318-FALSA VITÓRIA-

Continuação do conto # 1-A casa que Virou Mausoléu que deve ser lido antes.

Shirley não estava morta, quando Gonzaga chegou ao quintal onde jazia estirada, ensangüentada e molhada pelo orvalho da madrugada. Acompanhado por Charnata, um mentecapto que vivia de fazer bicos na cidade e, principalmente, na Cadeia Pública Municipal, adentrou-se pelo corredor lateral à casa. As duas irmãs Rosa Maria e Ana Maria assistiram, apavoradas, semi-ocultas pelas cortinas da janela, ao trabalho de remoção.

Gonzaga, escrivão da cadeia, era também encarregado de todos os serviços burocráticos do estabelecimento. Pau para toda obra, como se diz. É solteiro, trinta anos, forte, decidido, sabe obedecer a ordens. Sua missão, naquela manhã invernosa, consistia em levar o corpo para o cemitério, à espera do atestado final necessária ao sepultamento.

— Que abacaxi! – pensava, ao entrar pelo quintal. — Sair logo de manhã, com essa garoa fria, para este serviço desgraçado.

Estenderam um plástico ao lado do corpo. A lama estava pisoteada por todos os lados, pois ali já estiveram o delegado e seus ajudantes, examinando o corpo e o local para o registro da ocorrência. Gonzaga pegou nos ombros da loira, por debaixo dos braços. Charnata pegou nos pés. Colocaram o corpo com cuidado sobre o lençol plástico negro. Com o corpo arqueado sobre a moça, o funcionário sentiu algo estranho.

— Parece que ela deu um gemido! Cruz-credo!

Apesar da sujeira do corpo, o rosto estava livre da lama. O rapaz, olhou com atenção.

— Nem está tão branca assim. —

Passa a mão pelo rosto da mulher, afastando os cabelos emplastrados. A beleza das formas ainda é notável, e as maçãs do rosto apresentam uma coloração rósea.

— Que coisa! Ainda corada, depois de tantas horas...

Com cuidado, aproxima seu próprio rosto da boca e nariz da loira. Sente um leve calor, coisa muito sutil.

— Não é possível! Ela respira. Tá viva!

Charnata havia se abrigado do chuvisqueiro num telheiro junto á casa. Distraído como sempre, não presta atenção em nada. Gonzaga olha, disfarçadamente, para a janela onde divisa os vultos das irmãs de Shirley.

— Não vão acreditar quando lhes contar.

Mas um pensamento súbito lhe atravessa a mente.

— Esperai! Quem mandou matar a moça, se souber que ela está viva, vai querer o serviço completo. Vai mandar acabar com ela, de qualquer jeito..

Sem saber o que fazer, Gonzaga chama Charnata. Os dois pegam as extremidades do lençol plástico, fechando as laterais, como uma rede, e carregam o volume até à camioneta, estacionada ao lado do portão.

Gonzaga dirige com cuidado, pois a camioneta, emprestada pela Casa Atacadista Donato Perlongrano & Cia. Tem os pneus carecas, que deslizam pelo barro. Durante o percurso, vai rememorando algumas vezes que vira Shirley na Pensão da Alemã. Era uma mulher atenciosa, sempre alegre. Não era para o seu bico, só atendia os ricaços da cidade. Sua desgraça foi ter se tornado “exclusiva” do Coronel Herculano, o fazendeiro mais encrenqueiro da região. Ruim, brigão e violento. Conforme o trato entre o coronel e a prostituta, conhecido de todos os freqüentadores da zona, Shirley devia se reservar para o Coronel as noites das terças, quintas e sábados. Quando o coronel, numa fatídica terça-feira, chegou mais cedo à Pensão da Alemã, encontrando Zé Darimatéia no quarto com a loira, aconteceu a desgraça. Quebrou tudo o que havia no quarto, enquanto surrava a mulher. Darimatéia fugiu. Shirley foi parar no hospital, de onde desaparecera.

Agora, aparecia morta no quintal da casa das duas professoras, Ana Maria e Rosa Maria. Que confusão, pensa Gonzaga. O delegado fora enérgico nas ordens:

— Recolhe a mulher no cemitério, coloca-a necrotério. O doutor vai dar o laudo de suicídio. Não fala com mingúem desta diligência. Nem com os soldados.

— Mas, não agüento fazer tudo sozinho.

— Leva Charnata, que é mesmo um imbecil, só serve pra essas coisas.

— Cuidado, Charnata, vai com jeito. Não deixa bater na lateral da camioneta.

Sem um plano estabelecido, Gonzaga leva a moça para o necrotério.

— Charnata, me espera lá fora, no portão do cemitério. — Sozinho, limpa a face, passa a mão pelos lábios e verifica, realmente, que ela ainda está viva.

— Tenho de salvar a moça! Mas, como?

Gonzaga levanta a moça ainda inconsciente e carrega-a de volta à camioneta. O ajudante boçal, escondido da chuva na cabine, nada percebeu. Ninguém viu quando Gonzaga e Charnata saíram do cemitério.

A chuva era intermitente, pesada. Gonzaga dirige com habilidade. Deixa Charnata num beco, que dá acesso à casinha de adobe do ajudante daquela noite. Guia a camioneta para sua própria casa. Sendo solteirão, mora com mãe, viúva, numa casa modesta em rua quieta.

A chuva intensifica. Ao chegar na sua casa, encosta a camioneta rente ao portão, e tira a moça, com muita dificuldade, da traseira do veículo e a leva pra dentro de casa. A mãe se assusta quando vê o filho carregando aquele pacote feito de plástico preto, pingando pela casa adentro. Só quando está em seu quarto abre o plástico, revelando o conteúdo. A mãe se surpreende, mas Gonzaga dá as ordens.

— Vamos cuidar dela, mãe. Não fala pra ninguém que essa moça está aqui. Ninguém pode saber.

— Mas, filho, ela num tá morta ?

— Não, mãe, tá desmaiada. Eles acham que ela morreu, mas ainda tá viva. Temos de escondê-la. Agora, tenho de devolver a camioneta e voltar para a delegacia Na hora do almoço, venho mais cedo, pra ajudar a senhora.

Já amanhecia quando Gonzaga devolve a camioneta a Casa Perlongrano e passa pela Padaria Bom Pão, onde toma um café com um biscoito mineiro, sua quitanda preferida.

Em seguida, volta para a delegacia, reporta ao delegado o transporte que fizera do corpo para o cemitério, tendo depositado-o no necrotério.

— Demorei muito por causa da chuva. Charnata me ajudou, mas sabe como é...Aqui está a chave do necrotério.

— Tá bom. De tarde, o doutor Guilhermino vai fazer o laudo.

Conforme combinado, o doutor e o delegado foram ao cemitério às duas horas da tarde. Abrindo a única porta do necrotério, vêem a mesa vazia.

O delegado ficou uma onça quando teve notícia que o corpo desaparecera do necrotério.

— Mas, como! Em plena luz do dia! Não é possível!

Mandou o cabo Elias fazer uma procura dentro do cemitério e nas imediações, e saiu ele próprio a investigar.

O desaparecimento fora, sim, em plena luz do dia. Mas de um dia extremamente chuvoso, em que todo mundo procurava o abrigo dentro de casa. Ninguém na cidade observara a camioneta transitando pelas ruas.

Dona Juliana é uma senhora de uns 60 anos. O filho único, Gonzaga, é seu arrimo. Funcionário civil da polícia, moço correto, não se casou. De boa índole, ele trata da mãe com dedicação. Vivem modestamente no fim da Rua Dr. Gomes, que continua na estrada que sai para Cachoeira Alta. Muito esperta e disposta, ela entende, com as experiências de vida, de forno e fogão, e sabe de remédios para quase todas doenças. Tem até um pequeno canteiro de ervas no fundo do quintal.

Não discute as ordens do filho. Se ele tá ajudando a moça, é porque ela merece. Tão bonita...Tira-lhe tira a roupa encharcada, troca-a por saia e blusa que escolhe do seu próprio guarda-roupas. Está muito fraca, a respiração é leve. Cuida da ferida no peito, sob o seio, e dos machucados por todo o corpo Os olhos permanecem fechados. Dona Julia faz massagens nos pulsos, na testa, sobre a cabeça, nas partes do corpo que não estão machucadas. Aquece um tijolo, envolvendo-o em panos, coloca-o aos pés da moça, abrigada sob pesado cobertor.

Prepara um chá fraco, de camomila, para que ela se reanime. Depois, faço um chá mais forte.

O corpo da moça estremece, enfim, depois que algumas colherinhas de chá são colocadas em sua boca. Engole sem engasgar.

Quando Gonzaga chega, à hora do almoço, pelas onze horas, encontra a moça ainda de olhos fechados, aparentemente dormindo. Está seca, debaixo de cobertores, os pés envolvidos em meias grossas, de lã.

— Já dei chá de camomila e de alfavaca. Limpei a ferida do peito. Não sangra mais. Apliquei uma cataplasma de angu com gordura de galinha e folha de sete-nervos. parece que ela está agüentando. Precisa de um médico.

— Não podemos chamar o médico. — Em rápidas palavras, Gonzaga conta tudo o que sabe sobre a moça. Ela concorda com as providências do filho.

— Mas, e quando descobrirem o que você fez?

— Não vão descobrir. Vamos escondê-la aqui em casa até ver o que podemos fazer.

— Fala com as professoras, onde ela estava escondida.Devem ser parentes?

— De jeito nenhum. Elas não podem saber de nada, vão querer cuidar dela, e a coisa desanda.

Gonzaga almoçou rapidamente, arroz com feijão, jiló e carne moída, sentado ao lado da cama da moça. Quando saia, ouviu um leve gemido. Voltou, ajoelhou-se. Shirley abriu os olhos por instantes. Colocou a mão na testa da moça. Estava fresca, sem indício de febre.

Foi uma tarde de cão para Gonzaga, na delegacia. O delegado, louco de raiva, expedia ordens pra todos, perguntava, gritava.

— Cê tem certeza de que o corpo ficou lá no cemitério?

— Mas, claro, doutor. Eu e o Charnata descarregamos e colocamos sobre a mesa do necrotério. Coberta com o plástico preto. Fechei a porta e trouxe a chave comigo.

— Os coveiros e o porteiro do cemitério dizem que ninguém entrou lá no cemitério depois que o senhor saiu com a camioneta.

— Fui direto para o Perlograno, devolvi a camioneta ao Lucas, o que toma conta dos veículos.

— O Coronel Herculano...quando souber...vai me matar.

— O Coronel? Mas o que ele tem a ver....

— Deixa pra lá. Temos de encontrar esse corpo, custe o que custar.

Naquela mesma tarde, apesar da pressão do delegado sobre todos seus auxiliares e da confusão que reinava na cadeia, Gonzaga foi imaginando um plano para levar Shirley para outra cidade. Será o único meio de livrar a moça desta situação.

A casa de Dona Juliana tinha um delicado jardim na frente e algumas árvores frutíferas no quintal. Estava isolada das demais casa por terrenos baldios e, nos fundos, por um barranco em declive que terminava numa vala profunda. Fresca no verão e aconchegante nos dias de chuva ou de frio.

Após uma semana de cama, tomando caldos fortes, chás e recebendo carinho e atenção da mãe e do filho, Shirley quis sentar-se. Sentiu uma tonteira passageira. Em seguida, se firmou e, com ajuda de Gonzaga, conseguiu se levantar e dar alguns passos pelo quarto. Era uma mulher forte. Seu corpo, respondeu com rapidez ao tratamento de dona Juliana.

Mãe e filho se desdobraram no cuidado à paciente. Seu espírito, alquebrado na primeira semana, foi se elevando, e não demorou muito, conversava com animação e sorria com as brincadeiras de Gonzaga. Obedecia a dona Juliana em tudo. O repouso foi fundamental para sua recuperação. Andava pela casa com cuidado, não fazia exageros. As janelas e porta que davam para o jardim, e para a rua, estavam sempre cerradas, não fosse algum curioso notar que lá dentro vivia mais alguém além da mãe e o filho.

Uma forte relação se estabeleceu entre os três. O afeto da velha senhora, antes exclusivamente para o filho, agora era dedicado, em igual intensidade, à moça. Sabia de sua vida, nada lhe fora escondido, e tinha uma imensa pena de vê-la perseguida, surrada até à beira da morte. Gonzaga, por sua vez, foi se deixando envolver por uma mistura de compaixão e admiração. Compaixão por ver uma vida sendo quase destruída, e admiração pela luta de Shirley para sobreviver.

A moça, por sua vez, não sabia definir os seus sentimentos. Gosto de dona Juliana como a mãe que conheci tão pouco. E Gonzaga...que homem valoroso. Corajoso. Se pudesse, se houvesse uma pequena oportunidade, deixava minha vida para viver ao seu lado.

Curiosamente, Shirley ainda pensava em voltar à atividade que exercia. Não via naqueles acontecimentos as mensagens contidas, um pretexto para mudar de vida. Vou para uma cidade grande, onde ninguém me conheça, começo tudo de novo...

Mas a vida de Gonzaga, de dona Juliana e da própria Shirley nunca mais seria a mesma, depois daquela manhã onde escapara de morrer por estranha força do destino.

— Acho que já posso ir embora. — Disse Shirley certa tarde, enquanto jantavam. — Já passei dois meses com vocês, dando trabalho, e está na hora de cuidar da minha vida.

Gonzaga sentiu uma estacada de surpresa. Acostumara-se com a presença da moça confinada. A compaixão que sentira no primeiro momento, quando descobriu que ela ainda vivia, fora se transformando em um sentimento que ele não estava entendendo. Na medida em que os hematomas se dissipavam, as feridas cicatrizavam e a beleza da moça ressurgia, ele sentia que seus sentimentos também iam mudando. Um pensamento atravessou-lhe a mente: Estou gostando dela!

— Nem pensar! — Gonzaga objetou, garfo e faca na mão, enfatizando sua negativa. — Você vai ficar aqui até bolarmos um plano bem feito para você sair daqui sem ser notada.

— Por mim, você ficaria morando sempre com a gente. — Falou dona Juliana. — Que é que você vai fazer por aí afora, nesse mundo de Deus?

— Vou ganhar a vida. Depois, venho buscar essas duas que me tiraram da Santa Casa e me esconderam na casa delas.

— Qualquer plano que a gente fizer, deve ser muito secreto, cuidadoso. Se o delegado ou o coronel Herculano descobrirem....não quero nem pensar. Gonzaga está preocupado. — Você vai me prometer que não sai daqui de casa sozinha.

— Mas, claro. Só que não posso ficar a vida inteira aqui, escondida. Estou ficando louca...

— Vamos planejar o que fazer. Já pensei numas coisas. — Gonzaga encerrou o assunto por aquela noite.

Os dois estavam sentados na pequena sala. Era uma noite chuvosa, a casa toda fechada e silenciosa. Dona Juliana já se tinha recolhido. Sentados lado a lado, no sofá estofado de plástico barato, conversavam em voz baixa.

— Shirley, tenho de lhe dizer uma coisa. — Ele começou, desajeitadamente.

— Eu sei....nosso plano de fuga.

— Não, não é isso. Bem... quer dizer, é isso, sim. Mas, antes tenho de falar outra coisa pra você.

Os corpos se tocavam. Olhavam-se mutuamente, querendo revelar, pelos olhares significativos, tudo o que estavam em seus pensamentos mas tinham receio de revelar. Ela sorriu com ternura e pegou a mão de Gonzaga.

— Pode falar.

— Por mim, você não ia embora. — Enquanto falava, ele percebia nuances na figura da mulher, que se revelavam a cada movimento dela: os cabelos loiros ondulavam-se e pareciam ter movimentos próprios. Os olhos azuis brilhavam intensamente. O rosto readquirira o viço, a boca de lábios vermelhos, as maçãs rosadas do rosto suave. Sua mão estava firmemente presa nas mãos dela. Ele colocou a outra mão e olhou-a diretamente nos olhos. Enchendo os pulmões de ar, como que para adquirir coragem, ele falou afobadamente:

— Gosto de você, Shirley. Se for pra fugir, vamos fugir juntos.

Ela sorri com os olhos e os lábios. As mãos se apertam. Os rostos se aproximam e um beijo inevitável põe fim ao diálogo.

A solução não era fácil. Depois de noites de insônia, de pensar e repensar os prós e os contras dos planos mais mirabolantes, Gonzaga pensou num plano de fuga com provável êxito.

— Vamos fazer o seguinte: vou levá-la para a capital. Vamos de trem. Você vai ter de se disfarçar, cortar ou pintar os cabelos, sei lá. O trem passa às cinco, ainda é de madrugada. Entramos separados. Vou ficar com você depois de uns quinze ou vinte minutos de viagem. Quando chegarmos, vou levá-la até a casa do Marcos, um amigo que tenho lá. É casado, tem família, e nos dará uma indicação onde você poderá se hospedar por algumas semanas.

— Mas como vou ficar lá? Como vou me sustentar?

— Veja, aqui tem quinhentos cruzeiros. — Gonzaga põe na mão da moça um pacotinho de notas.

— Não posso aceitar. Nunca poderei lhe pagar.

— O dinheiro é seu. Dá para você passar mais de mês e comprar algumas roupas, sapatos, coisas assim.

— Pra capital? — Dona Juliana estranha. — Mas é muito longe!

— Sim, fica bem longe daqui, do delegado e do coronel Herculano. Ah! Tem outra coisa: vamos ter de lhe arranjar outro nome ou um apelido.

— Mudar de nome? — A loira está intrigada.

— Lógico. Aquela loira chamada Shirley já era. Sumiu. Você é outra pessoa. Ou quer continuar sendo perseguida pelo coronel Herculano?

A viagem fora sem percalços. Acontecera tudo como planejado por Gonzaga. Marcos e sua mulher Cacilda ficaram penalizados com a história de Shirley (“por favor, daqui pra frente, será Vitória”, avisou Gonzaga) e ofereceram-lhe acomodação provisória num quartinho nos fundos da casa modesta em bairro sossegado.

— Ela pode ficar aqui, nós a ajudaremos enquanto vocês dois resolvem a situação.

Na delegacia, o escrivão Gonzaga da Silva havia tomado as providências. Pediu demissão, que o delegado relutou em aceitar.

— Mas, que é isso, Gonzaga? Vai fazer o que?

— Sei lá. Cansei desta vida. Vou mudar daqui, tentar outro trabalho. — Se fez de misterioso, pois não desejava revelar seus planos de mudança da cidade.

— Vai dar cabeçada. Em todo caso, se mudar de idéia, a porta aqui está sempre aberta para você.

Marcou o último dia do mês como o derradeiro dia no emprego. Estava ansioso para ir ao encontro de Shirley — aliás, Vitória

Dona Juliana, um coração imenso de bondade e candura, ia concordando com tudo. A escapada de Shirley, a saída do filho de um emprego garantido, e a provável mudança para a capital, onde Marcos conseguira trabalho para o filho.

Assim, o serviçal da delegacia estava na última semana de trabalho, ajeitando suas coisas, arrumando as gavetas. Ouviu uma troca de vozes no gabinete do delegado, e em seguida, a figura gorda do coronel Herculano encheu o exíguo escritório. O delegado o acompanhava, tentando inutilmente se interpor entre o coronel e Gonzaga.

— Coronel, espera aí...não é assim que...

O prepotente não ouve o delegado.

— Então, seu moleque, pensa que vai fugindo assim, sem mais nem menos, hein? — Apontando a bengala para o escrivão, o coronel falava alto e claro.

Gonzaga, assustado, faz um gesto de se levantar. A ponta da bengala toca em seu ombro, forçando-o a se sentar.

— Temos muita coisa pra conversar. Quer saber de umas coisinhas.

Gonzaga pressente uma tragédia. Um gosto amargo lhe vem à boca seca.

— Pois não...seu coronel. Pode... perguntar.

— É sobre aquela puta que sumiu do cemitério.

Gonzaga fechou os olhos, abaixou a cabeça, levou a mão direita sobre os olhos e sentiu o mundo acabar.

ANTONIO ROQUE GOBBO —

BELO HORIZONTE – 24 de dezembro de 2004 —

CONTO # 318 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/07/2014
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