515-A SORTE DO PEÃO BOIADEIRO- Fantasmagórico

Versão/adaptação para "Senhora das Coroas"

Num dos cantos do cemitério está um túmulo desabrigado, uma simples campa com o nome gravado no cimento: Jonas da Silva. Só de vez em quando passo por ali, e paro para uma oração para a alma de um homem cuja morte não combinou com a vida que levou.

Era alto e encorpado, forte e ágil. Começou a vida seguindo a profissão o pai, que era boiadeiro. Viajou por todos os lugares onde havia gado para conduzir, para marcar e para cuidar. A coragem que tinha para lidar com vacas, bezerros e bois era conhecida e sua habilidade como laçador corria de boca em boca, entre os fazendeiros e peões. Quando começou a freqüentar os rodeios, logo foi ganhando os melhores prêmios. Foi ficando cada vez melhor para montar, laçar, dominar um cavalo xucro ou um boi brabo.

Ficou famoso e sua presença nos rodeios atraia muita gente. Quando esteve numa cidade aqui por perto, muitos conhecidos meus foram ver suas acrobacias no laço e sua esperteza com os animais.

Fiquei conhecendo-o na loja do Herman, meu compadre, pois eu era madrinha de Katerina, linda menina de olhos azuis e cabelos loiros, encaracolados. Eu estava lá no dia da grande sorte do peão (e desgraça do meu compadre).

A “Loja do Alemão” era famosa pelo seu estoque, pois Herman viajava constantemente para a capital a fim de comprar mercadorias variadas e novidades que vinham da Europa. A freguesia era grande e aumentou com a chegada da máquina da sorte, que ele disse ter vindo da Alemanha. Ele tinha orgulho de coisas feitas na terra onde tinha nascido, juntamente com a esposa Helga.

A tal máquina da sorte era uma caixa de metal, colorida de amarelo, vermelho e púrpura, de metro e meio de altura, por uns quarenta centímetros de lado e de fundo. Na parte superior tinha uma pequena abertura redonda qual se colocava uma ficha de metal e na parte inferior, uma fresta da qual saia um cartão premiado, a sorte oferecida pela máquina. No lado direito, tinha uma manivela. Qualquer pessoa que fizesse uma compra, não importando o valor, recebia uma pequena placa redonda de metal (parecia uma moeda de quinhentos réis) que devia colocar no buraco superior. O próprio freguês girava a manivela. Ouvia-se o tilintar da ficha batendo em engrenagens metálicas dentro da máquina. Em seguida, quando a máquina parava de fazer barulho, caia um cartão de papelão. Era um cartão bem impresso, com bordas floreadas, de cores variadas conforme o valor impresso. Eu mesma, certa vez, ganhei na máquina da sorte um cartão com o valor de quatrocentos réis, com o qual comprei um carretel de linha.

Helman gostava de explicar o funcionamento da maquina da sorte, a fim de despertar cada vez mais o interesse do pessoal.

— As fichas já estão lá dentro. Vieram com a máquina e não sei qual o valor delas. Saem conforme a sorte do freguês. — Dizia antes de cada virada na manivela.

Era de manhã quando o famoso peão apareceu na Loja. Procurava um chapéu. Ouvi a conversa entre os dois e fiquei admirando Jonas: era um homem afável, sempre sorridente. Falava alto e claro, e parecia de nada ter medo. Experimentou diversos chapéus e escolheu um, do modelo usado pelos vaqueiros americanos, que a gente via nos filmes de faroeste.

Depois de voltar o troco, Herman ofereceu ao vaqueiro a ficha para tentar a sorte na máquina.

— Com esta ficha você tenta a sorte na Maquina. Está vendo? É aquela caixa amarela ali.

Jonas pegou a ficha meio sem jeito. Chegou perto da máquina, observou uma mocinha à sua frente. Ela colocou a moedinha no buraco, tocou a manivela uma vez e esperou cair o cartão. Ficou decepcionada com o prêmio:

— Só duzentos réis! Não dá pra comprar nem uma dúzia de bananas.

Na sua vez, o peão fez como a mocinha: colocou a ficha, girou a manivela e esperou. O cartão apareceu na estreita abertura e ele segurou com firmeza, como se tivesse pegando os chifres de um touro. E viu o valor do prêmio.

— Dez contos! — Disse em voz alta.

Algumas pessoas que estavam por perto se aproximaram do peão, que olhava o cartão num lado e no outro, sem saber exatamente o que fazer com aquele pedaço de papelão.

Mais surpreso que todos ficou Herman. No começo, pensou que o vaqueiro estava imaginando ou inventando aquele valor tão alto. Mas quando pegou o cartão e olhou com cuidado, ficou amarelo, depois branco e sentou-se no banquinho ao lado do balcão.

— Não é possível. Nunca pensei que tinha um cartão com este valor. — E despejou um monte de palavras em alemão, que ninguém entendeu, mas a gente sabia que era uma maldição para o fabricante da máquina da sorte.

Não era negócio para ser resolvido ali, no balcão. Helman chamou o peão de lado e disse:

— Vamos conversar lá dentro.

Abriu a porta que dava para sua casa, que ficava nos fundos. Entrei com eles, pois notava a ansiedade no rosto do compadre e fiquei preocupada.

Quando os dois se sentaram, chegou a comadre Helga, e todos ouvimos a explicação de Helman ao vaqueiro:

— Não sei como explicar. Nunca pensei que esta maquina tivesse um cartão com este valor. É uma pequena fortuna. Não tenho como lhe pagar agora. Se vender todo meu estoque da loja, ainda assim, não consigo tal importância.

Helman era a honestidade em pessoa. Isso eu posso assegurar. Achava que, mesmo sem saber daquele cartão, tinha de honrar o prêmio, seja lá qual valor fosse.

Jonas nada falou. Ainda estava bestificado, acho que não entendia direito o que estava acontecendo.

— Peço-lhe para esperar uma semana. Vou falar com meus amigos e com o gerente do banco, para conseguir dinheiro emprestado e lhe pagar.

Penso que Jonas entendeu que não ia receber o dinheiro tão cedo. Mas acho que acreditou na promessa de Helman. Levantando-se e estendendo a mão, disse:

— Tá bom. Volto daqui uma semana. Segunda-feira, se Deus quiser.

Nem na segunda, nem na terça, nem nunca Jonas receberia o prêmio. Helman procurou desesperadamente alguns poucos amigos. O coronel Maragato, fazendeiro de muitas posses, não pode atendê-lo. O gerente do Banco Hipotecário se esquivou ante tão vultosa soma. Outros, em que Herman confiava, viraram-lhe as costas.

Fiquei sabendo de tudo, pois daquele dia em diante eu passava todas as tardes para conversar com os compadres, quando voltava do hospital, onde trabalhava. Na segunda-feira Jonas apareceu na hora do jantar. Helga convidou-me para jantar com eles e ouvi toda a conversa.

— Não consegui levantar o dinheiro, seu Jonas. — Disse Helman. — Mas vou lhe pagar, nem que tenha de lhe entregar a loja.

— Não quero loja nenhuma, seu Helman. — Respondeu Jonas.

— Vou-lhe propor o seguinte: dou-lhe uma nota promissória para daqui seis meses. Neste meio-tempo encontro um jeito de pagar.

O documento foi feito e assinei como testemunha. Mas eu sabia, tinha uma intuição, que aquele papel seria a desgraça do meu compadre – e da sua família.

Jonas apareceu para cobrar a dívida no vencimento, seis depois. Tinha abandonado a profissão devido a um pequeno acidente e queira comprar umas terras e criar gado.

Helman não havia conseguido nada que pudesse oferecer ao seu credor. Desesperado em arranjar o dinheiro, fizera diversas viagens à capital, procurando patrícios que (ele pensava) poderiam ajudá-lo. Claro que tirara da loja a máquina da sorte, pensando em devolvê-la, mas não encontrou o homem de quem havia comprado.

Além de nada conseguir nas suas viagens, deixava a loja aos cuidados de Helga e da filha, e o movimento foi diminuindo. Uma coisa puxa a outra: sem vendas, não tinha dinheiro para comprar novas mercadorias. E sem mercadorias novas, os fregueses desapareciam.

Acompanhei com tristeza a decadência do compadre Helman. Através principalmente da comadre Helga, ficava sabendo de tudo o que acontecia. Assim, soube que Jonas comprou realmente uma fazenda no município e passou a fazer freqüentes visitas a Helman, esperando receber o dinheiro ou para ver como iam os negócios do seu devedor. Ou, talvez, lançar um olhar a Katerina, que se transformou em linda moça.

— Se pelo menos os dois se namorassem... — Um dia Helga me disse, mostrando esperanças de que a dívida fosse paga de outra maneira.

Katerina, porém, jamais demonstrou interesse por Jonas nem por nenhum rapaz e foi ficando sem namorado, ajudando o pai na loja e a mãe na arrumação da casa.

Alguns anos se passaram. Helman e Helga morreram e a Katerina continuou vivendo na mesma casa e mantendo a loja. Das quatro portas aberta para a rua, mantinha apenas uma, pois o estoque estava reduzido a quase nada. Não tinha muito cuidado em manter a limpeza da loja ou da casa. Ficou desleixada, ao contrário da mãe. As prateleiras vazias estavam empoeiradas e com teias de aranha. A casa ficou sombria e lúgubre.

Não se preocupava nem com a própria aparência. O viço desapareceu de sua pele, a alegria sumiu de seus olhos, os cabelos ficaram espichados e feios. Emagreceu muito e o rosto era marcado pelas covas profundas, rugas precoces e os dentes salientes saltando entre os lábios.

Por diversas vezes aconselhei minha afilhada a fechar definitivamente o negócio, e cuidar de si. Ela, teimosa, não me ouviu.

Foi quando Jonas sofreu um acidente na fazenda. Chegou ao hospital carregado pelos empregados, muito ferido. Tinha sido pisoteado por alguns animais e seu estado era grave. As pernas quebradas, ferimentos profundos na cabeça e escoriações por todo o corpo. Ficou no hospital durante dois meses. Ainda incapacitado de andar, mas não agüentando mais ficar no hospital, quis voltar para a fazenda.

Precisava de uma assistência especial, para trocar os curativos, tomar remédios nas horas certas e ajuda para se movimentar. Propôs que eu fosse tomar conta dele na fazenda. Consegui uma licença do hospital e fui ficar com ele.

Durante o tempo que morei na fazenda, ouvi a história de sua vida, cheia de altos e baixos. Fiquei sabendo da verdadeira obsessão que tomara conta dele, depois que ganhara o cartão com o prêmio que nunca recebera. Foi perdendo o entusiasmo pelos rodeios, pensando no que poderia fazer se tivesse aquele dinheiro. Foi para vigiar o alemão que tinha comprado a fazenda aqui por perto. E nas visitas, ele me confessou, procurou conversar com Helga, mas ela não lhe tinha dado nenhuma atenção.

— Me tratava como se eu fosse inimigo de seu pai. — Ele disse.

Naqueles poucos meses metido dentro de casa, sem poder sair nem cavalgar, o estado de espírito de Jonas foi ficando muito ruim.

— Acho que tou chegando ao fim, dona Beatriz. — Me disse um dia. — Não posso andar, não recebi meu prêmio, agora só me resta morrer.

Eu tentava fazer com que não se sentisse tão desanimado, mas ele só foi piorando. Até que caiu nu estado de depressão, em que só pensava na dívida, nos dez contos de réis. Gritava de noite, e quando eu o acordava, estava todo trêmulo e dizia que tinha sonhado com o alemão, o bandido, o ladrão...

Deixou de comer, não quis mais remédios e caiu em total desânimo. Não queria voltar para o hospital, de jeito nenhum. Fiquei com ele até o fim. Na última semana de vida, entrou em delírios e falava coisas sem sentido.

— Meus dez contos... receber...quero receber

Outras vezes, gritava:

— Laça... ! Laça agora...! Não espere...!

Mandei vir do hospital calmantes fortes, que nada adiantaram. As alucinações agora aconteciam também de dia. Jonas, com os olhos fixos no espaço, tentava se levantar, gritando:

— Meu pagamento...! Meu dinheiro...! Alemão disgraçado!

Uma única vez falou na minha afilhada. Foi ao anoitecer duma quinta-feira, dia 8 de setembro, dia de Nossa Senhora Aparecida. Eu rezava sentada ao lado da cama, quando ele abriu os olhos e falou, em voz mansa:

— Katerina...! Vem comigo...!

Arrepiei-me toda com essas palavras.

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O que realmente aconteceu na casa de Herman só as paredes testemunharam. (Dizem que elas têm ouvidos)

Katerina estava sentada à mesa da sala de jantar. O entardecer fora lento, a noite chegava de mansinho. Fazia algumas anotações nos registros da loja, que já nem existia mais. A cabeça ia se abaixando à medida que a luz ia diminuindo. O móvel estava empoeirado, como tudo na sala e na casa. Pelas paredes, nos vãos e nos cantos, teias de aranhas. A roupa que ela usava estava manchada e puída.

As sombras da noite foram tomando conta de tudo. Não percebeu o vulto que adentrou, vindo da loja. Uma figura de traços difusos, mas evidentemente um acidentado, com a cabeça enfaixada, braços machucados e pernas metidas em talas. Por entre faixas e curativos, manchas de sangue fresco. Caminhava lentamente, ou melhor, levitava, na sua direção.

Ela só se deu conta do vulto quando ele chegou bem próximo, parando ao seu lado. Ergueu a cabeça, assustada e ficou petrificada de terror com o que viu. Ouviu um som cavo, como que vindo das profundezas de uma caverna:

— Vim buscar meus dez contos de réis.

— Dez contos? Não tenho...

Imediatamente lembrou-se da dívida do pai.

— Você... você é...

— Vim buscar...dez contos...a dívida

— Não tenho! Já lhe disse: não tenho!

— Então...venha comigo!

Pegando Katerina pelo pulso, a arrastou consigo.

— Levo você...como pagamento.

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Há forças misteriosas que regem os destinos das pessoas. A obsessão por coisas impossíveis, a honra pelos compromissos assumidos, a falta de perdão. Quando muitas dessas forças atuam juntas num determinado momento, podem gerar dramas impossíveis de serem compreendidos.

Por isso ninguém entendeu o desaparecimento de Katerina na mesma noite do falecimento de Jonas da Silva.

Eu entendi.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 20 de setembro de 2008

Conto # 515 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 12/11/2014
Reeditado em 12/11/2014
Código do texto: T5032438
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