472-BONEQUINHA DE LUXO DO CARANDIRU

O PRESIDIO de Carandiru se tornou conhecido no país inteiro e no exterior quando, em agosto de 2004, numa rebelião sufocada de modo desastrado, mais de cem presidiários foram mortos. A história da chacina, bem como os desdobramentos, foram muito divulgados, gerando tal repercussão que resultou na implosão do próprio presídio, por absoluta falta das condições mínimas de funcionamento.

Bem, essa é a história oficial. Entre os muitos dramas particulares, surge agora a narrativa de Suzane, a jovem assassina dos próprios pais, condenada pelo crime hediondo, a 39 anos e 6 meses de prisão.

O crime, ocorrido em São Paulo, também foi do conhecimento geral. Suzane liderou dois amigos, rapazes de classe média alta, como ela, no assassinato do pai e da mãe, enquanto dormiam. Usaram barras de ferro e canos recheados de areia para massacrarem as vítimas. A causa do bárbaro crime: a posse da fortuna do casal, guardada no cofre, constituída de dólares, euros e jóias.

— A pena deveria ser maior, se a legislação brasileira fosse rigorosa com os criminosos. — Observou o Dr. Raymundo Franco, eminente jurídico da capital. — Mas todos sabemos que as leis brasileiras mostram, antes, complacência com os criminosos, esquecendo-se os direitos das vítimas e a defesa dos cidadãos.

No escritório da firma “Franco & Pedroso” o assunto é discutido com freqüência, pois o julgamento dos criminosos teve desdobramentos nos quais o doutor Franco participou em nome de clientes envolvidos no caso.

O MOTIM estourou com violência jamais vista. Mesmo os presidiários que nada tinham a ver com as desavenças das quadrilhas que imperavam no imenso presídio, foram envolvidos. Suzane, moça bonita, loira vistosa e desenvolta, foi uma daquelas que estavam no centro do furacão.

— Fica quieta, sua cadela! — Rosnou Mamede, a líder da ala. — Agache-se aí e bico calado!

Todos obedeciam às ordens da robusta mulata, cujas manoplas funcionavam com rapidez e precisão, derrubando, num bofetão, qualquer companheira de prisão que atrevesse a desobedecê-la. Susane já havia experimentado o peso das mãos fortes da fria assassina. À mulheraça eram atribuídas algumas mortes de seus desafetos dentro da prisão.

A confusão começou na madrugada de 24. De início, foram incendiados colchões. Agentes carcereiros foram feitos reféns. As gangues rivais aproveitaram-se para lutarem entre si. A confusão estabeleceu-se de tal forma que não houve possibilidade de conversações entre os rebeldes e a administração do presídio.

Na ala feminina a situação não foi menos confusa ou violenta. Empurrada violentamente para dentro da cela, que repartia com outras três condenadas, Suzane caiu de bruços sobre o chão frio. Mamede, que comandava tudo, dirigiu-lhe um sorriso superior:

— Vai ver agora o que é bom pra tosse, sua cadelinha branca. — Dirigindo-se para o corredor, gritou: — Ceição! Nica! Venham cá.

Apareceram duas megeras, que entraram de supetão na cela.

— Cuidem dela. Mas não façam besteiras.

Deitada de bruços, Suzane sente quando Ceição deita-se ao seu lado.

— Então, loirinha, tá cum medo? Fica cum medo não, to aqui pra te cuidar. — Passando a mão pelos cabelos loiros, vai descendo pelos ombros, cosas, ancas e detendo-se sobre as nádegas.

Nica, a outra que vai cuidar de Suzane, senta-se à beira do catre, abrindo as pernas de modo lascivo, passando a língua entre os lábios num gesto evidente de gozo antropofágico. A seguir, descendo agilmente do catre, segurou a cabeça da moça, enquanto aplicava-lhe um beijo gosmento que lhe machucou os lábios e deixou-a tão enojada que quase vomitou.

— Isto é para começar, queridinha. — Disse, ao separar sua boca da boca da moça.

Entre as presidiárias do setor feminino, ninguém sabia da extensão real da rebelião. Todos os presos foram confinados nas respectivas galerias. Muitos subiram até o pavimento superior dos edifícios, a maioria dependurava-se nas grades externas, enquanto que outros, os líderes e mais exaltados, mantinham os reféns e “negociavam” com o diretor e seus auxiliares.

Os serviços básicos, como alimentação ou o fornecimento de roupas limpas para as camas, foram suspensos. Pelo entardecer, a fome veio se juntar às torturas sexuais a que Suzane estava sendo sistematicamente submetida pelas duas presidiárias.

Com o passar das horas, Suzane já não sentia mais dores, amortecida que estava pelas sevícias ininterruptas. Estava num estado de torpor tal que não tinha mais ação própria. Apenas abria a boca para pedir água.

— Calada! Vamo ti dar água, sim, mas cê tem de ficar boazinha, tá entendendo? — Falou Ceição, a mais feroz das duas.

— O que você fez não merece perdão. Vamo, anda, abre as perna. – Introduz um pênis de borracha de volume avantajado na vagina de Suzane.

— Por favor, chega! Não agüento mais.

— Güenta sim, cadelinha de luxo. Tem de colaborar, se não, num tem água.

Não sabe a que horas da noite caiu num estado de semidesmaio, não se dando conta de mais nada. Mas o terror continuou, pois as duas não se satisfaziam nunca. Seus lábios crestados e machucados ansiavam por uma gota d’água e a fome era outro algoz.

DE MADRUGADA aconteceu a invasão do presídio por tropas da Policia Militar. A tropa entrou para valer, atirando para todos os lados. Ouve confronto. Em poucos minutos, a situação estava resolvida. Pelos corredores, pelas alas, nas celas e até no pavimento de cobertura os corpos espalhavam-se numa cena dantesca de Inferno na Terra.

Os corpos sem vida são alinhados num canto do pátio. Os feridos são atendidos em situações de precariedade ou retirados em ambulâncias.

Suzane sai da cela, mistura-se com as outras. Caminha quase se arrastando, apoiando-se nas paredes e segurando nas barras de ferro. Os enfermeiros passam correndo por ela. Consegue segurar, pela manga do jaleco, um homem vestido de branco:

— Por favor, estou toda machucada. Por fora e por dentro.

— Espere um pouco, temos casos mais graves.

Apesar do estado deplorável em que sem encontra, não merece a atenção dos enfermeiros e para-médicos, atarefadíssimos ante o número enorme de feridos graves.

OS SOBREVIVENTES foram transferidos para diversas penitenciárias no interior do estado. Suzane foi levada para uma prisão de segurança, juntamente com as companheiras de ala. Tenta se recuperar. Evita encontrar-se com Nica e Ceição. Mas não se livra da presença onipresente de Mamede.

— Tou de olho em você. Se abrir o bico, acabo com tua vida.

Ao ser visitada pelos advogado, relatou as horas de tortura e sofrimento a que esteve sujeita. Mas evitou dar os nomes da suas algozes.

— Vamos processar o Estado.Você merece uma indenização, pois o Estado é responsável por sua integridade física, sua segurança, enquanto você estiver cumprindo a pena. Vamos arrancar no mínimo um milhão.

A NOTÍCIA cai como uma bomba no escritório.

— Sabem da última? A bonequinha de luxo está processando o Estado por danos pessoais e morais!

Doutor Jeremias, um dos assistentes, mostra o jornal para os colegas.

— Essa é das boas!

— Aposto como ela ganhará.

No presídio, por meios jamais imaginados, as notícias chegam céleres. Numa manhã em que as presidiárias tomam sol no pátio, Mamede chega até Suzane:

— Tô sabendo que a cadelinha andou falando umas coisas...Que vai recebê dinheiro graúdo... Se não fosse por nóis, cê não ia entrá nessa grana. Intão, nois somos sócias nesse negócio. Quero metade do dinheiro. Nica e Ceição querem a outra metade. Senão...nem preciso dizê o que vamo faze cum você.

ÁNTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 11 de janeiro de 2008

Conto # 472 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/10/2014
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