exclamou, em voz baixa. = Tem mais alguma coisa?
= Tem sim. Ela vive me vigiando. Zanga comigo toda hora. Entra no meu quarto e fica me olhando quando estou fazendo o dever de casa.
= Já falou com sua mãe ou seu pai sobre este assunto?
= Eles trabalham fora o dia inteiro. É a vovô que faz comida pra mim e pra minha irmã. As batatas são mal descascadas, o arroz pega no fundo da panela e o feijão fica queimado. Ela vive me mandando fazer as coisas, mas com a Soninha, é diferente. Deixa ela fazer o que quiser e ainda por cima lhe dá presentinhos. Pra mim não dá nada.
= E como é que um garoto do seu tamanho vai fazer para matar sua avó? = Pergunta o padre.
= Com uma faca.
= Quando ela estiver dormindo?
= Sim. Ela dorme todo dia depois do almoço. Bebe a cachaça, come aquela comida ruim, pita uns cigarros e cai no sono.
= E o que você fará com o corpo, depois que você matá-la? Seu avô não vai chamar a polícia?
= Eu vou cortar minha avó em pedacinhos e enterrarei tudo no quintal.
= Ai, Minha Virgem Idolatrada! E você planejou isto sozinho ou conversou com alguém?
= Nunca falei nada disto com ninguém, Estou falando agora pela primeira vez. Juro.
= Não precisa jurar, acredito em você.
= Não sei que dia, mas ainda mato a avó! = Joãozinho parecia que iria sair direto do confessionário para cumprir sua missão.
= Você é muito corajoso! = Disse o padre. = Tem um monte de pessoas que eu também não gosto, mas eu não teria coragem de matá-las. Se você matar sua avó, a policia irá prendê-lo e você jamais poderá voltar à escola.
= Num tem importância.
= Tem mais algum pensamento terrível que deseja confessar? Tem alguma arte, alguma briga com colegas?
= Não padre, só quero matar minha avó.
= Bem, o melhor é tirar essa idéia da cabeça. Vou lhe dar a absolvição e você vai rezar cinco ave-marias e um Padre-Nosso, como penitência. Mas quero que você, depois de cumprir esta penitência, vá até a sacristia e me espere lá. Quero falar com você sem ser no confessionário.
Joãozinho saiu e procurou um banco na igreja. Ajoelhou-se e rezou as orações que o padre mandara.
Depois, ficou alguns minutos ajoelhado e pensado no que o padre lhe dissera.
Com certeza, ele vai me passar um grande sermão, ou pedir o telefone de casa pra avisar mamãe. = Pensou. = Mas agora, já falei mesmo, tenho de obedecer, senão é capaz de amanhã ele nem me deixar comungar.
Joãozinho foi para a sacristia.
= O padre Sinval me mandou esperar ele aqui na sacristia. = Explicou ao sacristão.
Ante o olhar inexpressivo do ajudante do padre, Joãozinho ficou de pé, encostado na parede. Inquieto. Cheio de suspeitas e de medo.
O padre chegou e pediu para o sacristão ir ver alguma coisa no altar. O Sacristão saiu.
= Sente-se nesta cadeira aqui ao meu lado. = Disse o Padre.
Joãozinho sentou-se e o padre começou a falar sobre o que Joãozinho queria fazer, que pensar não era um pecado muito grande, mas que ele, Joãozinho, devia parar de ter tal pensamento.
= Olha, se você me prometer que não vai mais ter esses pensamentos, te dou esta caixa de bombons. = E mostrou ao Joãozinho uma vistosa caixa.
Os olhos do garoto abriram-se de espanto. Eu pensava que ele me ia castigar, está me dando um presente!
= Sim! Juro que num vou mais pensar nisso!
Peou a caixa, saiu correndo da igreja e foi mostrar à irmã o presente que tinha ganhado do padre, depois da confissão.
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= Qual foi sua penitência? = perguntou-lhe Soninha
= Três Ave-Marias e um Padre-Nosso.
= Só!?
= E inda por cima ganhei esta caixa de bombons.
= De quem?
= Do Padre Sinval, sua boba. De quem mais poderia ser?
= Isto é uma injustiça! Eu faço menos pecados do que você, o padre Sinval me dá penitência muito maior e nunca ganhei nada de presente dele.
= É, mas você ganha da vovó. = Imediatamente, lembrou-se da promessa que havia feito ao padre Sinval, em troco da caixa de bombons. Não posso me esquecer, pensou.
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No mês seguinte, na primeira quinta-feira, Joãozinho voltou a se confessar.
Agora, estou preparado. Já nem penso mais em matar minha avó. O padre vai ficar espantado.
Ajoelhou-se no confessionário, e depois das palavras iniciais de praxe, iniciou a confissão:
= Padre... estou tendo uma ideia terrível. Estou querendo matar meu avô...
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 08 de fevereiro de 2010
Conto # 590 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS
Os contos da SERIE 1.OOO HISTÓRIAS são arquivados
na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro