Ela
E n f i m
Ela, só ela. Pobre Daniela. Deveras, o mundo lhe pertence. Juventude exala de sua alma tal qual beleza não lhe foi poupada. Cabelos negros lhe escorrem até os ombros pequeninos, olhos escuros a presenteiam com ternura inefável. Os lábios rosados mal se abrem pra falar e sorrir. De corpo esbelto, a moça, fora emoldurada no mais belo traje humano que haveremos de ver. Porque ela é só ela. Vossa doce Daniela.
Foi verão, foi outono, foi inverno, foi primavera... Agora era verão de novo. O sol, virtuoso, incandescia lá em cima, abaixo dele o mar refletia-o em ritmo constante. Aves grasnavam no céu, “uma canção nova” pensou ela, Daniela. A brisa entrava pela janela de seu quarto, empurrava a branca cortina de seda. Ela observava a paisagem de pedra que se estendia pela metrópole colorida e praieira de Havana no crepúsculo do século XIX, casas coloridas pintavam a vista ao longe, palmeiras se agigantavam nas praças de comércio que beiravam o mar, o burburinho de pessoas era alto e doce aos ouvidos dela, tudo ali era belo a ela.
Ela tinha um amor, daqueles que só se vê em novelas dos tempos atuais. Certos dias, Daniela ia ao seu encontro... Mas adianto-lhe caro leitor de olhos grandes, não era um amor fácil, nem de perto. Ninguém sabia do caso de amor que a permeava, afinal era algo imperdoável.
As cinco horas batia no relógio, o sol se alaranjava no horizonte e o vasto mar perdia seu brilho. Daniela saiu de casa, um prédio verde de redondas janelas azuis, caminhou em meio à quase extinta praça de peixes e especiarias devido à hora que era. Alguns persistentes ainda ficavam lá a gritar promoções e “preços imperdíveis”. Ela parou em frente a uma barraca que vendia frutas “mais que raras vindas dos países meridionais ocidentais”. Produtos endêmicos eram de grande apreciação na época. Pegou duas de uma fruta alaranjada que no topo tinha uma forma de gancho. Pagou algumas moedas e lá foi ela em direção ao mar.
Chegando à fofa areia da praia andou por mais alguns metros na faixa branca em direção a um monte gigantesco de pedras que ficava no fim da vista. Lá nunca se viam pessoas, nem ao menos nos dias em que se reuniam para comemorar algo. Um lugar perfeito para se fazer o que sempre fazia lá. Chegando perto pode ver uma silhueta negra que estava de pé a observar o horizonte, o sol já havia se posto e a lua viera ocupar seu posto.
— Hatari — disse ela com um enorme sorriso na face e uma expressão de puro alívio.
Ele virou-se lentamente, seus olhos eram como o céu da meia-noite, de um profundo tom escuro. — Dani, minha doce criatura — sua expressão era tenra e sua voz belíssima.
Ela correu até ele, que a envolveu em um abraço afetuoso. A pele negra de Hatari reluzia à luz da lua, seus negros cabelos crespos eram curtos. Ele vestia trapos encardidos, rasgados e que cheiravam a mato.
— Senti a sua falta meu amor — envolveu seus lábios nos dele, um longo beijo foi plateado pelo satélite redondo que adornava o céu como uma joia. — Temi por não vê-lo mais. — se desvencilhou do beijo quente — está certo de que ninguém o viu?
— Certo jamais estamos — sorriu — mas garanto-lhe que fiz o possível. — Hatari era uma escravo da lavoura de cana-de-açúcar, vivia em uma fazenda perto dali. Viera da África, capturado e vendido pelos próprios nativos de sua tribo. — Senti sua falta também minha querida, estive tão desejoso por vê-la que mal pude esperar por hoje — Falava a língua perfeitamente.
— Hatari... não mais vivo sem você — ele havia soltado ela. Seus olhos escuros estavam fitos no horizonte, olhava além do vasto mar, agora negro, como se pudesse enxergar o lugar que mais desejava estar, como se seu continente pudesse ser visto, como se ele pudesse toca-lo. O mar cantava em murmúrios, as ondas ritmavam a canção.
— Sei disso — abriu um sorriso no rosto sem reciprocidade do resto da face, daquele que só os lábios fazem mas, que não é fruto da alma. Como uma casca seu sorriso nada sustentou, a expressão velada logo aterrou seu rosto em profunda conotação.
Ela tentou fazer um sorriso, mas não soube nem ao menos se ele riscou-lhe a face. — Veja — disse ela colocando a mão dentro do vestido sem muito exagero que usava — comprei-lhe isso.
Entregou a ele as frutas que comprara mais cedo.
Seus olhos brilharam. Pegou as frutas como se fosse uma frágil material precioso. Respirou fundo, olhou com ternura pra ela. Uma lágrima despontou dos olhos dele. — Há de existir pessoa mais nobre e amável que você minha pobre doçura...?
Ela o abraçou e ele meteu os dentes na fruta, mas ainda sem perder a postura galante que lhe fora um presente.
Os dois passaram um tempo a fitar o horizonte, conversando sobre fatos alheio e aspirações. Tudo muito dramático, mas amoroso. Um amor banhava-os como não se vê em dias atuais.
— O sol se fará em algumas horas querida, se eu não chegar a tempo não poderei entrar pelas cercas, talvez tenham acordado. — ela o olhou como uma criança desesperançosa, com só ela, Daniela, fazia.
— M... Sim Hatari, vá — um vago sorriso entoou-se — também tenho de ir, meus pais disseram que voltariam hoje com meu irmão.
Ela pulou em seu colo. Deu do mais quente abraço, com doce retorno. Um beijo molhado selou o encontro embaixo da luz da lua.
— Temo por ter de deixa-la ir sozinha.
— Os únicos malfeitores que haveríamos de encontrar aqui são piratas ou saqueadores, em nada se interessam por mim. O apetite sexual deles pode muito bem ser saciado por preço muito mais baixo do que o tipo de preço que haveriam de pagar por mim. Bordéis se fazem por toda a cidade. Hei de ficar segura meu amor.
C o n f i m
A lua ainda se fazia alva no céu — prestes a ceder lugar ao sol — quando Daniela chegou em casa, olhava para todos os lados temendo ser vista por alguém. Raras eram as moças que saiam a essa hora, as que o faziam dotavam de uma profissão inescrupulosa.
Deitou-se em sua cama, até então intocada. Era difícil pregar os olhos em noites como essa, mas logo adormeceu...
***
Um tom rubro reluziu em seus olhos, era o sangue que corria pelas pálpebras tocado pela luz rala que o sol os banqueteava naquele dia. Lentamente ela abriu os olhos. Lá fora o céu pintava-se azul, sem uma nuvem sequer.
— Ola?
Daniela em um pulo se levantou. A luz do quarto era tampada por uma silhueta borrada e escura. Ela estava prestes a gritar quando o irmão saiu da frente da luz e ela pode ver seu rosto.
— Assustada? — ele era uma cópia da irmã.
— O que faz a essa hora no meu quarto?
— Uma carta... nomeada ”Urgente”.
Ela não fazia ideia do que poderia ser.
O irmão prontamente trouxe-lhe a carta e saiu. Era amarelada, de um papel grosso e áspero, sem selo. Estava amarrada a uma fita sem nenhum sinal de capricho, apenas um modo pragmático de se comunicar.
Ela abriu a carta. E como uma peste que se apodera da pessoa o conteúdo a fez tremer, o coração gelou e os olhos se abriram em terror.
”Eu sei... pois eu vi” fora o que a carta lhe dissera em letras negras e caligrafia impecável. A viram na noite passada, Hatari corria perigo.
Nada mais importava. Ela tinha de avisar seu amor... Mas como?
Ela não poderia demonstrar inquietação. Deveria agir normalmente, mas não achou que conseguiria. Quantos dias até a próxima vez que veria seu amor? Três.
***
Os dias se passaram com um peso enorme, horas pareceram dias bem como dias pareceram meses. Mas finalmente havia chegado o dia, ela mal comera e mal dormira, mas era noite do dia do encontro. Conseguira disfarçar bem, seus pais nem ao menos pareceram nota-la, fazia o máximo para distanciar-se deles. Dessa vez sairia sem os pais estarem fora, teria de esperar eles dormirem, o irmão como sempre fora em lugares nada convencionais. Mas não pode esperar, saiu cedo com pretexto de ir a casa de algumas amigas.
Ela estava na rua quando um rosto conhecido a cobrou a atenção. Logo ela percebeu quem vinha lá. O pretendente que tanto a cobiçava, aquele que seus pais fervorosamente diziam que ela casaria, o chefe da guarda de Havana, uma pessoa a qual o que de maior ela queria dela era distância.
— Minha caríssima Daniela... — seu sorriso era torto. — O dia não poderia ser melhor — a voz continha certa acidez que ela reconhecera poucas vezes na vida.
— Luiz, que... bela surpresa — a voz desprovida de emoção.
O sujeito tinha cabelos louros guardados em um chapéu vermelho da guarda. Trajava sobretudo de cor idêntica e o rosto era uma ninharia de rugas. — Creio que gostará de me acompanhar... — ele parecia excepcionalmente vil, como ela jamais vira antes.
— Não posso... estou.
Seu sorriso assimétrico se desmanchou e uma expressão de enojamento pintou-lhe. Ele chegou perto dela, perto e mais perto. Ela podia sentir sua respiração em sua nuca, sentir o cheiro repulsivo que vinha de lá e de outras partes mais do ser. Ouviu um som molhado estalar em sua boca e uma voz quente e sussurrosa disse algo que ela jamais esqueceria — Não se desfaz de uma ordem do primeiro guarda assim, seu... preto, nem mesmo ele se desfez. — sua pernas tremeram, a energia se esvaiu do corpo. Uma pancada a atingiu, ela apagou.
f i m
Uma canção lamuriosa se fazia baixinha, um arrastar agradável de água e uma brisa salgada pintada de mar. Daniela abriu os olhos, a cabeça doía, e... estava onde mais queria estar, no ponto de encontro com Hatari. Seus coração disparou, ela foi tocada por certa euforia. Mas logo se dissipou quando viu, iluminado pela luz de uma fogueira que crepitava, a face ruinosa de Luiz.
— Minha bela, minha doce adormecida, acordara para prestigiar o espetáculo? — sua expressão era sádica.
— Daniela? — foi Hatari quem disse, ela procurou, ainda deitada, desesperadamente pelo rosto do amado, ele estava amarrado encostado em uma pedra. Sua pele brilhava em tom laranja e uma expressão de puro desesperança se fazia no seu rosto. Ela chorava.
— Meu... Meu amor — a cabeça doía, a alma doía, a vida doía.
Luiz chutou o homem — Cale-se, vamos acabar logo com isso. Saibam, o que vocês fizeram aqui é pior do que incesto — cuspiu ao chão.
Ela percebeu que ele não vestia o casaco, e logo o viu perto da fogueira.
Luiz pegou uma faca presa ao cinto e a direcionou ao escravo, disse alguma palavras que o fez soar como bêbado. Hatari ainda tinha lágrimas nos olhos, mas a feição pareceu mais serena do que nunca antes.
Daniela estava perto do casaco, colocou a mão nele e sentiu uma cabo frio e longo... A ARMA!!!
— Seu fim será justo para alguém como você, poupá-lo-ei de ver sua querida sendo amada como só um animal o faz melhor. — colocou a faca no pescoço de Hatari, a lâmina parecia mais gelada do que o comum. O mar usava uma canção mais frenética e ansiosa naquele dia. — De adeus ao mundo seu ne... — BUMMM, um zumbido estourou nos ouvidos do negro, ele ficou atordoado, não sabia o que havia se passado... mas logo se fez ver. Uma poça de líquido vermelho que mais parecia negro se espalhava pela branquíssima areia da praia, pedaços de tudo quanto é parte de um cérebro se espalhavam pelas pedras.
— AMOR!!! — gritou ela. Sua face estava contorcida por medo, alívio e muitas coisas que não se pode explicar.
Ela correu até ele, pegou a faca que estava caída ao chão como se não percebesse o sangue que a manchava e cortou as cordas que o prendia. Eles se abraçaram, ela chorava, ele sorria, um sorriso largo demais.
O mar... cantava a canção de alívio, calmo e retumbante.
Ele a olhou com uma expressão plácida, sorriu um sorriso de ponta a ponta. Sua expressão melancólica de sempre já não mais existia.
— Saiba... Amo você Daniela, minha cara e bela Daniela.
Beijou-a — O que há com você? Esta diferente?
Uma música inaudível pairava no rosto de Hatari. Um silêncio estarrecedor se fazia na alma dele. Lamúrias se dissiparam de sua existência.
Hatari respirou fundo, o sorriso diminui, mas era daqueles que se dá com a alma e com o resto todo. Seus olhos profundos como o céu da meia-noite se encheram de estrelas.
Mal sabia ela, vossa doce Daniela. Mal ouvira ela, minha doce Daniela. Mal pensara ela, essa doce Daniela...
Naquele dia, daquele ano, em 1886 a escravidão fora abolida de Cuba....