O retrovisor
Já passava da uma hora da manhã quando Santiago saiu de Montes Negros pela estrada que o levaria até seu rancho no pequeno vilarejo de Cruz das Almas. Não gostava de andar fora de hora por aquelas estradas, existiam muitas histórias estranhas que eram contadas no povoado e que fazia com que muitos evitassem andar sozinhos à noite, alguns casos deixavam até mesmo os mais valentes com um pé atrás.
Santiago saíra no final da tarde rumo ao hospital em Montes Negros. Jácomo era empregado de seu rancho e tinha sido picado por uma cascavel, o atendente do posto de saúde de Cruz das Almas não quis medicá-lo por que “picada de cobra só podia ser curada por benzedeira” assegurou, e que deveria levá-lo à Nhá Chica. Chegara à Montes Negros, cidade mais próxima, já estava anoitecendo e só saiu do hospital por volta da meia noite, quando Jácomo estava fora de perigo, apesar de ainda ter que ficar em observação pelo resto da noite. Deixou um dinheiro para Lúcia, esposa de Jácomo, e prometeu que voltaria na manhã seguinte para buscá-los. Passou por um posto de combustível, abasteceu sua caminhonete e aproveitou para comer um lanche e tomar duas cervejas.
A noite estava escura, sem lua e um pouco fria, apesar de ainda ser início do outono. Montes Negros ficava a trinta quilômetros de Cruz das Almas, a estrada entre as cidades era sinuosa em muitos trechos e bastante esburacada, o que tornava a viagem lenta. Santiago costumava gastar cerca 40 minutos no trajeto e mais 10 minutos de estrada de terra até seu Rancho. Mesmo tentando não pensar nas histórias sobre a estrada, lembrou que era chamada de Desvio dos Gomes - em alusão à morte de uma família inteira numa encruzilhada, que estava mais adiante, onde o carro em que estavam se chocou contra uma paineira centenária. A história era muito estranha, pois, naquela estrada não dava para andar em alta velocidade e um acidente dificilmente seria fatal. Diziam à boca pequena que Osório Gomes causou o acidente por vingança, pelo fato de sua mulher tê-lo traído enquanto viajava a negócios. Mas o fato é que morreram todos, pensou ao se aproximar do cruzamento. Passou olhando para as cinco cruzes que ainda estavam no acostamento, junto a um punhado de imagens de santos deixados em memória dos Gomes. Achou estranho o fato de o acidente ter ocorrido a quase vinte anos e ainda ter flores e velas no local, nunca prestara atenção a isso -- Talvez por sempre passar por aqui durante o dia, resmungou para si mesmo, sentindo um estranho arrepio na nuca ao passar pela paineira. Um frio o fez tremer e ligar o ar quente da caminhonete. Lembrou-se da história do velho Pedro Rouco, dono da venda da vila, que ficou uma semana dormindo na igreja depois de passar pelo cruzamento numa noite e dizer que a família dos Gomes vieram com ele, em sua perua, até a entrada da cidade, quando sumiram de repente. Sentiu-se incomodado, achou que podia ter mais alguém na caminhonete, no banco traseiro -- Deve ser da minha cabeça, falou baixinho fixando os olhos na estrada por causa de um nevoeiro que o fazia andar ainda mais devagar. O frio aumentou, com o cabelo e os pelos do braço já em pé, levou ao máximo o ar quente do carro. Agora tinha quase certeza que não estava sozinho. Não era religioso, mas acreditava em Nossa Senhora e começou a rezar pedindo proteção enquanto tentava se manter na estrada. Estava com muito medo, sabia de histórias de que não se podia encarar os mortos, se isso acontecesse também morreria e ficaria penando sem destino, sempre achou que isso era bobagem, porém agora já não tinha tanta certeza assim. Uma curiosidade mórbida começou a surgir contra sua vontade, apesar do medo queria olhar para o retrovisor, sabia que isso o libertaria se não houvesse nada ali, mas também correria o risco de encarar sabe-se lá o que. Com muito esforço virou o retrovisor para cima e continuou rezando, acabara de entrar na estrada de terra que dava acesso ao seu rancho. Agora percebia de canto de olho um vulto ao seu lado, no banco do passageiro, sentia que estava olhando-o firmemente. O ar quente da caminhonete já não bastava para evitar o frio e o embaçamento dos vidros. Só com muita dificuldade mantinha o carro na estrada de terra, estava correndo mais pois conhecia bem o caminho. Sentiu que estava lhe faltando ar, como se algo estivesse apertando seu pescoço, abriu o vidro e uma lufada de ar frio e poeira entrou carro adentro, com as luzes do painel da caminhonete refletindo na poeira percebeu os vultos voltados para ele, entrou em pânico, estava sem ar, não conseguia mais rezar e seus pensamentos começaram a embaralhar, precisava de água, notou a porteira do rancho, mais alguns metros...
Santiago despertou, não sabia onde estava nem que horas eram. Apertou os olhos, os pensamentos começavam a clarear. Lembrou do medo e sufoco que passou vindo de Montes Negros de madrugada, ainda assim parecia que tinha passado muito tempo, que tinha sido um terrível pesadelo. A última coisa que se lembrava desse pesadelo, era de estar chegando na porteira de seu rancho, quase desmaiando pela falta de ar, quando no desespero olhou para o vulto que estava inclinado sobre ele, tinha visto uma mulher muito branca, transparente e muito bonita. Teve um sobressalto, uma ideia aterrorizante começou a brotar em sua cabeça. Saiu devagar da caminhonete, ainda era noite e a neblina estava densa. Estava estacionado com motor desligado e faróis apagados, embaixo da paineira.