429-CALOR SENEGALESCO-

Sob o sol escaldante e um calor de mais de quarenta graus centígrados, o ar reverberava no pátio de estacionamento do supermercado, onde meia dúzia de carros jazia como máquinas de outro mundo. Falene empurrou o carrinho cheio pela metade com artigos suficientes para a semana, como sempre fazia nas tardes das sextas-feiras, seu dia de folga na escola de idiomas, onde trabalhava.

Abriu o porta-malas do minúsculo Citroen e estava colocando o primeiro pacote, quando se aproximaram dois homens. O primeiro ela reconheceu logo: o caixa que a atendera há minutos. O segundo era um policial corpulento, alto e obeso, sufocado pela farda vistosa porém quase que insuficiente para conter tanta banha. O quepe mais aumentava sua estatura, embora em nada contribuísse para seu conforto pessoal. Suava e ofegava., as mãos oleosas metidas na cintura, numa pose de caubói americano.

— Madame, a senhora deixou de pagar algumas mercadorias. — Disse o caixa, em voz áspera. — Deve voltar para pagar ou devolver o que não pagou.

— Mais, como c’est sa? Paguei as mercadorias que passaram por sua máquina. — Respondeu em francês ao funcionário. — Se não registrou tudo o que apresentei, problema seu. Mais, enfin, o que devo devolver?

— São duas caixinhas de pasta de amendoim. — O sotaque do caixa indicava sua origem: vinha do sul, de uma das tribos nômades que perambulam pela savana, nos limites com o deserto.

Falene examina rapidamente as sacolas, localiza os duas caixas de pasta de amendoim e as coloca nas mãos do caixa.

— Pois tome, aí estão as caixinhas. Se não paguei, não quero levar suas mercadorias. Não sou ladra. — O sol esquentava a cabeça de todos. O calor de Dacar no verão é insuportável e a mulher se sente desconfortável, ainda que seja uma nativa.

— A senhora tem de me acompanhar lá dentro para assinar um documento de devolução. — Diz o caixa, as mãos segurando as embalagens.

— Mon Dieu! Que complicação! Tome logo suas caixas e me deixa em paz.

— É o regulamento. Pra devolver a mercadoria tem de assinar o formulário.

— Não volto, não. — Enquanto fala, Falene coloca, em movimentos rápidos, as sacolas no porta-malas, fechando-o com estrondo. — Adieu!

Quando abre a porta do carro, sente a manopla do guarda sobre seu ombro. Vira-se, irritada:

— Tire suas mãos de mim. Já falei que vou embora.

O guarda não diminui a pressão.

— Como ele falou, madamí, tem de voltar. — O sotaque deste é diferente, parece ser estrangeiro.

Falene o encara. Deve ser do norte. A tropa do governo está cheia destes brutamontes do deserto. — Ela pensa.

— Não volto. Faça o que quiser com essa maldita pasta de amendoim.

— A madami tá presa.

— Alors, alors! Como se atreve! Já mandei. Tire suas mãos de mim.

— A madamí tá presa. — Repetiu o brutamontes. A mão desceu do ombro e segurou o braço com firmeza, puxando-a.

— Como, presa? Que história é essa. Presa por quê?

— Por furto de mercadoria e desacato à autoridade.

Levada aos empurrões para dentro do supermercado, foi parar na pequena sala do gerente, na qual o calor era tão intenso quanto lá fora. Ali, Falene foi submetida a outro vexame: a espera, por mais de quinze minutos, pelo preenchimento do “formulário de devolução de mercadoria”, feito pelo próprio gerente, que se esmerava na escrita e exagerava na demora. Tempo durante o qual passaram pela cabeça da jovem senhora algumas recordações significativas que a acompanhavam vida afora. Principalmente aquelas ligadas à segregação das mulheres em sua tribo, onde elas não tinham sequer o direito de usar o sobrenome paterno. Era apenas Falwuana. Devia sair sempre de cabeça coberta pelo “véu de Islã” e nunca olhar direto nos olhos de nenhum homem. Fugiu de casa antes mesmo de ser iniciada como mulher, numa prática cruel de corte do clitóris, e conseguira embarcar, em Dacar, num navio clandestino para a França, a Metrópole,lugar de maravilhas e de mil-e-uma lendas que corriam por todas as tribos do Senegal.

Estudou e se formou na França. Casou-se com Jean-Paul Fuzaid, argelino repatriado quando a Argélia se tornara independente. Solidária com seu povo, voltou para Dacar, com o marido. Ambos eram professores. Ela, em estabelecimento particular de idiomas e Jean-Paul na Universidade, na cadeira de Ciências. Pouco ajudara na reconstrução do Senegal, mas sempre procurara uma oportunidade.

Aquele incidente estava dentro dos padrões de comportamento dos habitantes do país. Muitas tribos habitavam a região, todas hostis entre si. A desconfiança campeava entre todos os habitantes das cidades, que traziam consigo os ranços e as inimizades tribais. Pelo sotaque, os indivíduos se identificavam e se hostilizavam. Bastava ter paciência e logo sairia dali, daquela sala de calor infernal, e daquele maldito supermercdado. Nem pensara em avisar o marido, pois era tudo tão insignificante...

— Pode assinar. — O gerente estendeu uma folha com muitos quesitos. Falene assinou sem ler e devolveu o papel.

— De minha parte, está tudo legal. Mas a senhora tem ainda de se haver com o desacato ao guarda, lá fora.

— Merde! — Falou entre os dentes. Levantou-se, saiu do acanhado escritório. Do lado de fora, o guarda a esperava.

— Vou levar a madami pra delegacia. Num divia ter me tratado daquele modo. — O sotaque era dos kayes, uma tribo hostil que habitava os limites do país, para o norte.

— Vou telefonar para meu marido.

— Na delegacia a madami fala.

Sem ter como resistir, deixa-se levar, no jipe quase-sucata, à “delegacia”.

O cubículo ocupado pelo delegado — outro guarda kaye, irmão-gêmeo, pela aparência, do anterior, — é quente e abafado, como todos os lugares fechados de Dacar. Uma escrivaninha, sobre a qual se debruça o delegado e um fichário de metal enferrujado encostado num canto. Uma decadência notável. Apesar da cadeira extra, Falene não é convidada a se sentar. Permanece de pé, esperando que o oficial de polícia, em movimentos lentos, arranje o formulário.

Mais um maldito formulário. Tomara que seja simples. — Pensa Falene.

— Quero telefonar para meu marido. É meu direito. — Falou em voz firme.

— Depois que assinar o formulário.

Respondeu às perguntas do delegado com rispidez. O calor parecia aumentar à medida que entardecia. Eram 17 horas quando assinou o formulário. Suava abundantemente, o cabelo emplastava-se na testa e na nuca.

— Quero falar com meu marido! — Repetiu ela, com veemência.

— O telefone está com defeito. Mais tarde...O julgamento será amanhã às 14 horas.

Foi sumariamente encarcerada. De nada valeram os berros e gritos, pedindo uma ligação telefônica. Com duas mulheres que já estavam na cela, passou a noite. O calor é tremendo dentro do cubículo. As outras mulheres mantêm distância respeitosa da recém-chegada. Não respondem às suas perguntas, seus olhares são de temor.

— Estão com medo de quê? Não sou leprosa nem vou comer vocês.

Não dorme. É uma noite de vigília, na qual toda a sua vida vem à tona. O calor parece não diminuir nunca, nem mesmo nas longas horas da madrugada.

Na manhã seguinte oferecem-lhe uma refeição intragável. A água também é imprópria. Mal dormida, mal alimentada e com a boca seca, ainda encontra forças para gritar.

— Me deixem dar um telefonema! Preciso de um advogado, de meu marido!

Debalde. Uma das mulheres fala num dialeto de tribos do deserto:

— Num adianta, dona. Eles num tem ouvidos pra ouvir nossos lamentos nem olhos pra enxergar nossa miséria.

Falene está desvairada, à beira do paroxismo quando aparece uma faxineira, limpando o corredor.

— Pelo amor de Deus, me ajude. Preciso mandar um recado ao meu marido. Jean Paul Fuzaid. Prometo-lhe uma grande recompensa.

Deu o endereço do marido. A faxineira, que acreditou na promessa de Falene, deu conta do recado.

Por volta das onze horas, chega Jean-Paul. O encontro foi lancinante. Através das grades, as mãos se tocando, um beijo rápido, lágrimas nas faces dos dois.

— Querida! Procurei-a por todos os lugares. Estava desesperado.

— Pois eu ainda estou desesperada! — E em poucas palavras, Falene narrou o tremendo qüiproquó em que, sem querer, se envolvera.

— O julgamento é daqui a algumas horas. Nem sei o que pode acontecer.

— Vou procurar um advogado e livrá-la deste maldito cárcere. Por favor, acalme-se, tudo vai terminar bem.

Jean-Paul encontrou logo um advogado. Mas as perspectivas não eram nada animadoras.

— Ela será julgada por um tribunal local, que segue a legisla-ção do Islã. O juiz será um fanático religioso islamita. Sua mulher é católica, já declarou isto, e será julgada com o máximo rigor. Embora as faltas sejam leves, estará sujeita às penas do Coram: para a falta de respeito com a autoridade, dez chibatadas. Apenas dez, pois a autoridade, no caso, é um simples guarda. Para a acusação de furto, a mão direita decepada....

— Pare, pare com isto! — Gritou Jean-Paul. — Quero saber o que pode fazer para tirá-la da cadeia e livrá-la de toda essa confusão.

— Infelizmente, nada. Só posso aconselhá-lo a procurar um “advogado” que seja também muçulmano – e que aceite a causa. Como o julgamento é daqui a poucas horas, duvido...

Jean-Paul não desanima. Procura amigos, colegas na universidade, mas a resposta é sempre a mesma. A lei do Islã é inapelável. Forte para os islamitas e implacável para com os infiéis.

Quando constata que seus esforços estão sendo inúteis, corre para a delegacia.

— As três mulheres foram enviadas para o tribunal. O julgamento começa daqui a pouco. — Informa um soldado de plantão.

Ao chegar ao edifício do tribunal, encontra a sessão em andamento. Uma mulher está sendo julgada, enquanto Falene aguarda sentada, vigiada por uma sentinela. O soldado impede que se comuniquem.

— Falene, tudo se resolverá. Tenha fé. — Grita, do fundo do corredor.

As horas que antecederam o julgamento foram as mais longas da vida de Falene. Ao entrar na sala de julgamento, estava estranhamente calma. Ou tão abatida pelo calor, fome, sede e cansaço, que já nem se dava conta da penúria dos sentidos. Sabia, por ser uma nativa do Senegal, por ter vivido a infância na tribo e pelo que estudara, das penas a que estaria sujeita, se condenada — o que era quase certo. Chibatadas, mutilações e até mesmo a morte eram penas corriqueiras nos tribunais islâmicos.

O calor intenso era multiplicado pela presença das pessoas no recinto. Sentia a pele escorregadia de suor. Sentia as exalações das pessoas ao seu lado e do próprio corpo. O único ventilador barulhento no teto da sala só fazia aumentar a sensação de calor e desconforto.

O procedimento do tribunal segue os cânones do Corão, aplicando leis e regulamentos que substituem a legislação implantada pelos franceses durante o período de colonização.

Para iniciar, Falene não é considerada mulher casada, pois o tribunal não reconhece o casamento católico, e então ela é uma mulher solteira vivendo em união ilegal com um homem desconhecido do tribunal. É acusada de roubo (embora o gerente do supermercado houvesse afirmado que lá tudo estava resolvido) e desrespeito à autoridade, na pessoa do guarda Abdulah, no estacionamento do supermercado.

— Não reconheço a autoridade deste tribunal religioso para me julgar. Serei condenada por ser católica e não pelas acusações que estão me imputando. — Pondo-se de pé, Falene falou alto, para que todos ouvissem, mesmo sem autorização do juiz. — Exijo ser julgada em outra instância que seja totalmente imparcial.

O juiz, entre surpreso e aborrecido, falou em tom ameaçador:

— Levaremos em consideração, para seu julgamento, estas palavras dirigidas contra a imparcialidade de nosso juízo.

Após uma sessão que mais parecia um simulacro de julgamento, o juiz dá a sentença:

— Pelo desrespeito público ao representante da lei, guarda Abdulah Gambah, a pena aplicável é de oito chibatadas, em praça pública. Pelo furto simulado de mercadorias no Supermercado Farrej, a pena imputável é o decepamento da mão direita. Tudo de acordo com os preceitos do Corão, o Livro Sagrado.

O juiz faz uma parada e olha para a assistência. Falene parece nem ter ouvido o dito pelo Juiz. Ouve-se um grito no fundo da sala:

— Não! Isto não é justiça, é uma farsa!

É Jean-Paul, que imediatamente é agarrado por policiais e arrastado para fora do recinto.

— Mas — O juiz retoma a palavra. — Tendo em vista as circunstâncias especiais que envolvem este julgamento e o fato de a ré não ser adepta do Islã, este tribunal comuta as penas em uma multa de mil francos senegaleses. Esta comutação é feita sem direito de apelação por parte da ré.

Parece que um suspiro perpassou por sobre os assistentes. Falene encarou o juiz, numa expressão muda de gratidão.

O juiz, com uma mudança estratégica da pena, havia resolvido satisfatoriamente a causa: a multa de 1.000 francos senegaleses (cerca de 50 francos franceses) estava dentro das possibilidades da ré e do marido (o juíz tinha suas fontes de informação) e se coadunava com a pouca importância dos “crimes” dos quais a ré era acusada. Alem de vir reforçar os rendimentos do juiz, pois para sua bolsa se destinam as multas do tribunal.

O tribunal se esvazia. O calor, fora do edifício, é intenso, apesar de serem seis horas da tarde. O sol ainda brilhará por mais uma hora, pois é verão no Senegal e Dacar é o ponto extremo a leste do continente africano.

Falene está há mais de 24 horas sob pressão e sofrendo as agruras do calor. Sem banho, alimentação parca e pouca água. Um pouco mais e estará desidratada.

À saída do tribunal, agarrada ao braço do marido, ela desmaia.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 25/09/2014
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