422-NA CADEIRA DE BARBEIRO-
Durante muitos anos, principalmente nos tempos das Guerras Mundiais, a Estrada de Ferro SPM trafegara entre São Roque da Serra e a capital do estado, levando riquezas produzidas na terra e trazendo produtos industriais, importados, cultura e lazer para o interior.
Desativada a ferrovia, por uma questão política, permaneceram os restos da estrada, que logo se tornariam ruínas: os trilhos que se estendiam como infinitas centopéias deitadas eternamente em leito de pedra britada, os postes do telégrafo, as estações nas diversas localidades servidas, as casas construídas para os funcionários graduados (o chefe da estação, o telegrafista, o bilheteiro, etc.) e as vilas, erguidas aqui e ali, ao longo da ferrovia, para moradia dos empregados encarregados da “conserva” da ferrovia.
As casinhas padronizadas exibiam o cuidado e o capricho dos engenheiros ingleses e tinham um estilo vitoriano simplificado. Eram construídas à meia distância entre as estações, e nelas moravam os bate-trilhos, os calceteiros e outros empregados. Estes modestos servidores percorriam a pé ou em rústicas carretas férreas, a extensão da ferrovia, verificando o estado dos dormentes, dos postes, da fiação telegráfica, da brita e até da capina da margem entre os trilhos e as fileiras de capim cidreira, plantadas nos dois lados para evitar a erosão.
Orozimbo era o bate-trilhos. Saia de manhãzinha, com o embornal suprido de almoço, martelo na mão, andando sobre os dormentes, a verificar se não estavam queimados ou se os grampos que prendiam os trilhos estavam soltos. Competia-lhe relatar qualquer ocorrência, o que fazia por recados escritos, passados diariamente à estação de São Roque. Percorria todo o trecho de cerca de seis léguas, ou seja, quase quarenta quilômetros a pé, e voltava pelo trem das quatro da tarde.
Perdeu o emprego e a função juntamente com seus colegas e vizinhos, seis famílias vivendo na “Conserva do Limão China”. Entretanto, foi-lhes permitido que permanecessem residindo nas casas e continuassem cultivando o terreno adjacente, cerca de cinco alqueires de terras. Como o terreno era indiviso, continuaram a plantar e colher em comum, como já faziam há muito tempo.
Comendador Leonino Cajazeira Alencar. Guardem esse nome. Pois o homem era o terror da região e a desgraça de todos os que se interpunham no seu caminho de ambição e poder. Vindo não se sabe de onde, casou-se com Tiana, filha única de Sinfrônio Aldelino e imediatamente assenhoriou-se da fazenda do sogro. Seu Aldelino, viúvo e achacado por doenças, foi confinado em uma casa de colono, uma tapera fria e insalubre, vindo a morrer antes que a filha completasse o primeiro ano de casada.
A mulher do comendador é uma escrava de forno, fogão e cama. O único filho Lindolfo estuda na capital.
Não satisfeito com a Fazenda Cipoal, foi se apossando das terras adjacentes, ale e aquém do córrego do Imbiraçu, por todos os meios de que dispunha. Fala-se que até mortes teriam ocorrido por conta das ocupações.
Ao tornar-se grande proprietário, um dos maiores fazendeiros de São Roque, é natural que as honras, ainda que compradas, chegassem até ele: ei-lo recebendo a dignidade de Comendador, ao adquirir, por um preço jamais revelado, uma cadeira no céu.
Sua sêde por terras não foi saciada nem mesmo quando suas posses chegaram até as cerca da estrada de ferro. Não gostava dos trilhos, das máquinas trafegando e muito menos da pequena vila, a “Conserva do Limão China” e odiava a presença de seus moradores.
Quando a ferrovia foi desativada, anteviu a vitória sobre os trilhos e tudo o que eles representavam.
“Agora pego a terrinha daqueles miseráveis.” Pensou, já planejando como iria ocupar a pequena gleba dos ex-ferroviários.
Dia 16 de agosto, festa de São Roque, padroeiro da cidade. Feriado municipal, com procissão e missa campal pela manhã, barraquinhas da quermesse e banda de música pelo resto do dia.
Os moradores da Conserva chegaram cedo. Eram simples e muito unidos. Orozimbo, por ser o mais atilado entre eles, era o líder das famílias e a quem todos obedeciam. Foram juntos e juntos voltaram da festa.
Ao chegarem, pelas quatro da tarde, encontram o pequeno sítio comunitário invadido pelas vacas.
— É gado do comendador. As vacas arrebentaram a cerca. — Entre gritos e correrias, tocam os animais, de volta para os pastos do comendador. Ao se aproximarem da divisa, vêem claramente que a cerca tinha sido desfeita, não restava nenhum fio de arame farpado nos moirões.
Um empregado do Comendador estava parado, montado em um cavalo malhado, no meio do córrego, cartucheira descansando nos braços. O malhado bebia água, quando o capataz gritou:
— Num dianta tocar o gado de vorta, não, gente! Agora isso ai — e apontou para as casinhas e as terras adjacentes — é tudo do cumendadô.
Os pequenos lavradores ficam atônitos.
— Mas a gente mora aqui faz tanto tempo. Tamos autorizado pela estrada de ferro.
— Nun tem cunversa, não. Se ocêis não tão contente, vão falar com o cumendadô. A orde é pra manter o gado até na ferrovia.
Orozimbo se prontifica em ir falar com o Comendador.
— Olha, seu Zimbo, aquelas terras são minhas. Eu não entrei antes porque num precisava. Mas comprei uma novilhada nova, e vou ter que pôr no pasto de lá.
— Mas...e as nossas plantação? O gado destruiu tudo.
— Ora, se me importo com as lavouras de vocês. Mas vou ser bonzinho. Podem ficar morando nas casinhas, se quiserem trabalhar pra mim.Quem não quiser, que suma já, pois tenho gente precisando de rancho.
— Seu comendador, dê um tempo pra gente...
— Num tem tempo nem meio tempo.
— Precisamos pensar...
— Que pensar, que nada. É pegar ou largar.
— Comendador...
— Óia aqui, Zimbo, já ouvi demais. Tá dispensado.
Orozimbo permanece ali, de pé, ante o comendador, refestelado na cadeira de vime. Não tem mais argumentação, mas não quer sair dali sem uma proposta digna para seus companheiros.
— A gente podia...
— Não pode nada. Cê não entendeu, Zimbo? Que sair daqui debaixo de taca? — Como que para reforçar sua palavras, bate com um relho sobre a mesa.
— Comendador, pelo amor de Deus, a gente precisa entrar num acordo.
— Que acordo, que nada, seu... não faço acordo com gente da sua igualha. Vamos, sai, sai, não quero ver mais sua cara. — Levantando-se, aproxima-se do mediador desfere-lhe uma forte lambada com o relho.
Orozimbo não é covarde mas sabe do poder do ex-vizinho, agora adversário. Retira-se levando a angústia do fracasso e a ira da agressão.
— A gente sabe como é trabalhar para o comendador. — João Neca expressa o pensamento de todos. — Ele não tem empregados, tem escravos e jagunços.
— Melhor a gente morrer de fome na cidade do que ficar escravo desse diabo. — Afirma Ditinho Gomes.
Dia seguinte, os poucos pertences arrumados em embornais, sacos e sacolas, as famílias começam a retirada da Conserva. Um capataz do Comendador chega com um recado:
— O cumendadô manda dize que se oceis quiserem trabalhar na fazenda, podem ficar. Menos o Orozimbo, que esse tem de ir embora mesmo, num pode ficar.
Ditinho Gomes responde por todos:
— Não precisamos da oferta do comendador, não, seu Xananga. Vamos todos embora pra São Roque. E seja o que Deus quiser.
— E vocês, fiquem com Deus. — Falou uma das mulheres. — Que São Roque ajude vocês todos a ficar livre do diabo..
As famílias se espalham. Desaparecido o vínculo entre elas, somem pelo mundo. Algumas permanecem em São Roque, muitas vão para outras cidades. Orozimbo foi para a capital.
O Comendador apronta-se para uma viagem. Vai à capital para a formatura do filho. Viaja só e fica hospedado em um hotel próximo à estação da Estação Rodoviária.
Na manhã seguinte à sua chegada, pergunta ao porteiro por uma barbearia, precisa cortar o cabelo e fazer a barba
— Ali na esquina tem uma boa barbearia.
O comendador assenta-se enquanto determina:
— Barba e cabelo.
Por uma dessas tramas do destino, acontece de o barbeiro ser Orozimbo, que mudou bastante, enquanto o comendador continua com a mesma aparência, talvez um pouco desgastado tempo. Reconhece o comendador mas este não vê no barbeiro o homem que destratara e maltratara há mais de dez anos.
O barbeiro inicia o corte de cabelo. Devagar, sem pressa. Vai conversando, aquela conversa de todo barbeiro, indagando, perguntando e sem querer o comendador fala de sua fazenda. Terminado o corte do cabelo, o barbeiro tira, escovando, os fios de cabelos cortados, retira a toalha, abanando-a. Coloca a cadeira na posição para o barbear, quase na horizontal. Estende de novo a toalha.
O comendador fica quase que deitado. Fecha os olhos, e a conversa diminui. O barbeiro ensaboa o rosto, enquanto puxa mais conversa. Afia a navalha. Começa a raspar a face do coronel. Começa pelas costeletas, vai descendo. O coronel está de olhos fechados, parece dormir, enquanto o barbeiro continua, agora quase que um monólogo.
— Conheço bem aquelas bandas onde fica sua fazenda. Até já trabalhei por lá. Me mandaram embora à força.
Passa a navalha de um lado do pescoço.
— Morava perto do córrego do Imbiraçu...— faz questão de acentuar o nome do riacho.
O comendador abre os olhos. Reconheceu a voz? Olha para o barbeiro. Este dá-lhe as costas, voltando a passar a navalha na larga tira de couro, amolando-a, apurando o fio.
Ao voltar, navalha em punho, passa-a suavemente pelo pescoço do comendador. Atento, o homem espichado na cadeira, olha nos olhos do barbeiro.
Reconhece o homem. Tenta lembrar o nome. Orzorio,... ozorino...Ah, que merda. Orozimbo, Sim. Orozimbo. Ao mesmo tempo, se dá conta da situação: espichado na cadeira, completamente à mercê daquele homem que ele expulsou das “suas terras”.
Olhos nos olhos, ambos se reconhecem.
— Pois é – o barbeiro delonga-se no ato de passar a navalha pelo pescoço do comendador. – Fui expulso, com minha família. Humilhado pelo fazendeiro que tomou as terras em que eu vivia. Passei fome, com minha família. Mas Deus ajuda quem se ajuda. Não fiquei lamentando nem perdi tempo. Vim pra capital e aqui estou... – a navalha ia e vinha, o fio suave escanhoando o pescoço.
O comendador começou a tremer. Não podia fazer sequer um gesto, o barbeiro estava ali, em cima dele, as mãos segurando-lhe o rosto, espichando a pele e esfregando a navalha. O frio do instrumento chegou até o estômago do velho. Suor brotava-lhe na esta.
— O mundo dá muitas voltas, não é, comendador? – fez questão de acentuar o tratamento. Prossegue, falando baixo, sussurrando no ouvido do comendador. — Quem diria que a gente iria se encontrar aqui no salão onde trabalho... e se sentar exatamente na minha cadeira...O destino...
O Comendador fecha os olhos. Estou perdido. Este louco vai me matar. Não posso fazer nada. Se levantar a mão, ele corta minha garganta.
Olha pra o barbeiro. Não vê os olhos, apenas enxerga os dedos passando pelo rosto e pescoço. Quer dizer que já está bom, acabe essa maldita barba, mas apenas um grunhido sai de sua garganta.
— Ah, não precisa pressa, comendador. Vou caprichar, o senhor nem vai se reconhecer quando eu acabar. Sabe, sou o barbeiro predileto do pessoal chique daqui. Termino com capricho meu serviço.
É agora. Desgraçado! Acabe logo com isto! — pensa, angustiado, o comendador.
O barbeiro levanta a navalha.
— Pronto!
Num golpe, fecha o instrumento, dobrando a lâmina, encaixando-a no cabo que lhe serve como bainha. O pequeno estalido soa na cabeça do comendador como o som de um martelo. Abre os olhos. O barbeiro o observa, com um sorriso nos lábios. Esfrega as mãos com a loção que irá aplicar no rosto escanhoado do cliente.
— Não precisa! Não gosto de perfume! — Grita o comendador, levantando-se de um salto da cadeira, afastando-se do barbeiro ainda com a toalha metida entre o colarinho e o pescoço.
— Ora, ora, comendador! Não se apresse. Gostaria de conversar mais com o senhor....
— Quando lhe devo? — Assumindo a postura de costume, tira a toalha e mete a mão na algibeira. Vem com um maço de notas na mão.
— Quinze “pratas” .
— Tome vinte e fique com o troco.
E se dirige para a saída da barbearia.
— Pare aí, comendador! — A ordem pega o fazendeiro de surpresa, que realmente pára e se vira. O barbeiro exibe uma nota de cinco, aproxima-se do freguês, mete a nota no bolsinho do paletó, dizendo em voz alta:
— Não aceito gorjeta de quem enriquece roubando.
O comendador nada fala.Sai do salão e some entre as pessoas que passam pela rua.
ANTÔNIO GOBBO –
B. HTE, 12/FEVEREIRO/2007
Conto # 422 da Série Milistórias