A Enchente
Não deve chover nesse ano. A gente da região não suportaria uma segunda tragédia. Todas as medidas têm sido tomadas para que o fato não se repita. Mas a natureza não dá avisos. Há pouco deixaram o espaço aéreo do município os helicópteros incumbidos do último estudo. Eles sobrevoaram os barracos dependurados no alto de um dos morros. A praça de esportes ainda mostra, em alguns aspectos, resquícios do que ocorreu há dois dias; a correria e o pânico temendo nova ocorrência foi o sinal da insegurança. Recolocaram as balizas da quadra que a força do vento levara ao chão. Mas ainda há tufos de grama espalhados. Poças que se transformam em lodaçal com qualquer chuvinha, fios de eletricidade pendurados e balouçantes aguardando reparo. Um poste inclinado envolto por corda presa ao tronco da árvore mais forte deixou de ser perigoso por causa dessa rápida precaução. No jardim destroçado da praça, pétalas arrancadas voaram, colorindo o passeio e estão sendo varridas agora por moradores inquietos e preocupados. As reuniões semanais voltaram a acontecer e o enorme quintal da associação dos moradores já se enche de mães que deixaram para trás seus tanques cheios de roupa para ocuparem os dois compridos bancos do varandão da casa e ouvirem o presidente. Em meio a galinhas que correm alvoroçadas, crianças sem camisa e descalças brincam na terra suja enquanto opiniões, conselhos e queixas são emitidos.
Há anos vem sofrendo a comunidade com o problema anual das enchentes. No último levantamento feito pelos homens da prefeitura duas mil famílias deixaram o local porque cansaram de esperar por recursos que ainda estão na promessa. Um passeio rápido por algumas ruas dá mostras do que ainda não foi feito e chama a atenção. Há crateras em vários trechos impedindo a passagem. Senhoras que se arriscam por ali para alcançarem os seus barracos do outro lado passam se equilibrando sobre troncos improvisados, erguendo a barra da saia para fugirem dos galhos de árvores que ficaram pelo caminho. As calçadas estão escorregadias da lama; há bueiros escancarados jorrando água, impedindo a passagem dos automóveis. O lixo está acumulado nos cantos do meio fio e mosquitos voejam sobre águas paradas. Amanheceram isolados do resto do município porque a rua que dá acesso à ponte continua interditada; mais uma vez tragada na parte baixa pelo rio que subiu com as poucas horas do temporal que surpreendeu a todos de madrugada. O tempo voltou a se firmar, mas o sol ainda é fraco e o mutirão se faz necessário. Junto aos homens uniformizados, pagos para esse serviço estão os que podem e os que querem contribuir. Pequeninos, jovens, homens impedidos de ir trabalhar e, lógico, muitas mulheres trouxeram seus baldes e suas vassouras. Para a enorme caçamba, já posta ali para essa eventualidade, voam sacos plásticos com o lixo que está sendo retirado; das casas, das margens do rio que ainda desce com fúria. E aí se vê como a forma imprudente de se desfazer dos detritos domésticos é um dos vilões da tragédia ambiental. O trabalho da draga é constante e eficaz, o que poderia ser evitado se fosse maior a conscientização. Por que não aprendem? Muito do desastre ambiental tem sua razão de ser no desleixo do próprio homem que precisa sofrer para entender e modificar suas ações impensadas.
O rio serpenteia entre as muitas vilas que compõem o lugarejo. Mas como a chuva cai na vertical e obedece à força da gravidade os afetados são aqueles que, por infelicidade, habitam as regiões mais baixas. Ali tudo se acumula. Os prevenidos e de melhor posse se adaptam à situação protegendo o que é seu. Gastam para projetarem calçadas maiores e reforçadas; em plano inclinado, para que a água não chegue. Ou providenciam chapas de ferro, resguardando da inundação sua área interna. Então ao transbordar-se o rio e vir com sua fúria em direção a esses portões protegidos, a água que ali se esbate ricocheteia e, com força ainda maior, vai de encontro a muros, entradas frágeis, invadem os quintais, as varandas quando não penetram na privacidade dos lares e, antes que se possa impedir, já fizeram o estrago. Com as mãos na cabeça, apavorada, a mulher não vê muito que fazer além de resguardar o que lhe seja possível. Às vezes tem um filho de colo que é o primeiro a requerer proteção. A água ganhando velocidade, inundando a sala, por baixo da porta que não suporta anteparos nem rolos de panos ou tábuas ou o que quer que seja. Se não se agir rapidamente, colocando para cima das camas os objetos mais preciosos, esvaziando as prateleiras inferiores dos alimentos, das roupas, dos livros, dos materiais perecíveis em água e atolando sofás, cadeiras e mesas até que não mais haja espaço para coisa alguma a perda será total e a desgraça maior ainda.
Nos dias que se seguirem a esse caos não será outra a atividade que não puxarem o barro amarelo acumulado em todos os cômodos. À medida que a luz do sol começa a ganhar força há um sinal de retorno à vida normal; afinal é preciso continuar. Poucos espaços restaram nas ruas ou nas calçadas em que é possível pisar com segurança. Além da lama e de entulhos atravancando a passagem há os enormes galhos que se desprenderam das árvores e estão bloqueando o caminho. Contudo, o clima de normalidade vai se fazendo presente. A escola, por estar situada no término da rua, em uma das partes mais baixas é uma das construções que mais sofrem o impacto dessas enchentes. O grande pátio desaparece embaixo da água que desceu impetuosamente. Tudo fica submerso e irreconhecível; as salas de aula da parte térrea são completamente inundadas. Quando se presencia ali, dias mais tarde, agentes da limpeza recolocando as cestas coloridas que recolhem o lixo novamente nos seus lugares, desta vez ainda mais firmemente presas às pilastras do pátio, desobstruindo os bebedouros entupidos de detritos e desinfetando uma a uma as torneiras empretecidas, purificando a água, enfim trazendo ao recinto sua dignidade, é porque o pior já passou e pode-se respirar aliviado.
Esta satisfação temporária que deve durar até o ano seguinte ou se eternizar caso se tomem todas as providências para que a tragédia não se repita não pode, todavia, estar presente na vida dos que moram nos casebres condenados pela defesa pública. Subir os degraus que levam até eles já é por si só empreitada suficiente para substituir qualquer outro revés que a vida possa querer aprontar. Sobreviver em barracos condenados deve ser o pior tipo de situação a se enfrentar em locais marcados pelas enchentes. Quando a família é numerosa, o que geralmente acontece, a preocupação é dobrada. Há que se dormir empilhados, num mesmo cômodo, sob a ameaça constante de um desabamento. Chega a ser perturbador o som da água escorrendo por debaixo das vigas que sustentam a casa. O estalar de galhos em árvores próximas. A pancada da chuva torrencial sobre as telhas de amianto, muito comum em barracos desse tipo. A mãe, preocupada, menos com ela própria do que com os pequenos que pôs no mundo, que nada ainda conhecem da existência, mal dorme à noite velando pela segurança dos seus. De hora em hora entra no quarto exíguo e desconfortável para prender a persiana que sacoleja com as rajadas de vento e puxar o cobertor para cima do casal de irmãos que dormem agarrados; o sono pesado tira-lhes por completo a noção do perigo. Ela seca o chão próximo à cama, recoloca o balde que ampara as goteiras que a esta altura já se fazem mais fortes e perturbadoras.
A madrugada avança, deixando a população em alerta, principalmente aqui no alto do morro. Pode-se constatar com facilidade que o desassossego é generalizado só de observarem-se as pequenas janelas dos barracos posicionados nas áreas de risco. As luzes bruxuleantes denunciam as famílias que não conseguem dormir temendo, por certo, não verem a luz do amanhecer se mais um capricho da natureza que não reconhece as ações imprudentes e impensadas do ser humano, transformar aquele cenário em algo desolador. No dia seguinte, os carros de reportagem, os jornalistas encapuzados cobrindo mais uma matéria que não gostaríamos jamais de rever.
Pessoalmente achei ridícula a manifestação popular contra a resolução da prefeitura de demolir toda aquela fileira de casas que vinha causando tormento à comunidade. Um dos moradores precisou ser energicamente contido pelos homens da viatura que viera reforçar a segurança. Depois de imobilizado ele foi jogado para dentro do carro e conduzido ao posto policial. Eu cheguei pouco depois quando a situação já se havia acalmado. Ainda corria barro pela encosta do barranco de onde havia se desprendido o pequeno casebre. Tijolos se balançavam agarrados às vigas que se sobressaiam no paredão da encosta. O vento, ainda atuante, embora mais fraco, impulsionava papeis e trapos, até então secos, fazendo-os sobrevoar as cabeças dos curiosos que aumentavam em número. A mulher chorava desesperada ao saber que sua casinha tinha ido abaixo.
- Meus filhos! Pelo amor de Deus, onde estão meus filhos!
Ela agarrava e sacudia um dos homens do corpo de bombeiro. O dia mal clareara. Removiam com todo cuidado o entulho, acautelando-se para o caso de ouvirem algum som ou algum gemido; usavam para isso as mãos e nada mais. Direcionavam-se os focos das lanternas para os vãos que se formaram entre os escombros. O vaso sanitário, ao descer, ficara emborcado, e por baixo do sofá cama que, segundo a mãe, era onde dormia a filha mais nova, de oito anos. A segunda filha, adolescente de dezesseis, é quem cuidava da casa nos dias em que a mulher tirava o seu plantão no hospital do estado onde trabalhava. A rotina era subir, cansada, os trinta degraus, levando para as crianças o pão, o leite e os biscoitos já ali em sua sacola. Preparava o café, acordava as meninas, despachava-as para a escola e só então se recolhia. A mulher era bastante conhecida e muito querida na vizinhança; sabia-se da precariedade em que vivia e muitos colaboravam na assistência às filhas na ausência dela. Até aquele momento pairava a dúvida quanto ao paradeiro das meninas; se elas dormiam ou não em casa naquela noite trágica. Havia a chance de terem se protegido contra o possível temporal em casa de algum vizinho e todos torciam para essa confirmação; caso contrário era uma chance em mil de estarem vivas debaixo de tantos destroços.
Aos poucos, na medida em que avançavam as horas, muito entulho já havia sido retirado e nenhum sinal de vida ou de morte. Bonecas da filha menor surgiam descabeçadas no meio de trapos enlameados, alumínios retorcidos, pedaços de moveis, restos de portas. Um a um os objetos iam sendo afastados ou retirados; quase impossível ainda tentar-se aproveitar alguma coisa; mesmo a televisão que parecia intacta. O botijão de gás, alguns eletrodomésticos como a geladeira, o liquidificador davam mostras de um estado quase perfeito. Mas nada disto importava agora a não ser o resgate das vítimas, caso ali estivessem. A aglomeração aumentava; curiosos circulavam a fita amarela que isolava a área do acidente. Não houvera chuva forte aquela noite, mas a estrutura do terreno onde estavam as casas já condenadas corria o risco de ser afetada à menor mudança de tempo e foi o que ocorrera. Prova disso é que, fora aquela ocorrência, a atividade seguiria normal no lugarejo. A escola abriu normalmente as suas portas e foi de lá, já quase no final daquela manhã inesquecível para essa mãe desesperada que veio a noticio que acalmou o seu coração. As filhas estavam a salvo e muito bem. Enquanto merendavam souberam, pela diretora, do ocorrido. Dispensadas, foram levadas até a mãe que, não suportando a emoção de vê-las intactas e lindas como sempre dentro da sainha azul marinho e camisa branca do uniforme colegial, soltou o choro da emoção enquanto beijava-as e abraçava-as copiosamente. Agora é começar vida nova; tudo de novo. Com a ajuda dos amigos. Que nunca falham. Ou do governo. Se quiserem contar com isto.