Não apague as luzes ainda
Havia acabado de assistir a uma maratona de filmes de suspense, quatro horas seguidas na companhia de demônios das mais variadas classes, assassinos com mascaras estranhas e criaturas pegajosas das mais diversas formas.
Estava prestes a adentrar o território das bruxarias macabras quando, como que por feitiço, as sendas do sono foram jogadas sobre meus olhos e, num bocejar incontrolável, percebi que seria impossível prosseguir em minha odisseia do terror.
Olhei a hora em meu celular.
“Puts!”
Passava das duas da madrugada. Eu estava tão bem embalado sobre os sofás modulares de casa envolto em minhas pesadas cobertas para suportar o duro inverno com que o ano presenteava a cidade, que por um momento pensei em permanecer naquele casulo de lã e despertar como crisálida apenas pela manhã.
Mas eu tinha aula logo cedo, e o que era pior, meu pai acordava mais cedo ainda para trabalhar e se me pegasse dormindo na sala sabia exatamente qual seria sua reação.
__ LUCAS!!! DEMÔNIO DE MOLEQUE!!!
Seria seu grito, seguido por uma lastimável lição de moral que desejava de coração evitar, portanto, a muito contragosto e meio sonâmbulo, me desentoquei de minha gruta e me coloquei em pé para iniciar a dolorosa jornada rumo aos subterrâneos de meu quarto no porão de casa.
Pode parecer que toda essa horda de pensamentos era assim conexa, mas posso garantir que eles me vinham de forma confusa e fragmentada já que me encontrava embebido no éter torpe do sono.
Não sei quanto tempo levei até que encontrasse o controle da televisão mas desliga- la foi o primeiro erro que cometi, dando início ao meu pesadelo.
A pouca luz que resistia bravamente iluminando parcamente a sala era proveniente do aparelho de TV e se afogou completamente na escuridão quando a desliguei, esperei um momento para que minha vista se acostumasse, mas isso é impossível quando não existe nenhum feixe de luz.
Um calafrio correu tilintando por minha espinha, creio que nunca havia estado em uma escuridão tão profunda e silenciosa, tão quieta que era possível sentir “coisas” vivendo encubadas nela. Um alarme de perigo se acendeu em meu cérebro, sei que parece loucura, mas uma floresta pode parecer assustadora com seus diversos ruídos de insetos e farfalhar do vento nos galhos, mas imagine se de repente até esses mais simples ruídos cessassem, ai sim essa floresta se tornaria verdadeiramente apavorante pois instintivamente você saberia que algo muito ruim estava se aproximando fazendo o próprio vento se calar.
Era essa a sensação que tive, de que algo muito ruim tinha se aproximado.
Precisava de uma lanterna, uma fonte de luz, precisava de meu celular, mas não fazia ideia de onde tinha deixado ele depois de ver as horas alguns minutos antes.
Vendado pelas trevas ao meu redor e sentindo a pulsação de algo grotesco a minha espreita comecei a tatear lenta e cuidadosamente a mesa de centro da sala em busca do telefone.
Sentia a superfície lisa do móvel e ainda conseguia me manter calmo quando senti colocar minha mão sobre outra, mais seca e alongada que a minha, encaixando seus dedos nodosos entre os meus.
Assustado puxei minha mão rapidamente e senti aquela garra seca se desmanchar em pedaços condizentes com sua aparente velhice, o único consolo que tal situação pode me dar foi o prazer de ouvir aqueles pedaços dos dedos secos rolando sobre a mesa e caindo no piso pois esse som ao menos quebrava o silencio ameaçador que pairava sobre minha cabeça.
Mais aliviado sentei- me no sofá, o que me fez ter a ideia de tatear minhas mãos sobre ele para procurar meu aparelho.
Minha expedição cega foi interrompida pela muralha de cobertas, como um criminoso que cava um túnel para sua fuga, me embrenhei sob elas e seus abafados túneis de tecido.
Minha busca pelo celular, ou qualquer fonte de luz que acalentasse a gélida sensação de vazio provocada pelo breu em meu coração me levou por quilômetros a fio naqueles labirintos subterrâneos, infinitos túneis dentro de minha fértil imaginação, mas estava cada vez mais perdido neles. Continuava a tatear em busca de meu celular, e cada vez me afundava mais naqueles túneis.
As cobertas cederam se transformando em sete palmos de terra sobre minha cabeça, não podia respirar, estava sufocando!
Esticava desesperado os braços de um lado para o outro, tentava freneticamente me livrar daquele peso, me livrar daquela membrana quente ao meu redor que grudava em meu corpo, era úmido e pegajoso. Foi quando percebi, não era terra! Eu estava no estomago de alguma criatura abissal, saída dos mais terríveis pesadelos e que tentava me digerir ali mesmo!
“Nunca deveria ter me aventurado nesses domínios escuros!”
Era a única coisa que conseguia pensar.
Afinal aquelas trevas só eram familiares àqueles demônios, não a humanos como eu.
Num último esforço me debati com ainda mais força o que fez o sofá em cima do qual meu corpo se apoiava abrir sua mandíbula e me engolir por completo entre seus dentes.
Caí com um baque seco em uma planície de gelo, o frio do piso começou a consumir meu corpo me paralisando, quase desejei estar de volta ao aterro abafado do qual havia escapado, o frio era ainda pior pois se aliava perfeitamente a escuridão e a solidão.
Pouco a pouco o frio que percorria meu corpo ia me relegando ao esquecimento, luz e calor eram apenas uma lembrança muito longínqua em minha mente.
“É isso.”
Pensei com minhas últimas forças.
“É assim que termina!”
Sem esperança deixei o peso das trevas irem fechando lentamente meus olhos enquanto a flor de meu ser ia murchando junto ao frio invernal do piso.
Gostaria que toda minha vida tivesse passado diante de meus olhos como nas narrativas épicas, mas a verdade é que senti apenas medo, frio e solidão.
Talvez essa seja a essência de todos os homens, talvez seja contra isso que todos lutem a vida toda!
Mas não importava mais...
Eu tinha perdido a luta.
Um forte zumbido em conjunto com um intenso brilho azul me surpreendeu explodindo bem diante de meus olhos. Com o susto afastei instintivamente a cabeça e bati minha nuca muito forte contra a quina da mesa de centro, a dor excruciante me trouxe de volta a uma dolorosa consciência de minha existência.
Olhei para fonte de minha luz azul salvadora e vi meu celular vibrando numa poça de luz refletida no piso gelado da sala como um besouro tentando se desvirar no deserto.
Peguei o aparelho e o usei seu brilho para guiar minha mão até o interruptor da sala.
Acendi a luz sentindo o galo em minha cabeça e li a mensagem que vibrava insistente no visor do telefone:
“VOCE UTILIZOU R$ 0,99 DE CREDITO DE SEU PACOTE DE INTERNET”
Sorri sozinho com a mensagem.
Mas meu sorriso se desfez muito rapidamente quando levantei minha vista do visor para a sala, ela estava completamente revirada como se espiões tivessem procurando por documentos de Estado ali.
A mesa de centro tinha todas as peças de xadrez tombadas sobre ela que iam rolando e caindo uma a uma no piso, as cobertas estavam jogadas pelo chão, os sofás virados de pernas para cima...
Apaguei novamente as luzes para não ser forçado a ver aquela cena que me dava calafrios mas dessa vez utilizei a luz do celular para me guiar escada a baixo rumo a meu quarto e meu merecido descanso.
Deitado na cama ficava imaginando que espécie de Demônio era capaz de fazer uma coisa daquelas?
Talvez nunca saibamos a resposta.
__LUCAS!!! DEMÔNIO DE MOLEQUE!!! QUE DIABOS VOCÊ FEZ NA SALA???
Ou talvez sim!