360-ONÇA DE CABLOCO-Caça a onça fantástica

O que é lenda para o branco, é sagrado para os índios. A onça-de-caboclo ou onça de sete malhas é o espírito de índio que morreu e foi enterrado, ao invés de ser queimado, conforme determina a tradição da tribo dos Jabaquaras.

Esta tradição não foi observada quando morreu, no hospital da cidade, o velho Joki-Andú, atacado de febre desconhecida. Morreu na cidade e no cemitério foi enterrado, razão pela qual na Mata Madrumida vagueia uma feroz onça que leva medo e morte à tribo e ao pessoal que por lá transita. É a maldição da onça-de-caboclo. Ninguém consegue matá-la, por dois motivos: ela só aparece à noite e só morre por facadas.

Pedrim Mentira, grande caçador e maior mentiroso, se propõe a dar fim na onça.

— Não creio nessa história. Vou pegar a bicha.

Por via das dúvidas, antes de entrar na Mata Madrumida (que se estende pelo sul da Bahia, nordeste de Minas, norte de Espírito Santo, região habitada pelos Jabaquaras) ele vai visitar a tribo e conversar com o chefe, para saber dos costumes da terrível onça.

O pajé, ou feiticeiro da tribo, aconselha a Pedrim

— Óia, meu fio, meior suncê se aprecatá. Ela só morre esquartejada de facão. Se suncê subesse atirar de frecha, era meior. Mais vô lhe dar este saquinho com rapé, procê usa contra a bicha.

— Rapé? Contra a onça? — Pedrim estranha.

— É um rapé infeitiçado, um rapé de morte. Cê fazi assim: amarra um leitãozinho ou um cabritinho, pra sirví di isca. Meior um cabritinho, qui berra mais arto, a onça chega logo. Cê ispaia esse rapé in ao redor do bichinho amarrado. Quando a onça chegá perto, fica zonza com o cheiro, aí, si uncê tivé corage, ataca ela de facão.

— Tenho uma cartucheira que é tiro e queda. Vou atirar com ela.

— Num dianta nada. Ela só morre no fio de facão. E tem de cortá ela tudinha. E dispois, tem de queimá.

Pedrim tem mais confiança na sua Flaubert de dois canos e na garrucha que leva enfiada na cintura. Assim mesmo, pega o saquinho de couro com o tal de rapé de morte.

Não custa fazer como o índio velho mandou.

Pedrim escolhe uma árvore alta, de galhos fortes, isolada numa clareira. Constrói um jirau a mais de cinco metros do chão. Começa cedo, cortando bambus e galhos finos. O cabritinho berra o tempo todo, mas Pedrim não se preocupa, pois a onça só ataca à noite. Pelas três da tarde, já está com tudo pronto.

— Ainda dá pra tirar uma soneca — pensa. Mas antes espalha o pó ao redor do cabritinho, que berra desesperadamente. Sente o cheiro nauseabundo do “rapé” e sobe logo para o estrado para um cochilo antes do anoitecer.

Acorda com o sol já se pondo, a mata escurecendo. Desce, vai até o córrego, enche a cabaça de água, verifica se o cabrito está bem amarrado e sobe de novo na árvore. Mastiga um punhado de paçoca de carne e se prepara para a espera da onça. .

A lua aparece pelas nove horas, iluminando a mata, penetrando por entre as folhagens e dando uma boa visão do local onde a onça deverá aparecer para pegar o cabritinho.

Só espero que esse rapé enfeitiçado e fedorento não vá espantar a onça.

Não tem de esperar muito. O cabritinho, vencido pelo cansaço ou pelo cheiro do pó, berra menos, e tem períodos de silêncio.

O bichinho num tá agüentando o fedor do pó do feiticeiro. — pensa Pedrim.

Subitamente, o berreiro ao pé da árvore indica que a onça está por perto. Pedrim olha pelas frestas do jirau e vê, no escuro as duas brasas que avançam com cuidado. Advinha os passos da bicha e até o tamanho, pelo deslocar do brilho dos seus olhos. O cabrito berra desesperadamente. A onça sai das sombras e mostra-se em toda a sua magnífica postura. Vem rastejando, lambendo os beiços, antegozando o festim

Pedrim, o olhar treinado de caçador experiente, observa o magnífico animal na sua aproximação cuidadosa. É um raro exemplar de onça, o pelame pintado com grandes malhas.

Com a espingarda nas mãos, deitado sobre as folhas do jirau, faz mira no animal. Visa a cabeça, pois a espingarda é potente, capaz de, atravessando o crânio, colocar as balas bem no cérebro da caça.

A onça rasteja com cuidado. Pedrim faz a mira. O cabrito lança berros estridentes.

Quando Pedrim começa a apertar o gatilho da espingarda, a onça estaca, a fim de dar o salto fatal. Mas, para surpresa do caçador (e quem sabe, até do cabritinho) a bicha rola preguiçosamente pelo chão. Imobilizada como se morta, as patas estendidas, lá está a bichana.

— Mas o que é isso?Cê pensa que vai dormir?

Sem mais pensar, o caçador instintivamente aperta o gatilho, faz o primeiro disparo. Sente, mais do que vê, que o tiro acertou no alvo.

— A bicha nem estrebuchou. Será que o pó fez efeito?

Por segurança, aperta mais uma vez, e o segundo tiro atinge a onça, desta vez na nuca.

— Cê num mi escapa, pintada!

Espera mais alguns instantes, observando para ver se o animal está mesmo morto. Passando a mão no facão e enfiando a garrucha na cintura, desce com cuidado, sem tirar os olhos do animal. Ao pé da árvore, olha para o animal. Sente que o fedor do pó enfeitiçado é quase insuportável.

Parece que a bicha desmaiou antes que eu lhe mandasse as balas.

O cabritinho continua o berreiro. Com um golpe do facão, corta a corda que o prende a árvore. Sentindo-se livre, a isca sai em desabalada carreira e some na mata.

Pé ante pé, Pedrim se aproxima da onça. A garrucha está na mão esquerda e o facão na direita.

Eis que, de repente, a onça se põe de pé e num átimo pula para cima do caçador. Atento, dispara a garrucha. Um tiro certeiro atinge a barriga da fera. O que não diminui o impacto sobre Pedrim, que, largando a garrucha, ergue o facão com as duas mãos. Quando a onça está sobre ele, a lâmina penetra no peito do animal. Ao cair sobre Pedrim, jogando-o ao chão, o animal perde as forças e estertora. Pedrim sente na cara o último bafo da fera.

O caçador se desvencilha com dificuldade do peso sobre si.. O sangue escorre do ferimento do facão. Colocando-se de pé, Pedrim nota que os ferimentos das balas não sangram. Somente do corte do facão é que escorre sangue.

É como se as balas não tivessem atingido a bichona!

Pedrim se lembra das palavras do velho feiticeiro: “Ela só morre esquartejada de facão”.

Limpando as mãos e o rosto do sangue e das folhas, Pedrim verifica que está apenas arranhado no ombro esquerdo, onde a pata da onça atingiu-o, já sem forças.

Vou fazer como o pajé me falou. Afinal, foi graças ao pó que a bicha perdeu as forças, ficou quase desmaiada. Se não esquartejo, é capaz dela voltar..

Não estava cansado, apenas muito agitado. Por isso, tomando do facão, foi retalhando o animal.

É uma pena não poder aproveitar nem o couro. É uma beleza de pele. E tem mesmo sete manchas.

Amontoou os quartos, as patas, a cabeça, tudo, enfim, do animal esquartejado, jogou galhos e folhas secas por cima e usando a binga, atiçou fogo. Num instante, uma fogueira se elevou. De novo sentiu o cheiro terrível do rapé da morte, misturado com o da carne queimada.

Pedrim afastou-se e ficou observando a dança das chamas. Agora, já cansado e com sono, sentado num tronco caído, deixou-se fascinar pelas labaredas que subiam até as primeiras galhadas da enorme árvore sob a qual tudo acontecera.

Apesar de exausto, pode ver, entre clarões, a figura de um grande índio que brotou do centro da fogueira e foi desaparecendo, no meio do fogaréu, rumo ao céu.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/08/2014
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