Fixierung
Frio... Esta provavelmente é uma das noites mais frias que enfrentei em minha vida...
Tomo um gole de uma bebida quente enquanto caminho em direção à minha casa. Estava começando a chover e quase ninguém se encontrava pelas desertas ruas. Eis que avisto um vulto ao longe. Cada vez me aproximando mais, percebi que se tratava de uma mulher, uma bela mulher, digamos. Não consegui ver sua pele, pois estava usando um casaco de couro negro e todos aqueles acessórios que usamos para nos proteger do frio açoitante. Seu corpo, ao menos do que eu vi, era bem formado. Mas o que realmente me prendeu a atenção foi o esvoaçar de seus cabelos. Negros, apenas um filete azul despedia de um dos lados e se estendia até as pontas.
Fitei demais o movimento daquela mecha. Rio escuro que percorre o céu da noite. Luz que ilumina as trevas totalizadoras. Último fio de esperança no coração amargo de um homem que perdeu tudo o que tinha e já não acreditava mais em si mesmo. Nem coragem para se aproximar ou conversar eu tinha , talvez chamar para tomar algo quente. Minha casa estava perto até... Ou não. No transe de observar e seguir o fluxo das corredeiras, passei direto de minha casa, e continuava a seguir a mulher, que agora começava a olhar apreensiva para trás. E foi ai que consegui ver seu rosto, ou ao menos uma parte dele.
Era jovem. Ela tinha uma pele que aparentava ser clara, mas não podia dizer com certeza por conta da chuva que começava a cair e da pressa dos seus movimentos. O nariz era um pouco grande, mas nada de extravagante. Mas nada ainda era distinguível. Aquela curiosidade me matava a cada olhada. A cada flash que tinha de seu rosto, uma nova chama se acendia em mim. Eu TINHA que saber o que se escondia ali... Me deixei levar demais. Já devia estar a quarteirões de distância de minha casa e certamente que ela deveria estar evitando entrar na dela, para tentar me afastar. Enfim, com uma dificuldade que alcança os níveis das árduas tarefas de Hércules, deixei ela de lado. A sanidade finalmente voltara a mim, e segui meu rumo de volta para casa. Ela deve ter se aliviado, pois ao olhar para trás, ela já não estava mais a vista...
Finalmente em meu lar, me livrei de toda a roupa que possuía a finalidade de me proteger da chuva e do clima, e liguei o aquecedor na sala. Sentei-me em minha poltrona reclinável e comecei a ler um romance policial. Por mais irônico que possa parecer, era uma trama de perseguição que se desenrolava no texto. Algo com um maníaco por uma pessoa, e o célebre detetive desvendando o caso. Fiquei demasiado preocupado com aquilo. Realmente sentia agora o que deveria estar se passando pela cabeça da garota. Aonde estava eu com a cabeça para ter seguido uma pessoa por tanto tempo... Mas a curiosidade ainda me incomodava, lá no fundo... Decidir espairecer, assistir algum programa bobo de TV. Foi quando olhei pela janela e me arrependi imediatamente de tê-lo feito.
Morava em um prédio que ficava bem próximo a outro vizinho. Algumas janelas eram exatamente direcionadas ao apartamento da construção ao lado. E qual não foi meu espanto ao ver a mecha azul de antes pela minha janela. E a sua dona se despindo. Não me movimentei, ela provavelmente iria perceber minha presença e pirar. Ela retirou suas roupas pesadas e se mostrou com vestes do estilo punk. Era jovem de fato, como eu houvera previsto antes. Me lembrei dessa minha época, e de tudo o que vivera: meus amores, minha primeira vez, a morte de meus pais... Mas tudo isso esvaiu-se com o movimento da mancha azul. Aqueles fios eram capaz de tirar minha atenção de qualquer coisa, inclusive do fato dela estar me olhando nesse exato momento. Se ela percebeu que eu era o mesmo perseguidor de minutos atrás, realmente não posso dizer. Mas ela me observou por uns instantes e não pirou, o que me parece ser um bom sinal. Eu devia estar ao trapos, ao menos foi o que a expressão em seu olhar me disse. Voltei minha atenção à TV novamente e tentei ao máximo não pensar na mecha que tanto mexia comigo...
Quando acabou meu programa, me levantei e desliguei a televisão. Olhei para o lado e dei de cara com cortinas fechadas. Me aproximei da janela para acender um charuto e poder voltar ao meu livro, ou algo do tipo. Mas aí percebi uma abertura na persiana vizinha, pequena mas visível. Ao olhar mais de perto, percebi que estava sendo encarado de volta!
Olhos dourados e brilhantes me observavam com a rigidez e a fixação mais profunda que já vira em toda minha vida!
Me recolhi para meu quarto o mais rápido possível. Apenas para não conseguir dormir. A mexa, os olhos amarelos, tudo isso num só dia mexeu demais comigo. Encarando o teto, via aquele olhar me perseguir em todas as direções. Percorrendo meu quarto com os olhos, via o vislumbre do filete azul. Desistindo, enfim, de tentar dormir, fui à cozinha beber algo na esperança de me acalmar. Terrível erro.
Parada, no meio da sala estava ela, a vizinha hipnotizante. Dei um pulo para trás e bati com força na parede. A garota estava agora, vestindo apenas uma jaqueta de couro e uma calça apertada também de couro. Com um salto ela já estava a poucos centímetros de mim. Me olhando com aqueles malditos olhos!! Não conseguia enxergar mais nada... Seu rosto foi se aproximando e senti os lábios dela tocarem os meus. Durante incontáveis segundos fiquei ali, sem reação alguma, até sentir um frio incomum. Começou pelos meus dedos, e logo invadira meus braços e pernas. Despenquei no chão. Ela se abaixou e seus cabelos caíram, revelando mais uma vez o objeto de minha fixação. Contemplei a cascata anil descer sobre mim. Me deixei ser tomado por ela. Seu frio penetrou ainda mais em meus ossos e em poucos instantes já não sentia mais meu corpo. A consciência falha só me permitiu uma última visão antes do desfalecer: a corredeira entre os dois sóis...