471-O HOMEM SEM MEMÓRIA-
A CURVA DA MORTE era o trecho mais conhecido da rodovia que ligava a Usina de Grota Grande à Capital do Estado. A construção da represa tinha sido uma das obras de maior porte do país na ocasião e, para atender ao extraordinário fluxo de materiais usado na obra bem como ao transportes de pessoal, a estrada fora aberta seguindo os velhos caminhos pré-existentes. Anos depois, ao ser asfaltada, não fora retificada e continuou sendo cheia de subidas, descidas e curvas.
Desastres aconteciam constantemente. Muitos com mortes. Carretas, ônibus e carros chocavam-se nos trechos perigosos, que eram muitos. A passagem da ponte do Rio das Antas, que surgia de repente, após uma curva em descida íngreme, registrou, num só ano, mais de uma dúzia de acidentes. O que deu origem ao nome de Curva da Morte, como ficou sendo conhecida, apesar do nome dado à ponte, Dona Maria da Salvação de Souza lembrando a mãe do Governador do Estado.
Ficou na história o pavoroso desastre com um ônibus lotado de passageiros que, desgovernado, tombou na Curva da Morte, despencou pelo despenhadeiro e arrebentou-se de encontro às pedras da fundo do valado. Dezoito mortos no ato. Os sobreviventes, muitos em estado grave, foram levados para o então pequeno hospital de São Roque da Serra.
Na confusão dos primeiros socorros, foi difícil a coleta dos pertences dos passageiros. O local íngreme e de difícil acesso ficou coalhado de malas arrebentadas, sacolas destruídas e vestígios de toda a sorte dos passageiros. O delegado de polícia de São Roque seus auxiliares se viram engolfados pela quantidade de destroços e não foi fácil determinar o que pertencia a quem. Tarefa realizada na maior parte com a ajuda das próprias declarações dos sobreviventes.
Dentre os que escaparam com vida estava um homem que apresentava um talho feio, que ia de uma orelha à outra, passando pelo alto da cabeça. Foi um dos primeiros transferidos para o hospital, o que, de certa forma, lhe salvou a vida.
— Este sobreviveu por milagre. — Foi o comentário do doutor Luiz Cláudio, diretor do hospital, que, aliás, não acreditava em milagres, senão em sua habilidade e capacidade de curar.
Inconsciente ficou por seis dias. Quando abriu os olhos e começou a balbuciar algumas palavras, revelou-se a amnésia, pois não se lembrava nem do próprio nome. Começou falando coisas sem nexo e aos poucos foi se comunicando com certa dificuldade.Não se lembrava de nada.
— Está temporariamente desmemoriado. Precisamos de ter muita paciência com êle. — Recomendou o Dr.Luiz Cláudio.
Nenhum documento foi encontrado com o desmemoriado. Nada que pudesse identificá-lo. Quando pode se levantar, foi levado até uma saleta do hospital onde permaneciam os restos da bagagem que foram recuperados pelos policiais e que eram reconhecidos pelos acidentados em recuperação. Ali, não soube indicar, entre tantas roupas, calçados, restos de malas, o que lhe pertencia.
Da prancheta com anotações de seu estado vital, aos pés de seu leito, não constava o nome. Apenas o número de registro. Alguém do serviço de enfermagem rabiscou na linha destinada ao nome: João Ninguém. O nome foi logo obliterado, não sem antes ter sido lido por diversas enfermeiras e pelos médicos.
— Que brincadeira idiota. — Classificou o diretor, quando viu a ficha rabiscada. — O paciente merece respeito, seja lá quem for.
Se o nome não pegou, pegaram as iniciais. Passou a ser conhecido por Jota Ene.
Era alto, magro, de boa constituição corporal. Cabelos pretos lisos, a barba que começou a crescer também negra. Olhar profundo e suave, os olhos escuros como duas jabuticabas. As mãos eram lisas, sem sinal de terem sido usadas em trabalhos pesados. Voz agradável, fala cordial e educada.
Idade indefinida: tanto poderia ter 25 quanto 40 anos, não tinha rugas no rosto liso nem mostras de qualquer sinal de envelhecimento.
— Pra mim, Jota Ene é professor. — Arriscou um palpite Matilde, enfermeira buliçosa e atrevida.
A recuperação do ferimento foi rápida, o que mostrava se tratar de uma pessoa saudável. E quando pode sair do leito e começou a caminhar, revelou um grande interesse pelas atividades do hospital. Conversava com desembaraço com as enfermeiras e com Salustiano, o único enfermeiro do hospital.
Na certa viajava sozinho, pois não se revelara conhecido de nenhum dos sobreviventes.
— Pode ser que tenha viajado com algum dos que morreram. — Fotos dos mortos (que já tinha sido levados pelos parentes) foram mostradas a Jota Ene, mas ele não identificou nenhum.
— Este vai ser um caso complicado. — Vaticinou o delegado de polícia.
Sem identidade, sem ninguém que pudesse retirá-lo do hospital, ali permaneceu além do tempo necessário.
— Estou mandando sua foto para a Delegacia de Pessoas Desaparecidas da Capital. Se não sabemos quem é, não podemos liberá-lo. Pode ser até algum criminoso, foragido, qualquer coisa. Temos de mantê-lo aqui. — Precavido, o delegado não queria envolver-se em confusão.
— Mas ele já está bom. Pode ter alta. — Era o parecer do secretário do hospital, de olho na liberação do leito ocupado por Jota Ene. —
— Não podemos por no olho da rua um desmemoriado. Sob este aspecto, ele ainda vai depender de nossa atenção e cuidado enquanto não se lembrar quem é. — Insistia o diretor.
Aos poucos, alguma coisa do passado de Jota Ene foi se revelando, através de suas atitudes. Era o interesse e atenção que mostrava com as atividades das enfermeiras. Parecia-lhe familiar a rotina do hospital, as atitudes, as funções e o atendimento aos pacientes. Estava numa enfermaria, por onde passavam pacientes, com os quais conversava e aos quais incutia ânimo e coragem.
— É no mínimo estranho como ele se interessa pela rotina do hospital. — Observou dona Apolônia, a chefe das enfermeiras. — Eu diria que ele pode ter sido enfermeiro...ou coisa parecida.
E pelo seu carinho com os outros pacientes, a disposição com que ajudava as enfermeiras, como levantar um paciente, estender os lençóis, ajudar na colocação de travesseiros sob as cabeças ou ombros, evidenciava, sim, uma prática anterior.
Não demorou muito, já com a cicatriz escondida pelos novos cabelos negros, a barba bem cuidada emoldurando o rosto, e andando pela enfermaria, atendendo um, conversando com outros, Jota Ene se tornou uma pessoa constante e, por que não dizer, de muita utilidade ao serviço de enfermagem. Principalmente à noite, quando se levantava para atender seus companheiros de enfermaria, ao menor gemido ou chamado.
— A gente podia dar um treinamento pra ele. Assim, ele ficava trabalhando como nosso auxiliar. Enquanto não se lembrar de nada do seu passado. — A sugestão de Matilde, motivada pela simpatia que nutria pelo desmemoriado. Idéia que nem fora tão estapafúrdia, já que a Chefe, depois de alguns dias, concordou em por em prática.
Assim, antes mesmo da retirada do último curativo do ferimento nas costas, eis Jota Ene devidamente treinado nas primeiras noções de enfermagem e prestando serviços ao hospital. A situação lhe era confortável, bem como atendia ao recomendado pelo Diretor — mantê-lo ali enquanto não recuperasse a memória — bem como ao desejo do delegado de polícia, que mantinha sob suas vistas um elemento que tanto poderia ser um cidadão correto como poderia também ser um criminoso.
O apelido que lhe fora atribuído e pelo qual atendia sem demonstrar desagrado, passou a ser seu nome. Jota Ene, apesar de realçar sua condição de desconhecido e desmemoriado, não o incomodava, e assim passou a integrar o quadro de pessoal.
Caminhava com desenvoltura pelos corredores, cuidava dos pacientes com desvelo igual e, por vezes, maior do que o das colegas; era eficiente nas tarefas que lhe eram confiadas. Mostrou-se, em pouco tempo, um enfermeiro de bom desempenho profissional.
Ninguém que o visse diria que ali estava um homem sem passado e sem história.
PASSADOS ANOS sem que a memória retornasse e sem nenhuma pista de seu passado, um aspecto de sua personalidade foi se revelando: a profunda compaixão para com os doentes, a tal ponto de sentir com eles as dores e o sofrimento de seus males, embora não se manifestasse nenhuma espiritualidade nesse relacionamento. Era como se ele se sentisse responsável pelo mal de cada internado. Principalmente pelos idosos e pelos casos terminais.
— Não agüento ver tanto sofrimento. — confessou certa vez a Matilde, que se tornara sua amiga especial e com quem mantinha longas conversas.
— Isto não é bom, Jota Ene. Nós não podemos nos envolver com as situações dos pacientes. Não podemos ficar doentes com eles.
O que você precisa é de um pouco de carinho. De quem lhe dê atenção...amor — pensava a irrequieta enfermeira, sem coragem de exibir sua afeição pelo colega.
O HOSPITAL PASSOU por uma fase de ampliação. Novas instalações, aparelhos, novos médicos e mais enfermeiros e enfermeiras. Uma ala exclusiva para cancerosos foi inaugurada, com tudo novo, scanners, tomógrafos e ultra-sons modernos, a última geração de tecnologia hospitalar.
Novas técnicas de atendimento. Cursos de aperfeiçoamento para melhoria dos padrões. Jota Ene estava entre os selecionados para trabalhar no novo setor. Foi um dos melhores nos cursos e estava na primeira equipe de enfermeiros para a nova unidade.
Quer pela falta de registros anteriores, quer por desconhecer estatísticas de outros hospitais, ocorreu, nos primeiros anos de funcionamento, uma alta incidência de óbitos na ala dos cancerosos.
— Noto uma incidência elevada de óbitos na ala dos cancerosos. — Observou o diretor, numa reunião dos responsáveis pelos diversos setores do hospital.
— Todos o óbitos ocorreram em pacientes terminais. — Replicou o doutor Marcondes, chefe do setor em questão. — Nada de anormal.
Houve discussões e contestações. Por fim, o diretor instaurou uma sindicância sigilosa para acompanhar as atividades daquele setor.
No prazo das investigações, ou seja, em seis meses, oito pacientes vieram a falecer na unidade.
— É um número incrível! Supera em tudo o que acontece em outros hospitais.
— É um bom número, em se tratando de cancerosos. — argumenta o doutor Marcondes.
— Bom número! Estamos falando de gente! De pessoas doentes. Estamos falando de um departamento para tratar, curar, e não para deixar morrer.
Também para Matilde que, com Jota Ene, atendia no departamento, as mortes eram demasiadas. Mas nada que pudesse interferir. Ou poderia?
A curiosa e dedicada enfermeira não tinha conhecimento da sindicância sigilosa que investigava até mesmo ela. Mas achava que alguma coisa estava errada. Iniciou, por sua conta e risco, uma observação metódica de tudo o que acontecia no departamento de cancerosos. Principalmente sobre os pacientes em estado terminal.
O PACIENTE do apartamento 06 fora internado à tardinha. Diagnóstico: câncer na próstata. 65 anos. Aparentemente forte, bem disposto. Deveria ser submetido a exames no dia seguinte.
Por volta da meia-noite, Matilde cruza com Jota Ene no corredor.
— Vou dar uma olhada no paciente do zero-seis.— Ele informa. Ela segue para o laboratório, onde quer ver o resultado de alguns exames.
O internado do 06 faleceu naquela madrugada. Causa diagnosticada: ataque cardíaco fulminante
— Meu paciente não tinha nada do coração. — Informa o médico que encaminhara o canceroso ao hospital. Embora a causa mortis não se coadunasse com a ficha clínica, nada havia que pudesse invalidá-la.
Matilde ficou especialmente intrigada com o encontro de Jota Ene naquela noite. A desconfiança começou, insidiosamente, a trabalhar em seus pensamentos.
Gosto dele. Mas se sua atitude confirmar minha suspeita, serei obrigada a passar por cima de meus sentimentos.
Da sua investigação solitária descobre que há dez anos um hospital de S. Paulo apresentara um surto de mortes inexplicáveis. A policia chegara à pista de um enfermeiro, que desaparecera sem deixar pistas.
Eutanásia! Uma luz piscou em seu cérebro. — Alguém está praticando eutanásia no pacientes da nossa ala!
Por duas outras vezes ela relaciona as mortes às visitas de Jota Ene aos pacientes, altas horas da madrugada.
Antes de fazer uma denúncia, vou conversar com ele. Afinal, são apenas suspeitas. Quero ver se ele tem alguma coisa pra me falar. — pensou.
—PRECISO CONVERSAR com você — Matilde falaou com Jota Ene — Longe do hospital.
Marcam um encontro. Sábado à noite, um jantar no restaurante Altavista, distante da cidade uns quatro quilômetros.
O jantar já quase terminado, ela dirige a conversa para o assunto delicado.
— Estou bastante incomodada com as mortes de pacientes sem razão aparente. —
— Os diagnósticos são claros. Não sei do que você suspeita — Jota Ene responde calmamente. — Pensei que viemos aqui para afastar as preocupações de sua linda cabecinha.
— Não estou preocupada. Apenas noto algo de muito estranho acontecendo no hospital.
— Acho tudo muito normal. Pacientes que não têm cura, sem esperança. Sofredores. A dor não é um estado normal de nossas vidas. Não fomos criados para sofrer. — A voz calma de Jota Ene infunde uma estranha sensação de poder. Parece um deus todo-poderoso falando de suas criaturas.
O jantar termina sem que as insinuações de Matilde sejam consideradas como conversa séria.
— Vamos ao mirante. — A voz dele é envolvente e o convite, sedutor. — A vista de lá é simplesmente maravilhosa. —
Os dois saem para uma vista da cidade, distante e abaixo do local onde estão. O restaurante se impõe como ponto de observação, empoleirado sobre o alto de um penedo. Abaixo, numa pirambeira de mais de cinqüenta metros de altura, a escuridão das rochas. Ao longe, as luzes da cidade em rosários de pontos luminosos e clarões borrados de anúncios em diversas cores.
Matilde insiste na conversa sobre os óbitos. JN desconversa e a toma nos braços.
— Por que esta conversa agora? — Ele a envolve num forte abraço. Beija-a.
Envolvida pelo silêncio e pelas sombras do local, um tanto confusa, a moça se abandona num momento de romance.
Abraçados, ela não nota os sutis movimentos de Jota Ene. Ao sentir uma picada no braço, instantaneamente recupera o controle de si. Percebe num átimo o que está acontecendo. Ao invés de afastá-lo, agarra-se a ele com toda a força de seus braços. Compreende que no próximo lance do jogo mortal, o homem frio e cruel irá jogá-la no precipício.
Ele mantém a agulha inserida em seu braço, enquanto tenta desvencilhar-se do abraço. Ela resiste, apesar da sensação da perda dos sentidos começa a espalhar-se por todo o corpo. Mantém-se agarrada a Jota Ene. Ele sacode a moça, tentando afastá-la de si. Não há luta, apenas ele querendo desvencilhar-se de Matilde, ela agarrando-o cada vez mais, num abraço fatal. Os movimentos bruscos fazem com que os dois resvalem pela amurada sobre o precipício.
Na noite quieta, ninguém ouve o baque surdo dos corpos sobre as pedras, no fundo do penedo.
ANTÔNIO GOBBO
Belo Horizonte, 4 de janeiro de 2008
Conto # 471 da Série Milistórias