Imersão


Primeiro

Estou em um hospício. Sei disso, quando a sanidade me permite recordar. Entulharam-me em um quarto com mais 19 infelizes. Os leitos, cada um diante de uma janela, rangem quando nos deitamos ou a qualquer movimento que se faça na noite. Perco-me com freqüência e mal recordo do dia de ontem. Meu próprio nome é por vezes um mistério, um enigma. Escrevo neste caderno as memórias de minha loucura.

Sei que me alimentam, banham e cuidam, mas não me recordo da última refeição. Antes de terminar esta linha, uma enfermeira me pica com mais um injeção...

Segundo

Não me recordo quanto tempo faz desde a última vez que visitei este diário. Diário? Pode ser um considerado assim, tomando-se em conta os dias que consigo escrever. Não somos mais em 20, soube que três morreram ou sumiram. Seus leitos se fazem vazios. Durante a noite eu ouço gritos de pavor. Como estou sempre dopado, não consigo levantar-me e continuo tendo aqueles sonhos estranhos.

Recordo de um deles. Uma estranha luz entra pela porta e arrasta um a um cada um dos internos. São transferidos para um outro plano, outra dimensão ou simplesmente conduzidos a outra instituição. Não sei dizer ao certo. Pelo menos, se parassem de me dopar...

Terceiro

Hoje eu visitei um dos médicos. Ele mal tirou os olhos do papel e não me disse nada de novo. Quis afirmar que estava bem, que me sentia lúcido e que precisava partir. Não consegui dizer nada e estou aqui, na mesma, no mesmo estado letárgico.

Pela primeira vez me recordei de uma refeição. Uma massa amarelada, sem sabor. Ingeri por automatismo. Fiquei horas em uma sala assistindo a desenhos animados. Uma mulher atravessou seminua diante de nossos olhos. Muitos gritaram e aplaudiram. O simples fato de me recordar do ocorrido já é motivo de alegria.

A cada dia menos pessoas estão no pavilhão. Sinto que foram sugados pela mesma força. Escutei dois enfermeiros afirmando que vão se demitir. Não podem suportar tantos mistérios, tantos desaparecimentos.

Quarto

Acordei sozinho. Não havia ninguém no quarto. Como não houvesse enfermeiros, ou remédios, fui aos poucos conseguindo levantar-me. Caminhei e olhei pela janela. Os jardins estavam vazios. Bati palmas e ouvi o eco das mesmas. As camas estavam arrumadas, como se ninguém ali tivesse deitado.

Fui-me sentindo melhor e procurei pelas pessoas. No corredor sempre havia uma enfermeira de plantão. Procurei-a. Ninguém respondeu. Voltei ao quarto. Vesti minhas roupas. Fui saindo pelas portas, atravessando uma a uma, que estavam destrancadas. Uma névoa densa tudo recobria. Diante de mim havia um portão. Além do mesmo pude perceber muita luz, uma forte energia me arrastava para fora. Senti um impacto no peito. Um tremor no corpo... desfaleci completamente.


***

Acordei eu uma cama de hospital. Minha filha me beijava a testa enquanto suas lágrimas escorriam das faces lindas e brancas.

- Pai, pai. Você retornou do coma, finalmente, finalmente...