UM ENCONTRO COM SADE
Uma, duas, três doses da pinga reforçada com catuaba. Foi quando ela surgiu, na aparição mais cintilante dos últimos anos, adentrou imperiosa sobre o chão de cerâmica daquele boteco imundo do Centro da Cidade e me enredou com um beijo de sede. Bela, vaporosa, etérea e fugidia: a felicidade.
Sim, se você está percorrendo as sinuosas linhas que tracei nas páginas deste diário, saiba que existe uma fórmula secreta contra a depressão. Ela está oculta a sete chaves pela indústria farmacêutica, é protegida com destemor por médicos que agem como a Ordem dos Templários guardando o Santo Graal. Duas medidas de caninha para uma de catuaba e está feita a revelação. Ninguém imaginaria que uma mistura tão simples pudesse guardar o poder de incendiar corações.
Cheguei àquele botequim sujo com o espírito coberto por andrajos, um trapo dissecado pela emoção mais vulgar da humanidade, o amor. Eu não saberia explicar com clareza as justificativas que a fizeram me abandonar. Acordou com um olhar indecifrável, murmurou que eu não havia progredido em nada, me rotulou como um homem fracassado e sentenciou que estava indo embora. Como reagi? Diga-me, como se reage a um tiro à queima-roupa? Minha reação foi o silêncio do incrédulo, foi a perplexidade do cético diante do improvável. Paula estava me largando, sem cerimônia, sem pudor.
Mais do que uma paixão, Paula era um hábito fervoroso. Tê-la ao meu lado configurava-se na única certeza que eu possuía nesta abstração universal em que vivemos. Não me importo em utilizar um clichê para situar minha tragédia peculiar, realmente, faltou-me o chão diante da despedida anunciada. Passei semanas com a sensação de uma vertigem aterradora que não me permitia sair da cama. Ansiava por um telefonema, por um sinal de arrependimento que não vinha. Minha mente equilibrava-se trêmula, saltando entre os degraus da razão e a febre da insanidade temporária.
Não mais suportando a ausência da amante de tantos anos, dei início a um calvário espontâneo que desenhou o golpe de misericórdia naquilo que me restava de humano, sequei o riacho da dignidade. Todos os fins de tarde, me postava em frente ao prédio em que ela trabalhava na Rua da Assembleia, esperando a oportunidade de encontrá-la para obter a brecha por onde eu suplicaria pela sua volta. Paula me recebia com o mais repulsivo desprezo e se negava a ouvir qualquer palavra que eu pronunciasse. Esbravejava que eu a estava perseguindo, que tomaria providências. Passou a sair acompanhada do escritório, uma forma eficaz de impedir a minha aproximação.
Muitas vezes, caminhei léguas pela Av. Rio Branco, até o Aterro do Flamengo, tentando substituir a dor emocional pelo esgotamento físico. Inútil. O que eu consegui foi somar a depressão com a falência do corpo.
Decidi trocar os plantões vespertinos na Rua da Assembleia por telefonemas diários, uma opção menos cansativa, mas igualmente estressante. Paula desligava no exato momento em que reconhecia a minha voz. Eu persistia, pois a insistência é o maior patrimônio do insensato. Tudo em vão.
Você, na posição de cúmplice e confidente, qual o seu diagnóstico? Que espécie de sabor adocicado ela poderia encontrar na amargura da rejeição? Será que a crueldade humana diante da fraqueza do semelhante é o que constrói a nossa cadeia alimentar?
Minha última e desesperada tentativa de reconciliação foi enviar a Paula um buquê de flores, junto com ele seguia um cartão onde empenhei toda a ruína que a saudade da nossa convivência me causava. As flores retornaram, ela se negou a recebe-las, sequer passou os olhos pela extensa e embriagada carta que compus. Foi esta derradeira humilhação que me levou ao primeiro botequim decadente que avistei, foi esta morte em vida que me fez recorrer à mistura ancestral ensinada pelo meu estimado e falecido avô: a caninha com catuaba.
Saí do bar trôpego, precisava respirar, mudar o foco. Caminhei da Praça Mauá à Travessa do Ouvidor, esbarrei, inesperadamente, com uma livraria e ali pousei minha fadiga. Posso afirmar que no próximo parágrafo se iniciará o clímax deste relato.
Não sei como o meu diário caiu em suas mãos, ávido leitor, desconheço qual motivo o levou a passear os olhos invasivos pela minha infeliz jornada, mas se renunciou aos escrúpulos para poder mergulhar indiscretamente na minha privacidade, certamente, nutre competência suficiente para assistir aos próximos atos deste espetáculo burlesco. No entanto, não deixarei de alertá-lo sobre o perigo, pois não abdiquei completamente das minhas responsabilidades. Caso prossiga na leitura, prepare-se para a onda que se levantará, ela engolirá suas crenças numa única mordida e mudará o inevitável sentido dos trilhos que conduzem o seu destino.
Ele estava exposto na bancada, logo atrás da porta de vidro que me convidou a entrar. Sereno e silencioso, assim são quase todos os livros que escondem chamas rebeldes sob a proteção da capa: A filosofia na alcova, do famigerado Marquês de Sade. Tomei-o nas mãos sem nenhuma atenção especial, folheei sem esperar nada além de pornografia literária. Talvez, por estar com a mente desarmada e com o coração decapitado, fui rodeado rapidamente pelas páginas incandescentes. Decidi compra-lo para ler atentamente no conforto da poltrona caseira. É a partir daqui, criatura intrusa, que meus vagões descarrilaram.
Descobri em Sade um mentor, sua filosofia retirou a venda dos meus olhos, me despertou de um coma profundo. Eu era cego e ele me fez enxergar, eu era cadáver e ele me ressuscitou. Para lhe oferecer uma visão geral, anônimo par de olhos que me observa, no mundo de Sade o crime é a lei e a lei é um dispositivo artificial para nos afastar dos complexos deleites que nos cercam. Leis são grilhões para alguns dos nossos mais espontâneos instintos. O criminoso não é um bandido, mas um agente autorizado pela Natureza com a missão de agitar a massa de energia que a renova. Sade insiste que nem mesmo um assassino comete um ato hediondo, ele apenas antecipa um processo de transmutação: “o homem que destrói seu semelhante é para a Natureza aquilo que para ele é a peste ou a fome”.
Sade continua a explanação: “Então, um Soberano ambicioso poderá destruir à vontade e sem o menor escrúpulo os inimigos nocivos a seus projetos de grandeza... Leis cruéis, arbitrárias, imperiosas, poderão da mesma forma assassinar em cada século milhões de indivíduos... E nós, fracos e infelizes particulares, não podemos sacrificar um único ser às nossas vinganças ou aos nossos caprichos? Existe algo mais bárbaro, mais ridiculamente estranho? E não devemos, sob o véu do mais profundo mistério, nos vingar amplamente dessa inépcia?”
Como um homem que passou grande parte da vida em prisões foi capaz de traduzir com tanta limpidez a verdadeira essência da liberdade e do prazer libertino? Sade conseguiu.
Não me veja como um ingênuo sendo desviado da moral por palavras de efeito. Sou um homem culto, de boa aparência, um funcionário público que ultrapassou a curva dos quarenta anos de idade, não me iludo com qualquer asnice. Você é testemunha de um herege que encontrou a própria bíblia.
A forca para o pescoço de Paula estava montada e eu seria o cadafalso. Ela precisava morrer para que eu alcançasse a libertação. Porém, não pretendia somente eliminá-la, queria saborear o sofrimento que precede o último suspiro. Nascia a necessidade de engendrar um plano. Como matá-la? Eu não possuía arma de fogo, nem mesmo sabia onde poderia conseguir uma. Mas a justa mão do acaso conduz à luz aqueles que encontram sua estrada interior.
Numa dessas tardes quentes do Rio, daquelas que nos trazem a sensação de habitarmos o escaldante Outback australiano, transitando a pé pela Rua Frei Caneca, me deparei com um hipnótico punhal de prata reluzindo na vitrine de um antiquário. Ele espelhava o sol e quase nos intimava a tocá-lo. Vislumbrá-lo me causou um fascínio inexplicável.
Admita, seus olhos são dois globos viscosos repletos de uma extravagante curiosidade mórbida, mas o seu raciocínio é perspicaz e concebeu que aquele punhal seria a ferramenta escolhida para o meu propósito. Você está certo. Não perdi tempo em invadir o antiquário e arrebatar a peça por um naco razoável de dinheiro. À noite, de volta ao lar, coloquei a pequena antiguidade sobre o livro de Sade e por um bom tempo fiquei flertando com a lâmina prateada. Concebi todos os passos para extirpar a vida de Paula. Eu estava disposto a atingir os limites, por isso, o meu projeto não temia o insucesso.
Diga-me com sinceridade, alheio interlocutor, quem nunca pensou em matar alguém? Quem, nos calabouços mais obscuros da mente, não tramou um assassinato, mesmo que nunca o realizasse? Por favor, não sejamos hipócritas. Livre da retidão dos beatos moralistas, eu estava prestes a consumar um dos maiores desejos do inconsciente coletivo: a imolação.
Precisei de parcos dois dias para me preparar. Foram suficientes para que, novamente, eu acampasse na velha Rua da Assembleia, aguardando a aparição da mulher que me dilacerou a alma. Tudo seria simples e rápido. Quando a visse, cruzaria o seu caminho e fincaria com vigor o punhal em seu ventre. Minha intenção era encarar o rosto contorcido, sorver a dor, respirar o seu último suspiro, sentir a vida esvair-se. Que delícia. A vingança não é pecado, é virtude.
De repente, ela rompeu a portaria do prédio com aquele ar de nobreza que a circundava. Paula sempre foi dona de uma beleza que intimidava. Alta, esbelta, esbanjando classe, parecia guardar traços da aristocracia mineira que deu origem a sua família. Lancei-me em passos de avestruz, não havia tempo a perder, o golpe necessitava ser veloz e certeiro. Finalmente, estávamos frente a frente. Saquei o punhal do bolso, ergui-o no ar, lágrimas inconvenientes turvaram a minha visão, eu queria demais sentir a resistência da pele sendo rasgada, mas hesitei diante da expressão de fria perplexidade da vítima. Aqueles poucos segundos em que congelei meu ímpeto, bastaram para que ela revidasse a ação que não cometi.
- Você é um palhaço! – Exclamou com ênfase e voz alterada.
Como ela conseguia manter-se desafiadora mesmo diante do provável fim da sua miserável existência? Ao me ofender com a frase bem amolada, me desarmou pela vergonha. Possuiu-me a ideia corrupta de me ajoelhar diante dela com o servil desejo de ser açoitado. Num reflexo do mais puro desalento, chorei, estendi o pulso e o cortei com a lâmina afiada da arma que eu ainda segurava. Primeiro veio a forte ardência, depois o sangue rubro brotou num jato que atingiu o rosto de Paula e continuou jorrando numa correnteza irrefreável. Apaguei.
A lacuna da minha saga me foi narrada pela médica que me recepcionou na clínica psiquiátrica em Botafogo. Meu irmão foi o responsável pela internação e o objetivo era cuidar do forte estresse emocional que identificaram em meu comportamento.
Drª Hanna Sobolwsky, uma psiquiatra polonesa radicada no Brasil, não era bonita, mas carregava uma aura gelada que a tornava atraente ao extremo. Numa rápida conversa, ela indicou a suspeita que me apontava como um psicótico com raízes passionais. Reconheço que, invariavelmente, quando assolado por alguma doença, os sintomas me soavam como algo abstrato demais. Seu primeiro conselho foi sugerir que eu escrevesse um diário, um espaço para expor minhas aflições íntimas, rascunhos do meu dia a dia. E é o resultado desses relatos que você apara agora, furtivamente, nas mãos.
Medicações, conversas infindáveis, questionários semanais, mas a Drª Hanna não se deu por satisfeita. Queria utilizar o eletrochoque, tratamento que acreditava ser o mais adequado à cura definitiva das obsessões. Durante todo este período, não me esqueci de Paula. Ninguém da clínica me oferecia notícias sobre ela, nem mesmo permitiam que eu estendesse o assunto. Porém, eu precisava dos seus olhos de desdém, do seu deboche ferino, da sua indiferença proposital. Eu a idolatrava.
Duas semanas correram, alcançamos a data em que eu seria submetido a primeira parte do tratamento com choques. Levaram-me a uma insípida enfermaria, fui amarrado à maca, eletrodos colados às têmporas e uma barra emborrachada encaixada entre os meus dentes. Com um pequeno abanar das mãos, a Drª Sobolwsky autorizou a descarga elétrica. Acredite, o espasmo do corpo me fez pensar que todos os meus ossos haviam se quebrado. Tive um desmaio e me transportei para uma imensa planície verdejante, a paz almejada. Alguém me reanimou e detonou a segunda carga, meus olhos ficaram abertos por uma breve fração de segundos, pude flagrar o minúsculo e sutil sorriso de satisfação nos lábios da Drª. Novo desmaio.
Despertei no quarto do hospital, mas com os pensamentos girando num redemoinho de imagens confusas. Aos poucos, recuperei as rédeas da consciência. Algumas horas haviam rolado quando a Drª Hannah Sobolwsky entrou para me visitar. Com um sotaque acentuado e duro, declamou as perguntas de praxe para avaliar como eu me sentia. Então, me avisou que na manhã seguinte iria repetir a sessão do tratamento radical. Talvez, fosse uma alucinação causada pelos choques, mas notei um toque morno em sua entoação ao me informar sobre a tétrica programação que me aguardava. Uma sensualidade na voz, na face, nos gestos contidos, algo que não transparecera antes. Ao entardecer, ela retornou para me examinar e me aconselhou ignorar Sade. Trouxe um livro que assentou na cabeceira: A Vênus das Peles, de Sacher-Masoch. Afirmou que essa obra me ajudaria a compreender a minha real condição e me classificou como um masoquista psicótico, num nível tão avançado que poderia levar a uma postura esquizoide.
De repente, a psiquiatra passou os dedos pelos meus cabelos e me alertou que a carga que me imporia na próxima fase do tratamento seria mais forte e a dor opressiva. Disse isso com aquele laivo de sorriso discreto que pressenti quando os eletrodos estavam grudados às minhas têmporas. Uma misteriosa alegria me envolveu, uma sorrateira expectativa me roubou o sono. Eu me rendi à ansiedade brutal de querer estar amarrado aos pés daquela mulher, na mais absoluta submissão. Seria capaz de implorar-lhe para receber os choques impiedosos como quem é castigado por chibatadas e não evitarei expiar o êxtase que o meu sofrimento irá lhe proporcionar.
Paula desapareceu subitamente da minha memória. Era o início da cura. Não sei o que virá amanhã. Encerro aqui as minhas anotações, mas me obrigo a prestar uma confissão: Eu a amo, Drª Sobolwsky.
Uma, duas, três doses da pinga reforçada com catuaba. Foi quando ela surgiu, na aparição mais cintilante dos últimos anos, adentrou imperiosa sobre o chão de cerâmica daquele boteco imundo do Centro da Cidade e me enredou com um beijo de sede. Bela, vaporosa, etérea e fugidia: a felicidade.
Sim, se você está percorrendo as sinuosas linhas que tracei nas páginas deste diário, saiba que existe uma fórmula secreta contra a depressão. Ela está oculta a sete chaves pela indústria farmacêutica, é protegida com destemor por médicos que agem como a Ordem dos Templários guardando o Santo Graal. Duas medidas de caninha para uma de catuaba e está feita a revelação. Ninguém imaginaria que uma mistura tão simples pudesse guardar o poder de incendiar corações.
Cheguei àquele botequim sujo com o espírito coberto por andrajos, um trapo dissecado pela emoção mais vulgar da humanidade, o amor. Eu não saberia explicar com clareza as justificativas que a fizeram me abandonar. Acordou com um olhar indecifrável, murmurou que eu não havia progredido em nada, me rotulou como um homem fracassado e sentenciou que estava indo embora. Como reagi? Diga-me, como se reage a um tiro à queima-roupa? Minha reação foi o silêncio do incrédulo, foi a perplexidade do cético diante do improvável. Paula estava me largando, sem cerimônia, sem pudor.
Mais do que uma paixão, Paula era um hábito fervoroso. Tê-la ao meu lado configurava-se na única certeza que eu possuía nesta abstração universal em que vivemos. Não me importo em utilizar um clichê para situar minha tragédia peculiar, realmente, faltou-me o chão diante da despedida anunciada. Passei semanas com a sensação de uma vertigem aterradora que não me permitia sair da cama. Ansiava por um telefonema, por um sinal de arrependimento que não vinha. Minha mente equilibrava-se trêmula, saltando entre os degraus da razão e a febre da insanidade temporária.
Não mais suportando a ausência da amante de tantos anos, dei início a um calvário espontâneo que desenhou o golpe de misericórdia naquilo que me restava de humano, sequei o riacho da dignidade. Todos os fins de tarde, me postava em frente ao prédio em que ela trabalhava na Rua da Assembleia, esperando a oportunidade de encontrá-la para obter a brecha por onde eu suplicaria pela sua volta. Paula me recebia com o mais repulsivo desprezo e se negava a ouvir qualquer palavra que eu pronunciasse. Esbravejava que eu a estava perseguindo, que tomaria providências. Passou a sair acompanhada do escritório, uma forma eficaz de impedir a minha aproximação.
Muitas vezes, caminhei léguas pela Av. Rio Branco, até o Aterro do Flamengo, tentando substituir a dor emocional pelo esgotamento físico. Inútil. O que eu consegui foi somar a depressão com a falência do corpo.
Decidi trocar os plantões vespertinos na Rua da Assembleia por telefonemas diários, uma opção menos cansativa, mas igualmente estressante. Paula desligava no exato momento em que reconhecia a minha voz. Eu persistia, pois a insistência é o maior patrimônio do insensato. Tudo em vão.
Você, na posição de cúmplice e confidente, qual o seu diagnóstico? Que espécie de sabor adocicado ela poderia encontrar na amargura da rejeição? Será que a crueldade humana diante da fraqueza do semelhante é o que constrói a nossa cadeia alimentar?
Minha última e desesperada tentativa de reconciliação foi enviar a Paula um buquê de flores, junto com ele seguia um cartão onde empenhei toda a ruína que a saudade da nossa convivência me causava. As flores retornaram, ela se negou a recebe-las, sequer passou os olhos pela extensa e embriagada carta que compus. Foi esta derradeira humilhação que me levou ao primeiro botequim decadente que avistei, foi esta morte em vida que me fez recorrer à mistura ancestral ensinada pelo meu estimado e falecido avô: a caninha com catuaba.
Saí do bar trôpego, precisava respirar, mudar o foco. Caminhei da Praça Mauá à Travessa do Ouvidor, esbarrei, inesperadamente, com uma livraria e ali pousei minha fadiga. Posso afirmar que no próximo parágrafo se iniciará o clímax deste relato.
Não sei como o meu diário caiu em suas mãos, ávido leitor, desconheço qual motivo o levou a passear os olhos invasivos pela minha infeliz jornada, mas se renunciou aos escrúpulos para poder mergulhar indiscretamente na minha privacidade, certamente, nutre competência suficiente para assistir aos próximos atos deste espetáculo burlesco. No entanto, não deixarei de alertá-lo sobre o perigo, pois não abdiquei completamente das minhas responsabilidades. Caso prossiga na leitura, prepare-se para a onda que se levantará, ela engolirá suas crenças numa única mordida e mudará o inevitável sentido dos trilhos que conduzem o seu destino.
Ele estava exposto na bancada, logo atrás da porta de vidro que me convidou a entrar. Sereno e silencioso, assim são quase todos os livros que escondem chamas rebeldes sob a proteção da capa: A filosofia na alcova, do famigerado Marquês de Sade. Tomei-o nas mãos sem nenhuma atenção especial, folheei sem esperar nada além de pornografia literária. Talvez, por estar com a mente desarmada e com o coração decapitado, fui rodeado rapidamente pelas páginas incandescentes. Decidi compra-lo para ler atentamente no conforto da poltrona caseira. É a partir daqui, criatura intrusa, que meus vagões descarrilaram.
Descobri em Sade um mentor, sua filosofia retirou a venda dos meus olhos, me despertou de um coma profundo. Eu era cego e ele me fez enxergar, eu era cadáver e ele me ressuscitou. Para lhe oferecer uma visão geral, anônimo par de olhos que me observa, no mundo de Sade o crime é a lei e a lei é um dispositivo artificial para nos afastar dos complexos deleites que nos cercam. Leis são grilhões para alguns dos nossos mais espontâneos instintos. O criminoso não é um bandido, mas um agente autorizado pela Natureza com a missão de agitar a massa de energia que a renova. Sade insiste que nem mesmo um assassino comete um ato hediondo, ele apenas antecipa um processo de transmutação: “o homem que destrói seu semelhante é para a Natureza aquilo que para ele é a peste ou a fome”.
Sade continua a explanação: “Então, um Soberano ambicioso poderá destruir à vontade e sem o menor escrúpulo os inimigos nocivos a seus projetos de grandeza... Leis cruéis, arbitrárias, imperiosas, poderão da mesma forma assassinar em cada século milhões de indivíduos... E nós, fracos e infelizes particulares, não podemos sacrificar um único ser às nossas vinganças ou aos nossos caprichos? Existe algo mais bárbaro, mais ridiculamente estranho? E não devemos, sob o véu do mais profundo mistério, nos vingar amplamente dessa inépcia?”
Como um homem que passou grande parte da vida em prisões foi capaz de traduzir com tanta limpidez a verdadeira essência da liberdade e do prazer libertino? Sade conseguiu.
Não me veja como um ingênuo sendo desviado da moral por palavras de efeito. Sou um homem culto, de boa aparência, um funcionário público que ultrapassou a curva dos quarenta anos de idade, não me iludo com qualquer asnice. Você é testemunha de um herege que encontrou a própria bíblia.
A forca para o pescoço de Paula estava montada e eu seria o cadafalso. Ela precisava morrer para que eu alcançasse a libertação. Porém, não pretendia somente eliminá-la, queria saborear o sofrimento que precede o último suspiro. Nascia a necessidade de engendrar um plano. Como matá-la? Eu não possuía arma de fogo, nem mesmo sabia onde poderia conseguir uma. Mas a justa mão do acaso conduz à luz aqueles que encontram sua estrada interior.
Numa dessas tardes quentes do Rio, daquelas que nos trazem a sensação de habitarmos o escaldante Outback australiano, transitando a pé pela Rua Frei Caneca, me deparei com um hipnótico punhal de prata reluzindo na vitrine de um antiquário. Ele espelhava o sol e quase nos intimava a tocá-lo. Vislumbrá-lo me causou um fascínio inexplicável.
Admita, seus olhos são dois globos viscosos repletos de uma extravagante curiosidade mórbida, mas o seu raciocínio é perspicaz e concebeu que aquele punhal seria a ferramenta escolhida para o meu propósito. Você está certo. Não perdi tempo em invadir o antiquário e arrebatar a peça por um naco razoável de dinheiro. À noite, de volta ao lar, coloquei a pequena antiguidade sobre o livro de Sade e por um bom tempo fiquei flertando com a lâmina prateada. Concebi todos os passos para extirpar a vida de Paula. Eu estava disposto a atingir os limites, por isso, o meu projeto não temia o insucesso.
Diga-me com sinceridade, alheio interlocutor, quem nunca pensou em matar alguém? Quem, nos calabouços mais obscuros da mente, não tramou um assassinato, mesmo que nunca o realizasse? Por favor, não sejamos hipócritas. Livre da retidão dos beatos moralistas, eu estava prestes a consumar um dos maiores desejos do inconsciente coletivo: a imolação.
Precisei de parcos dois dias para me preparar. Foram suficientes para que, novamente, eu acampasse na velha Rua da Assembleia, aguardando a aparição da mulher que me dilacerou a alma. Tudo seria simples e rápido. Quando a visse, cruzaria o seu caminho e fincaria com vigor o punhal em seu ventre. Minha intenção era encarar o rosto contorcido, sorver a dor, respirar o seu último suspiro, sentir a vida esvair-se. Que delícia. A vingança não é pecado, é virtude.
De repente, ela rompeu a portaria do prédio com aquele ar de nobreza que a circundava. Paula sempre foi dona de uma beleza que intimidava. Alta, esbelta, esbanjando classe, parecia guardar traços da aristocracia mineira que deu origem a sua família. Lancei-me em passos de avestruz, não havia tempo a perder, o golpe necessitava ser veloz e certeiro. Finalmente, estávamos frente a frente. Saquei o punhal do bolso, ergui-o no ar, lágrimas inconvenientes turvaram a minha visão, eu queria demais sentir a resistência da pele sendo rasgada, mas hesitei diante da expressão de fria perplexidade da vítima. Aqueles poucos segundos em que congelei meu ímpeto, bastaram para que ela revidasse a ação que não cometi.
- Você é um palhaço! – Exclamou com ênfase e voz alterada.
Como ela conseguia manter-se desafiadora mesmo diante do provável fim da sua miserável existência? Ao me ofender com a frase bem amolada, me desarmou pela vergonha. Possuiu-me a ideia corrupta de me ajoelhar diante dela com o servil desejo de ser açoitado. Num reflexo do mais puro desalento, chorei, estendi o pulso e o cortei com a lâmina afiada da arma que eu ainda segurava. Primeiro veio a forte ardência, depois o sangue rubro brotou num jato que atingiu o rosto de Paula e continuou jorrando numa correnteza irrefreável. Apaguei.
A lacuna da minha saga me foi narrada pela médica que me recepcionou na clínica psiquiátrica em Botafogo. Meu irmão foi o responsável pela internação e o objetivo era cuidar do forte estresse emocional que identificaram em meu comportamento.
Drª Hanna Sobolwsky, uma psiquiatra polonesa radicada no Brasil, não era bonita, mas carregava uma aura gelada que a tornava atraente ao extremo. Numa rápida conversa, ela indicou a suspeita que me apontava como um psicótico com raízes passionais. Reconheço que, invariavelmente, quando assolado por alguma doença, os sintomas me soavam como algo abstrato demais. Seu primeiro conselho foi sugerir que eu escrevesse um diário, um espaço para expor minhas aflições íntimas, rascunhos do meu dia a dia. E é o resultado desses relatos que você apara agora, furtivamente, nas mãos.
Medicações, conversas infindáveis, questionários semanais, mas a Drª Hanna não se deu por satisfeita. Queria utilizar o eletrochoque, tratamento que acreditava ser o mais adequado à cura definitiva das obsessões. Durante todo este período, não me esqueci de Paula. Ninguém da clínica me oferecia notícias sobre ela, nem mesmo permitiam que eu estendesse o assunto. Porém, eu precisava dos seus olhos de desdém, do seu deboche ferino, da sua indiferença proposital. Eu a idolatrava.
Duas semanas correram, alcançamos a data em que eu seria submetido a primeira parte do tratamento com choques. Levaram-me a uma insípida enfermaria, fui amarrado à maca, eletrodos colados às têmporas e uma barra emborrachada encaixada entre os meus dentes. Com um pequeno abanar das mãos, a Drª Sobolwsky autorizou a descarga elétrica. Acredite, o espasmo do corpo me fez pensar que todos os meus ossos haviam se quebrado. Tive um desmaio e me transportei para uma imensa planície verdejante, a paz almejada. Alguém me reanimou e detonou a segunda carga, meus olhos ficaram abertos por uma breve fração de segundos, pude flagrar o minúsculo e sutil sorriso de satisfação nos lábios da Drª. Novo desmaio.
Despertei no quarto do hospital, mas com os pensamentos girando num redemoinho de imagens confusas. Aos poucos, recuperei as rédeas da consciência. Algumas horas haviam rolado quando a Drª Hannah Sobolwsky entrou para me visitar. Com um sotaque acentuado e duro, declamou as perguntas de praxe para avaliar como eu me sentia. Então, me avisou que na manhã seguinte iria repetir a sessão do tratamento radical. Talvez, fosse uma alucinação causada pelos choques, mas notei um toque morno em sua entoação ao me informar sobre a tétrica programação que me aguardava. Uma sensualidade na voz, na face, nos gestos contidos, algo que não transparecera antes. Ao entardecer, ela retornou para me examinar e me aconselhou ignorar Sade. Trouxe um livro que assentou na cabeceira: A Vênus das Peles, de Sacher-Masoch. Afirmou que essa obra me ajudaria a compreender a minha real condição e me classificou como um masoquista psicótico, num nível tão avançado que poderia levar a uma postura esquizoide.
De repente, a psiquiatra passou os dedos pelos meus cabelos e me alertou que a carga que me imporia na próxima fase do tratamento seria mais forte e a dor opressiva. Disse isso com aquele laivo de sorriso discreto que pressenti quando os eletrodos estavam grudados às minhas têmporas. Uma misteriosa alegria me envolveu, uma sorrateira expectativa me roubou o sono. Eu me rendi à ansiedade brutal de querer estar amarrado aos pés daquela mulher, na mais absoluta submissão. Seria capaz de implorar-lhe para receber os choques impiedosos como quem é castigado por chibatadas e não evitarei expiar o êxtase que o meu sofrimento irá lhe proporcionar.
Paula desapareceu subitamente da minha memória. Era o início da cura. Não sei o que virá amanhã. Encerro aqui as minhas anotações, mas me obrigo a prestar uma confissão: Eu a amo, Drª Sobolwsky.