532-A TORRE - Guerrilha e guerrilheiros

Não sei o que deu no meu filho Ramon. Era tão quieto, trabalhador, tranquilo. Me ajudava na colheita e até ia comigo de bom grado ao povoado, entregar as folhas de coca. A gente conversava pouco, mas ultimamente ele deu em perguntar muita coisa que nem eu mesmo nunca tinha cogitado de saber.

Foi tudo tão de repente, que quando vi, tinha batido na cara dele. Mercedes me havia falado que ele estava se encostando nela, na cama, de noite, mas não acreditei enquanto não vi ele agarrando a mãe, ali no meu lado. Primeiro fiquei fingindo que dormia, mas quando os dois começaram naquela movimentação, no escuro do quarto, no meu lado, levantei de um pulo:

— Cachorro, filho duma putana. — Gritei, enquanto arrancava o maldito de cima da mãe. Ele não reagiu, apenas saiu correndo e ficou no telheiro. Chovia muito, chuva pesada, que cai aqui na floresta, como quase todas as noites. E ele ali, encostado na parede, tremendo, não sei se de frio ou de medo.

Mercedes também se levantou, mas Concepcion ficou deitada. Acordada, sim, que ninguém mais conseguiu dormir naquela noite.

Dei-lhe uma bofetada.

— Maldito! Some da minha vista!

E Ramon desapareceu de nossa casa.

... ... ...

O pai não devia ter me batido. Eu já tinha perguntado pra ele uma porção de coisas, mas ele nunca me respondia, ou quando falava comigo, era só para zangar. Vivia enfezado.

Saí correndo na noite. Estava chovendo muito. A floresta, depois da plantação, era um negrume e me enredei nas lianas, tropecei nas raízes e nos galhos secos, arranhando a cara e os braços. Não tinha direção, e fui embrenhando pela mata, sem saber de nada. Já amanhecia quando ouvi um grito:

— Alto! Quem vem lá?

Parei e fiquei ouvindo. A chuva continuava e não ouvia nada senão o barulho do aguaceiro nas folhas. Senti uma pancada na cabeça e virei, procurando ver de onde vinha a voz, quando senti no peito a ponta de uma faca.

— Num me mata! Pelo amor de Deus! — Foi só o que lembrei de falar.

Senti um laço descendo pela cabeça, passando pelos ombros e apertando os braços junto ao peito. Fiquei parado, sem ver quem estava me amarrando.

— Vamos, ande! — Com a ordem, veio de novo a cutucada com a ponta da faca.

Andei até amanhecer, eu na frente e o homem atrás. Quando clareou, vi que ele estava com a cara pintada de preto e me cutucava com a ponta de um fuzil. Foi então que chegamos a um acampamento. Tinha caído nas mãos de um bando armado que andava pela selva, roubando, comendo as mulheres e levando os homens presos.

O bandido me mostrou uma choça, quatro paus ficados no chão e coberta de folhas e me empurrou. Debaixo estava um homem sentado, com uma cuia de mate na mão.

— Entonces, quem é você?

— Sou Ramon, filho de Pepe.

— Bah! Que guapo! Vai ser um bom companheiro, não vai?

— Sim. — Respondi, sem saber do que estava falando.

... ... ...

— Desgraçado! Nem bem chegou e já está aprontando! Mande ele pra Torre.

O tal de Ramon é um tarado. Ainda no treinamento e já fez confusão. Margarita veio me queixar:

— Comandante, o Ramon me “pegou” no meio do mato, quando a gente estava treinando.

Acredito em Margarita, se bem que ela joga aquele seu olhar de pombinha abandonada, difícil de resistir. Os homens já estão acostumados com seus meneios, mas sabem que ela é minha. Mas agora este novato aí sem saber de nada, se mete a besta.

— Na torre ele vai ver como é bom bulir com as mulheres do acampamento... e principalmente com a minha Margarita.

... ... ...

A Torre era a melhor idéia que já tivera o Comandante. Um entrelaçado de troncos, amarrados fortemente, que ia se erguendo no meio do acampamento e que servirá de posto de vigilância. Nela só trabalhavam os piores homens, o refugo, mas não os traidores, que estes são mortos sumariamente. Eram acorrentados na própria estrutura, e trabalhavam sob sol ou chuva.

— Se param durante as chuvas, a obra não sobe — Mandava o comandante.

Dormiam ali mesmo, acorrentados, debaixo de folhas trançadas. A comida, pouca, era a sobra, os restos dos outros, que vinha tudo misturado, em latas, uma lavagem, comida para porcos.

Quando Ramon foi condenado ao trabalho na torre, esta já estava alta, mais de vinte metros, e os quatro acorrentados subiam e desciam pela estrutura, levantando os trocos, amarrando-os com arame farpado, e cobrindo tudo com folhas. Já podia se avistar as copas das arvores mais altas, além do acampamento, e o comandante já mandara fazer uma coberta, onde a sentinela iria permanecer.

— Assim que acabar de fazer a Torre, eles vão matar a gente. — Solano, um dos quatro acorrentados, cochichou ao outros, certa noite.

— Como é que você sabe?

— Ouvi o comandante conversando com o homem que nos vigia.

— Então temos de fugir.

... ... ...

— Meu azar foi tentar com a mulher dos outros. — Ramon pensava, lembrando-se de sua desgraça. — Enquanto eu mexia com Concepcion, nunca tive problema. Ela gostava, a gente dormia tudo junto na cama grande, com papai e mamãe, desde criança. Era a única cama, no único quarto de nossa casa. Nem sei como começou, só sei que foi acontecendo, e quando vi, senti aquela coisa esquisita, aquele calor tomando conta de mim. Quando cheguei perto dela, na primeira vez, ela foi aceitando como se fosse coisa normal. Nem sei quantas vezes nós dois fizemos aquela brincadeira. Tudo muito quietinho, nem papai nem mamãe percebiam nada. Mas quando encostei na mamãe, e ela contou pro pai, tudo dewsandou.

Aqui no acampamento também ia bem no treinamento, mas aquela tal de Margarita vivia me olhando de jeito diferente, que um dia num agüentei. Peguei ela no mato, longe de todo mundo. Ela até que gostou. Mas a desgraçada contou pro comandante, e só então fiquei sabendo que ela era a preferida dele. Aí me dei mal.

... ... ...

— Hei, Ramon, desce daí. Vem ver quem está aqui.

Ramon olhou pra baixo e viu o guarda segurando pelo braço um homem pequeno, balançando-o como se fosse um fantoche.

— É meu pai! — Ramon reconheceu de imediato, apesar das sombras.

Desceu como um macaco, arrastando a corrente.

— Meu filho! Quanto tempo! — O pai procura abraça-lo, no que é impedido pelo guarda.

— Pai! Que está fazendo aqui?

— O bandidos invadiram a plantação. Agora tenho de lhes entregar toda a colheita.

— E a mãe? E Concepcion?

— Estão lá comigo. Mas não agüentam mais tanta brutalidade. Os homens do comandante vão lá sempre, e abusam delas. Elas ficam quase mortas.

Naquele momento, Ramon decidiu que tinha de fugir, de vingar tudo o que ele, o pai, a mãe e a irmã estavam sofrendo.

... ... ...

Noite fechada no acampamento. A chuva já tinha passado e tudo estava muito quieto. Ramon e os três acorrentados haviam combinado a fuga para aquela noite.

— Você, Ramon, arrasta-se até o guarda, dá-lhe uma pedrada na cabeça e tira as chaves dos cadeados. — Cochichou o companheiro, confirmando o combinado.

Em dois tempos, o guarda está prostrado e silenciosamente os quatro escravos estão livres das correntes. Saem silenciosamente do acampamento e correm na direção do rio, de onde será mais fácil iludir algum provável perseguidor.

Ramon vai atrás e em determinado ponto, deixa a trilha seguida pelos companheiros. Embrenha-se mais na floresta. De repente, ao desembocar numa pequena clareira, topa com dois componentes do bando do Comandante. Estão embolados. Rolam, grudados um ao outro, sobre a folhagem úmida.

Ramon não titubeia. Com um galho forte, dá uma cacetada no vulto do que está por cima, que tomba de lado, revelando a mulher.

— CONCEPCION! — exclamou Ramon, deixando cair sua arma improvisada.

Ela não parece se surpreender. Antes mesmo de se levantar, passa a mão no chão, pega o fuzil e , num gesto treinado, enfia a baioneta no peito do homem que não reconhece.

Ramon, atravessado de lado a lado pela baioneta, tomba morto sobre as folhas molhadas.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 10 de fevereiro de 2009

Conto # 532 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 19/11/2014
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